sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

O Sacerdócio Real dos Santos

Sermão nº 10

Ministrado na manhã do domingo de 28 de janeiro de 1855 pelo Rev. Charles H. Spurgeon na Capela da New Park Street, Southwark, Londres, Inglaterra.


“Tu os constituíste reino e sacerdotes para o nosso Deus, e eles reinarão sobre a terra.” Apocalipse 5:10 (NVI)
MÚSICA é uma coisa fascinante. Sei que a música sacra é, pois sinto seu encanto ao entoar este hino maravilhoso. Há uma força na harmonia, um poder mágico na melodia que, ou consomem a alma em contrição ou a enlevam em indizível alegria. Não sei como é com outras pessoas; talvez consigam resistir à influência da música; mas eu não consigo. Quando os santos de Deus, em coro, “entoam a melodia solene” e, quando ouço as doces sílabas brotando dos seus lábios, com ritmo e compasso, sinto-me cheio de júbilo; e, esquecendo-me por um momento das coisas terrenas, pairo no ar em direção ao céu. Se tal é a doçura da música dos santos aqui embaixo, onde há tanta discórdia e pecado para estragar a harmonia, quão doce deve ser o cântico lá de cima, junto com os querubins e serafins. Ah, que canções devem ser aquelas ouvidas pelo Eterno do Seu trono! Quão sublimes devem ser os sonetos que vibram dos lábios dos seres puros e imortais, sem a mácula do pecado, sem a mistura de gemidos: onde gorjeiam hinos de júbilo e alegria, sem a presença de um único suspiro ou gemido ou cuidado mundano. Ah, músicos benditos! Quando irei me juntar a esse coro? Há um hino que diz ━
Ouçam como cantam diante do trono!
e, por vezes, penso poder “ouvir como eles cantam diante do trono”. Fico imaginando o som crescente da melodia do coro, retumbando dos céus como trovão e o som de muitas águas, e quase ouço as notas afinadíssimas, quando os músicos dedilham suas harpas diante do trono de Deus. Ah, mas que pena, era só a minha imaginação. Não podemos ouvi-los agora; estes ouvidos não são adequados para esse tipo de música; se pudéssemos ouvir o som das harpas dos anjos, nossa alma não poderia ser contida em nosso corpo. Temos de esperar até estarmos lá em cima. E, então, purificados, como prata depurada sete vezes, das imundícies terrenas, lavados no precioso sangue do Salvador, santificados pela ação purificadora do Espírito Santo ━
“Todos nós, inculpáveis e perfeitos
Com maravilhosa e divina alegria,
Ante o trono do Pai estaremos”.
“E, no ressoar das mansões celestes
Pelo fragor da divina soberania,
Mais alto que a multidão cantaremos”.
          Nosso amigo João, o mui favorecido apóstolo do Apocalipse, nos deu apenas uma nota da canção do céu; tocaremos essa nota e ela soará repetidamente. Farei vibrar esse diapasão do céu e seus ouvidos ouvirão o tom. “Tu os constituíste reino e sacerdotes para o nosso Deus, e eles reinarão sobre a terra”. Que o grande e gracioso Espírito, o qual é a única luz nas trevas, ilumine a minha mente enquanto tento, de forma breve e sucinta, falar sobre esse texto. Vejo três coisas nele: primeiro, os feitos do Redentor ━  “os constituíste”; segundo, as glórias dos santos ━ “Tu os constituíste reino e sacerdotes para o nosso Deus”; terceiro, o futuro do mundo ━ “e eles reinarão sobre a terra”.
            I. Em primeiro lugar, então, temos OS FEITOS DO REDENTOR. Aqueles que estão diante do trono cantam sobre o Cordeiro ━ o Leão da Tribo de Judá, que abriu o livro e desatou os selos ━ “Tu nos constituíste reino e sacerdotes para o nosso Deus”. No céu eles não cantam
“Glória, honra, louvor e poder
Sejam a nós para sempre
Pois somos os nossos próprios Redentores ━ Aleluia!”
Eles não louvam a si mesmos; não glorificam a sua própria força; não falam do seu livre-arbítrio e dos seus feitos; eles atribuem a sua salvação, do início ao fim, a Deus. Perguntem-lhes como foram salvos e eles dirão: “Foi  o Cordeiro quem nos tornou o que somos”. Perguntem-lhes de onde vieram suas glórias, e eles falarão: “Elas nos foram dadas por herança pelo Cordeiro que foi morto”. Perguntem-lhes como conseguiram o ouro das suas harpas, e eles contarão: “Foi extraído por Jesus nas minas de agonia e amargura”. Perguntem quem colocou as cordas em suas harpas e eles afirmarão que Jesus usou cada tendão do Seu próprio corpo para fazê-las.  Perguntem-lhes onde lavaram e alvejaram suas vestes, e eles responderão ━
“Naquela fonte cheia do sangue
Derramado das veias do Emanuel”
Algumas pessoas aqui na terra não sabem onde colocar a coroa; mas as do céu sabem. Eles colocam o diadema na cabeça certa; e cantam ━ “Foi Ele quem nos tornou o que somos”.
Bem, amados, não conviria fazer uma observação neste ponto? Pois, “o que temos que não tenhamos recebido”? Quem nos tornou diferentes? Sei que sou um homem justificado; tenho plena certeza disso
“Os terrores da lei e de Deus,
Nada me podem fazer;
Pelo sangue e obediência do meu Salvador
Todas as minhas transgressões foram ocultas”.
Não há pecado contra mim no livro de Deus; todos foram apagados pelo sangue de Cristo; e cancelados pela Sua própria mão. Nada tenho a temer; não posso ser condenado. “Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus”? Deus não, pois é Ele quem justifica; nem Cristo; pois foi Ele quem morreu. No entanto, se sou justificado, quem me tornou assim? Eu digo ━ “Ele me tornou o que sou”. A justificação, do início ao fim, é de Deus. A salvação vem de Deus somente.
Muitas pessoas aqui são santificadas, mas não totalmente, ainda não foram completamente libertas da sujeira da terra; ainda têm outra lei em seus membros lutando contra a lei da mente; e ainda terão essa lei enquanto forem tabernáculos da fé; não serão perfeitas em sua santificação até estarem lá, diante do trono santo de Deus, onde até mesmo essa imperfeição da alma será tirada, e a depravação carnal, desarraigada. No entanto, amados, há um caráter interior que lhes foi dado; vocês estão crescendo na graça ━ estão progredindo em santidade. Bem, mas quem os fez ter esse progresso? Quem os libertou dessa concupiscência? Quem os resgatou desse vício? Quem os fez dizer adeus às práticas em que estavam mergulhados? Vocês ainda não podem dizer: “Jesus nos fez”! Mas foi Cristo quem fez tudo; ao Seu nome seja a honra, a glória, o louvor e o domínio.
Vamos nos deter por alguns momentos nesta ideia e mostrar como se pode dizer que foi Jesus quem nos tornou assim. Quando foi que Cristo constituiu Seu povo como reis e sacerdotes? Quando se pôde dizer: “e nos constituiu reis e sacerdotes para o nosso Deus”?

  1. Antes de qualquer outra coisa, Ele, praticamente, nos constituiu reis e sacerdotes quando assinou o pacto da graça. Há muito, muito tempo, lá na eternidade, foi escrita pela mão de Deus, a Carta Magna dos santos, e era preciso uma assinatura para validá-la. Havia uma cláusula nesse pacto, a de que o Mediador deveria se encarnar, viver uma vida de sofrimento e, por fim, suportar uma morte de ignomínia; e era preciso uma única assinatura, a assinatura do Filho de Deus, para validar essa aliança, eterna e “em tudo bem definida e segura”. Parece-me até que O vejo neste momento, conforme minha mente imagina o glorioso Filho Deus segurando a pena. Vejam como Seus dedos escrevem o nome; e lá está, em letras eternas━ “O FILHO”! A sagrada ratificação do pacto, o qual é selado e lacrado com o poderoso sinete do Pai celeste. Ó gloriosa aliança, para sempre segura! No momento da assinatura desse magnífico documento, os espíritos diante do trono ━ quero dizer, os anjos ━ talvez tenham retomado o cântico e dito dos eleitos: “Tu os constituíste reino e sacerdotes para o nosso Deus”; e se toda a companhia dos eleitos já tivesse vindo à existência, poderia aplaudir e cantar: “Eis-nos aqui, pois essa assinatura nos constituiu reis e sacerdotes para o nosso Deus”.
  2. Mas Ele não parou por aí. Ele não concordou simplesmente com os termos do pacto; no devido tempo, Ele o satisfez completamente ━ sim, o pacto foi cumprido até o último pingo no i. Jesus disse: “Tomarei o cálice da salvação”; e Ele tomou ━ o cálice da nossa libertação. Suas gotas eram amargas; no fundo havia fel, e na mistura vermelha, havia gemidos, suspiros e lágrimas; mas Ele tomou tudo, cada gole intragável, até a última gota. Tudo se foi. Ele bebeu o cálice da salvação e comeu o pão de aflição. Vejam-nO, enquanto Ele bebe o cálice no Getsêmani, quando o líquido se mistura ao Seu sangue e torna cada gota um veneno cáustico. Vejam como os pés tórridos da dor percorrem Suas veias. Observem como cada nervo é torcido e retorcido em Sua agonia. Reparem na Sua fronte coberta de suor; reparem nas agonias que se seguem nas profundezas da Sua alma. Que os perdidos falem e digam como é o tormento do inferno, mas eles não podem contar como foram os tormentos do Getsêmani. Oh, aquele abismo indescritível! Abriu-se um grande abismo quando o Redentor inclinou a cabeça, quando Se colocou entre a mó superior e a mó inferior da vingança do Pai, e quando Sua alma inteira foi reduzida a pó. Ah! a luta do Homem-Deus ━ o Homem sofredor do Getsêmani! Chorem por Ele, santos ━ chorem por Ele; quando O virem Se erguer no jardim de oração e marchar para a cruz; quando pensarem nEle pendurado no madeiro durante quatro longas horas sob o sol escaldante, oprimido pela ira do Pai ━ quando virem o sangue brotando do Seu lado ━ quando ouvirem o grito de morte: “está consumado!” ━ e quando virem Seus lábios ressecados serem umedecidos somente com fel e vinagre ━ ah! então, prostrem-se diante dessa cruz, curvem-se diante desse sofrimento e digam: “Tu nos fizeste ━ tu nos fizeste como somos; nada somos sem Ti”. A cruz de Jesus é o fundamento da glória dos santos; o Calvário é a terra natal do céu; o céu tem seu berço na manjedoura de Belém; não fossem os sofrimentos e as agonias do Gólgota, jamais teríamos sequer uma bênção. Ah, santos! em cada misericórdia, vejam o sangue do Salvador; olhem para este Livro ━ está respingado com Seu sangue; olhem para esta casa de oração ━ é santificada pelos Seus sofrimentos; olhem para o alimento diário ━ é comprado com Seus gemidos. Que cada misericórdia seja recebida por vocês como um tesouro comprado com sangue; valorizem-no, pois esse sangue vem Dele, e digam sempre: “Tu nos fizeste como somos”.
  3. Amados, nosso Salvador Jesus Cristo completou a grande obra de nos tornar o que somos quando foi assunto ao céu. Se Ele não tivesse subido às alturas e levado cativo o cativeiro, Sua morte teria sido insuficiente. Ele “morreu por causa das nossas transgressões”, mas “ressuscitou por causa da nossa justificação”. A ressurreição do nosso Salvador, em Sua majestade, quando Ele rompeu os grilhões da morte, foi para nós a garantia de que Deus tinha aceitado o Seu sacrifício; e Sua ascenção às alturas foi um tipo e uma figura da verdadeira e real ascenção dos santos, quando Ele vier nas nuvens do julgamento e chamar para Si o Seu povo. Observem o Homem-Deus enquanto Ele sobe para o céu; vejam Sua marcha triunfal no firmamento, enquanto as estrelas O louvam e os planetas dançam em ordem solene; vejam-nO atravessar os territórios desconhecidos do éter até chegar ao sétimo céu, ao trono de Deus; então, ouçam-nO dizer ao Pai: “Já terminei a obra que Me confiaste; aqui estou e os filhos que Me deste; combati o bom combate; completei minha carreira; fiz tudo; cumpri todos os tipos; cumpri todos os itens da aliança; não há um til que eu não tenha realizado, nada foi deixado de fora, tudo está feito”. Enquanto Ele fala, ouçam como eles cantam diante do trono de Deus: “Tu nos constituíste reino e sacerdotes para o nosso Deus: e nós reinaremos sobre a terra”.

Assim, fiz uma breve exposição dos preciosos feitos do Redentor. Lábios impuros não podem se expressar de forma mais elevada; um coração fraco não está à altura desse grandioso tema. Ah, se estes lábios tivessem eloquência e grandiosidade, poderiam falar muito mais dos extraordinários feitos do nosso Redentor.
“Coroai-O! Coroai-O!
Coroas caem bem na fronte do Salvador”.
        II. Agora, em segundo lugar, AS GLÓRIAS DOS SANTOS: “Tu os constituíste reino e sacerdotes para o nosso Deus”. Os monarcas mais ilustres eram aqueles considerados não só com direito real, mas também com direito ao sumo sacerdócio ━ aqueles reis que poderiam usar tanto a coroa da lealdade como a mitra do sacerdócio, que poderiam segurar tanto o incensário quanto o cetro ━ que poderiam oferecer intercessão pelo povo e governar as nações. Quem é rei e sacerdote é realmente extraordinário; e é assim com o santo honrado, ele não tem somente um dos títulos, ou um dos ofícios, ele tem os dois. Ele não foi constituído somente rei, mas rei e sacerdote; não somente sacerdote, mas sacerdote e rei. O santo tem os dois ofícios conferidos a ele ao mesmo tempo; ele é constituído monarca sacerdotal e sacerdote real.
Falarei primeiro do ofício real dos santos. Eles são REIS. Eles não se tornarão reis lá no céu, eles são reis aqui na terra; pois se o meu texto não diz isso, em outra passagem a Bíblia declara: “sois raça eleita, sacerdócio real”. Nós somos reis. Gostaria que entendessem esse ponto antes de explicar essa ideia. Todo santo do Deus vivo não tem apenas a perspectiva de se tornar rei lá no céu, mas, à vista de Deus, ele já é rei, e deve dizer, em relação a seus irmãos e a si mesmo: Ele “nos constituiu reino e sacerdotes para o nosso Deus; e nós reinaremos sobre a terra”. O cristão é rei. Ele não é semelhante a um rei, ele é rei, de fato e de verdade. Entretanto, tentarei lhes mostrar como ele é rei.
Lembrem-se da sua ascendência real. É incrível como algumas pessoas dão importância aos avós e a outros antepassados distantes. Lembro-me de que no Trinity College, a genealogia de um grande aristocrata ia até Adão, e Adão estava lá, arando o solo ━ o primeiro homem. A descendência era traçada até ele. É claro que não acredito nisso. Já ouvi falar de linhagens que remontam a um passado bem distante. Deixo a critério de vocês, acreditar nisso ou não. Uma linhagem com duques, marqueses, reis e príncipes. Ah, o que algumas pessoas não dariam por uma dinastia dessas! Creio, no entanto, não serem os nossos antepassados, mas nós mesmos o que nos fará brilhar diante de Deus; e não é por saber que temos sangue real ou sacerdotal nas veias, mas por saber que somos uma honra para a nossa raça ━ por andarmos nos caminhos do Senhor e honrarmos Sua igreja e a graça que nos torna dignos de honra. Contudo, como alguns homens se gloriam na sua descendência, eu me gloriarei no fato de os santos terem o antepassado mais magnífico do mundo. Sejam Césares, Alexandres ou mesmo a nossa amada Rainha ━ eu digo que tenho uma linhagem tão nobre quanto a de Sua Majestade, ou do monarca mais imponente deste mundo. Sou descendente do Rei dos reis. O santo pode falar da sua linhagem ━ pode exultar nela, pode se gloriar nela ━ pois ele é filho de Deus, de fato e de verdade. Sua mãe, a igreja, é a noiva de Jesus; ele é um filho do céu nascido de novo: alguém com sangue real do universo. Mesmo a mulher ou homem mais pobre da terra, quando ama a Cristo, é descendente real. Quem tem a graça de Deus no coração tem nobre ascendência. Posso retroceder na minha genealogia e lhe dizer que ela é tão antiga que não tem começo; é mais antiga que todos os registros de homens poderosos juntos, pois meu Pai existe desde a eternidade: portanto, eu realmente tenho direito real e ascendência ancestral.
Por outro lado, os santos, como monarcas, têm uma esplêndida comitiva. Reis e monarcas não podem viajar sem um pouco de pompa. Antigamente, os cortejos eram muito mais suntuosos do que são agora; mas ainda hoje vemos muito esplendor quando a realeza aparece em público. É preciso um tipo especial de cavalo, uma carruagem esplêndida e cavaleiros, com todos os detalhes de grande pompa. Ah, sim, os reis de Deus, aqueles a quem Jesus constituiu reis e sacerdotes para Deus, também têm uma comitiva real. “Oh!”, diz você, “mas vejo alguns deles em andrajos, andando por aí sozinhos, às vezes sem amigos ou alguém para ajudá-los”. Bem, há algum problema com a sua visão. Se tivesse olhos para ver, iria perceber que há uma multidão de anjos sempre guardando cada membro da família comprada pelo sangue. Lembra-se do servo de Elias, que não conseguia divisar o que estava à volta do seu mestre até este lhe abrir os olhos? Só então ele passou a ver os carros e cavalos em torno de Elias. Veja, há cavalos e carros ao meu redor. E, tu, santo do Senhor, aonde quer que estejas, também há cavalos e carros ao teu redor. Naquele quarto, onde nasci, havia anjos para anunciar o meu nascimento nas alturas. Nos mares da tribulação, quando ondas e mais ondas parecem querer me encobrir, os anjos estão lá para levantar minha cabeça; quando eu morrer, quando os amigos enlutados estiverem, chorando, carregando-me para o túmulo, os anjos estarão ao lado do meu caixão e, quando eu for colocado na sepultura, um anjo poderoso ficará e guardará meus restos mortais, e contenderá com o diabo pelo meu corpo. Por que preciso temer? Tenho comigo a companhia dos anjos; e aonde quer que eu vá, magníficos querubins irão à minha frente. Os homens não podem vê-los, mas eu posso, pois “a fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não vêem”. Nós temos uma comitiva real: somos reis, não só por ascendência, mas também pela nossa comitiva”.
Agora, observem os símbolos e os privilégios dos santos. Reis e príncipes têm certas coisas que, por prerrogativa, são suas. Por exemplo, Sua Majestade, a Rainha da Inglaterra, tem o Palácio de Buckingham, outros palácios, a coroa, o cetro e assim por diante. Mas será que o santo tem um palácio? Tem sim. Eu tenho um palácio! E suas paredes não são de mármore, são de ouro; suas muralhas são de carbúnculos e pedras preciosas; seus baluartes são de rubis; suas pedras são assentadas com argamassa colorida; e ao redor dele há uma profusão de coisas valiosas; os rubis cintilam aqui e ali; sim, as pérolas são as pedras mais comuns em seu interior. Alguns o chamam de mansão; mas também posso chamá-lo de palácio, pois sou um rei. É uma mansão quando olho para Deus, e é um palácio quando olho para os homens; pois é a morada de um príncipe. Observe onde fica este palácio. Não sou um príncipe das Índias ━ não tenho herança em qualquer lugar longínquo imaginado pelos homens ━ não tenho o Eldorado, nem o reino do Preste João; mas ainda tenho o palácio mais importante. Ele fica lá longe, nas colinas do céu; não sei sua posição entre as outras mansões celestiais, mas ele está lá; e eu “sei que, se a nossa casa terrestre deste tabernáculo se desfizer, temos da parte de Deus um edifício, casa não feita por mãos, eterna, nos céus”.
Será que os cristãos também têm uma coroa? Oh, sim, eles têm; mas não a usam todos os dias. Eles têm uma coroa, mas o dia da sua coroação ainda não chegou. Eles já foram ungidos monarcas, e também já têm certa autoridade e dignidade de monarcas, mas ainda não foram coroados. No entanto, a coroa já está pronta. Deus não tem de mandar os ourives do céu fazê-la; ela já foi feita e está guardada na glória. Deus “guarda para mim a coroa de justiça”. Ah, santo, se pudesses abrir uma porta secreta no céu e entrar na câmara dos tesouros, verias como ela está cheia de coroas. Quando Cortes entrou no palácio de Montezuma, encontrou uma câmara secreta atrás de uma parede, na qual supôs estivesse toda riqueza do mundo, tantas coisas diferentes se encontravam nela. Se você pudesse entrar na casa do tesouro secreta de Deus, quanta riqueza não veria! E perguntaria: “Será que há tantos reis, tantas coroas, tantos príncipes”? Sim, há, e um anjo brilhante lhe diria: “Vê esta coroa? É sua”. E se olhasse na parte interna, você leria: “Feita para um pecador salvo pela graça, cujo nome é…”, e então, mal acreditaria em seus olhos quando visse seu próprio nome gravado nela. Você realmente é rei diante de Deus, pois tem uma coroa guardada no céu. Os santos terão quaisquer símbolos pertencentes a um monarca. Terão mantos brancos; terão harpas de glória; e todas as coisas que fazem a sua realeza; de modo que somos realmente reis; não monarcas de brincadeira, vestidos com mantos púrpura de escárnio e zombaria, saudados com “Salve, rei dos judeus!”, mas monarcas de verdade. “Para o nosso Deus nos constituíste reino e sacerdotes”.
Há ainda outra ideia. Os reis são considerados os mais dignos de honra entre os homens. Eles são sempre admirados e respeitados. Se você disser: “um monarca está aqui”, a multidão abre caminho. Eu mesmo não imponho muito respeito se tentar passar pelo meio de uma multidão; mas, se alguém gritar: “aí vem a Rainha!”, todos se afastam e lhe dão passagem. Um monarca geralmente impõe respeito. Ah, queridos, para nós, os príncipes terrenos são os homens mais dignos do mundo; no entanto, se perguntássemos para Deus, Ele diria: “os meus santos, nos quais me comprazo, estes são os mais dignos de honra”. Não me falem de bijuterias e badulaques; nem de ouro e prata; ou de pérolas e diamantes; não me falem de ancestrais e classes sociais; nem preguem sobre luxo e poder; mas me falem de alguém que é santo do Senhor, e eis aí uma pessoa digna de honra. Deus o respeita, os anjos o respeitam, e o universo um dia também irá respeitá-lo, quando Cristo vier chamá-lo para prestar contas e lhe disser: “Muito bem, servo bom e fiel; entra no gozo do teu senhor”. Talvez você, pecador, despreze um filho de Deus; talvez ria dele; talvez diga que é hipócrita; talvez o chame de santarrão, fanático, beato ou qualquer outra coisa, mas saiba que esses títulos não irão macular sua dignidade ━ ele é a pessoa mais digna da terra, e Deus o considera como tal.
No entanto, algumas pessoas irão dizer: “Gostaria que você pudesse provar a afirmação de que os santos são reis; pois, se fôssemos reis não teríamos tristezas; os reis não são pobres como nós, nem sofrem como nós”. Quem lhe disse isso? Quer dizer que, se fôssemos reis, a vida seria mais fácil? Então os reis não sofrem? Davi não era um rei ungido? E não foi caçado como uma perdiz pelas montanhas? O próprio rei não atravessou chorando o ribeiro de Cedrom, assim como seus companheiros, quando era perseguido por seu filho Absalão? E ele já não era monarca, quando dormiu no chão frio, sem ter onde deitar a não ser a relva úmida? Oh, sim, os reis também sofrem ━ cabeças coroadas também têm aflições. Pois, “que pesada sempre se encontra a fronte coroada!”(1).
Não espere que, por ser rei, você não tenha tristezas. “Não é próprio dos reis, ó Lemuel, não é próprio dos reis beber vinho, nem dos príncipes desejar bebida forte”. E é quase sempre assim. Aqui, neste mundo, os santos bebem pouco vinho. Não é próprio dos reis beber o vinho do prazer; não é próprio dos reis embriagar-se e fartar-se das delícias deste mundo. Eles terão alegria suficiente no além, quando o beberão, novo, no reino do Pai. Pobre santo! Pensa nisso. Tu és rei! Eu te rogo, não permitas que isso saia da tua mente; mas, em meio às tuas tribulações, regozija-te nisso. Se tiveres de atravessar o escuro túnel da infâmia, pelo nome de Cristo; se fores ridicularizado e desprezado, regozija-te nisto: “Eu sou rei e todos os domínios da terra serão meus!”
Um último pensamento e fecho este ponto. Os reis têm domínios. Sabem que sou um homem da quinta monarquia? Na época de Cromwell, diziam ter havido quatro monarquias e que uma quinta viria e destruiria todas as outras. Bem, não desejo falar como eles; mas, como eles, creio na vinda de uma quinta monarquia. Até agora houve grandes impérios reclamando o domínio universal, e não haverá outro governo mundial até a volta de Cristo. Jesus, nosso Senhor, será o Rei de toda a terra e governará todas as nações de forma espiritual ou pessoal. Os santos, sendo reis em Cristo, têm direito ao mundo inteiro. Eis-me aqui, nesta manhã, e minha congregação diante de mim. Alguns dizem: “fique onde está e pregue”, e tenho ouvido este conselho, “não saia da sua congregação”. Roland Hill costumava dizer que nunca saiu da sua paróquia; sua paróquia era a Inglaterra, a Escócia e o País de Gales, e ele nunca a deixou. Suponho que esta seja a minha congregação e de cada ministro do evangelho. Quando virmos uma cidade cheia de pecado e iniquidade, o que devemos fazer? Ela é nossa, devemos ir até lá e avançar contra ela. Quando virmos uma rua ou lugar cheio de gente, onde as pessoas são de má índole, devemos dizer: “Este beco é nosso, vamos até e o tomemos”. Quando virmos uma casa onde as pessoas não receberão o evangelho, devemos dizer: “É a nossa casa, vamos até lá e invistamos contra ela”. Não iremos com o braço forte da lei, nem chamaremos a polícia ou o governo para nos ajudar; mas levaremos conosco “as armas da nossa milícia”, as quais “não são carnais, e sim poderosas em Deus, para destruir fortalezas”. Nós iremos e, pelo Espírito de Deus, venceremos. Se há uma cidade onde as crianças correm pelas ruas, sem educação; nós iremos até lá e pegaremos essas crianças ━ vamos sequestrá-las para Cristo. Teremos uma escola dominical. Se forem crianças pobres que não podem vir à escola dominical, faremos uma escola simples, sem luxo. Nos lugares do mundo onde as pessoas estão mergulhadas na ignorância e na superstição: mandemos missionários para lá. Ah, quem não gosta de missões não conhece a dignidade dos santos. Vejam a Índia, vejam a China. “São nossas”, dizem os santos. Todos os reinos da terra são nossos. “A África é minha bacia de lavar ━ vou conquistar a Ásia. Elas são minhas! Minhas”! “Quem me conduzirá à cidade fortificada”? Não és Tu, Senhor? Deus nos dará o reino de Cristo. O mundo inteiro é nosso; e, pelo poder do Espírito Santo, Baal se dobrará, Nebo se curvará e os deuses dos ímpios, Buda e Brahma, serão subjugados, e todas as nações se dobrarão diante do cetro de Cristo. “Ele nos constituiu reis”.
O segundo ponto, sobre o qual serei muito breve, é: “Tu os constituíste reino e SACERDOTES”. Os santos não são apenas reis, são também sacerdotes. Vou direto ao ponto, sem nenhum prefácio.
Somos sacerdotes, pois os sacerdotes são pessoas divinamente escolhidas, e nós somos. “Ninguém, pois, toma esta honra para si mesmo, senão quando chamado por Deus, como aconteceu com Arão”. E nós temos esse chamado e eleição; todos fomos ordenados desde a fundação do mundo. Fomos predestinados para sermos sacerdotes e, no devido tempo, recebemos o chamado especial e eficaz, ao qual não pudemos resistir, e não resistimos, o qual enfim nos conquistou e nos tornou, imediatamente, sacerdotes de Deus. Somos sacerdotes, divinamente constituídos. Quando dizemos isso, não falamos como algumas pessoas, as quais se dizem sacerdotes com o desejo de arrogar para si preeminência. Sempre me oponho ━ preciso deixar isso bem claro ━ a chamar um clérigo, ou qualquer outro pregador, de sacerdote. Não somos melhores do que ninguém. Todos são sacerdotes. Pois, se alguém chegar e disser que é sacerdote, superior àqueles a quem prega ━ isso é falsidade. Detesto a distinção entre clérigos e leigos. Gosto do tipo de sacerdócio bíblico, pois é o ofício ou trabalho do povo, onde todos são sacerdotes; mas abomino os outros tipos. Cada santo do Senhor é um sacerdote no altar de Deus e pode adorá-lO com o incenso da oração e do louvor. Nós somos sacerdotes, cada um de nós, se somos chamados pela graça divina; pois assim somos sacerdotes por divina constituição.
A seguir, somos sacerdotes porque podemos desfrutar das honras divinas. Ninguém, exceto um sacerdote, poderia adentrar ao véu; havia um pátio dos sacerdotes onde ninguém podia entrar, a não ser os chamados. Os sacerdotes tinham certos direitos e privilégios que outras pessoas não tinham. Santo de Jesus. Herdeiro do céu! Tu tens altos e honrosos privilégios, os quais as pessoas do mundo não têm! Porventura, já estiveste dentro do véu em comunhão com Cristo? Já estiveste no átrio da casa do Senhor, o pátio dos sacerdotes, onde Ele tem ensina e Se manifesta a ti? Já? Sim, tu sabes que já; tu desfrutas de constante acesso ao trono de Deus; tens direito de ir lá e dizer tuas mágoas e tristezas nos ouvidos do Senhor. Os desventurados deste mundo não podem ir até lá; os pobres filhos da ira não têm Deus para contar seus problemas. Eles não podem adentrar ao véu; e nem querem entrar: mas tu podes; tu podes se aproximar do ouvido de Deus, balançar o incensário diante do trono e fazer tua petição em nome de Jesus. Outras pessoas não têm tais honras divinas. Tu és divinamente honrado e divinamente abençoado.
          E, para encerrar este ponto, uma última observação: temos um serviço divino a realizar; quero que todos vocês, nesta manhã, pensem nesta capela como um grande altar ━  e, enquanto os torno sacerdotes em exercício e este lugar um templo para sacrifícios ━ observem cuidadosamente o seu ofício. Todos são sacerdotes, pois amam o doce nome do Senhor e têm um grande sacrifício a realizar; não uma propiciação pelos seus pecados, pois isso já foi feito de uma vez por todas, mas um sacrifício de ações de graça. Oh, como é doce aos ouvidos do Senhor as orações do Seu povo! Este é o sacrifício que Ele aceita; e quando os santos hinos sobem em direção ao céu, como são aprazíveis aos Seus ouvidos; pois assim Ele pode dizer: “Meus sacerdotes fazem sacrifícios de louvor”. Mas, vocês sabem, amados, que há uma coisa na qual a maioria de nós tem falhado em nossas oblações diante de Deus? Nós oferecemos as nossas orações e apresentamos o nosso louvor, mas quase não oferecemos os nossos bens para Deus! Hoje cedo, vendo como fazer para torná-los mais liberais, pensei neste texto: “Honra ao SENHOR com os teus bens e com as primícias de toda a tua renda; e se encherão fartamente os teus celeiros, e transbordarão de vinho os teus lagares”; pensei em lhes mostrar que os nossos bens são do Senhor, que é nosso dever tributar-Lhe uma pequena parte deles e, assim fazendo, poderíamos esperar ter sucesso até nos negócios deste mundo, pois Ele encheria os nossos celeiros e faria transbordar de vinhos os nossos lagares. No entanto, acho desnecessário pregar um sermão sobre coleta ━ é melhor falar sobre a honra e a dignidade do ofertante, pois, assim, vocês podem dar o quanto quiserem, pois o único livre-arbítrio que eu gosto é o livre-arbítrio para ofertar. Permitam-me, então, amados, umas poucas palavras. Deus disse em Sua Palavra que devemos honrá-lO com os nossos bens. Como sacerdote do Senhor, você não vai sacrificar alguma coisa a Ele no dia de hoje? Temos um grande objetivo diante de nós; queremos mais espaço para as pessoas que vêm ouvir o evangelho. Parece importante que, quando tantas pessoas estão reunidas, ninguém vá embora. Não devemos bendizer a Deus por sua vinda? Há um tempo atrás éramos muito poucos e o nosso clamor era: “Quem creu em nossa pregação”? No entanto, Deus nos tem nos concedido grande êxito, nosso ministério tem sido abençoado com a conversão de não poucas almas; temos muitos casos, aqui nesta capela, de corações quebrantados e espíritos contritos; sem dúvida, há muitos mais que desconheço, os quais creio que o bendito Espírito trará no devido tempo. Ah, vocês não lamentam quando algumas pessoas não ouvem a voz do ministério ━ quando vêm e têm de ir embora, talvez para passar o domingo em pecado? Não sabemos para onde elas vão quando não conseguem entrar. O fato é, temos de pensar que esta capela precisa ser ampliada, a fim de haver acomodação para um número maior de pessoas. Ora, sacerdotes, sacrifiquem ao Senhor. Edifiquem a casa do Senhor; que aqueles que cultuam neste santuário ponham a mão na massa; que os tijolos e a argamassa sejam assentados e esta casa fique ainda mais cheia com a glória do Senhor e uma grande congregação.
          III. Agora, vou concluir com O FUTURO DO MUNDO. “E eles reinarão sobre a terra”. Não tenho muito tempo para me deter neste ponto, e tenho certeza de que vocês esperam que eu fale sobre o milênio e o reinado de Cristo. No entanto, de forma alguma falarei sobre isso, pois nada sei a esse respeito. Já ouvi muitas pessoas discutindo sobre esse assunto e, se alguém me mostrar um livro a esse respeito, eu digo: “Ainda não posso lê-lo”. Há pouco tempo, um bom homem escreveu um livro sobre a questão, e um senhor insistiu tanto para eu lê-lo que o comprei só por cortesia; contudo, coloquei o livro na área nobre da minha biblioteca, nas prateleiras mais altas, e lá ele descansa em repouso tranquilo. Não me sinto capaz de trilhar os labirintos desse assunto, e também não creio que aquele respeitável autor possa fazê-lo. É um tema obscuro e tenho lido tantas opiniões diferentes sobre ele que, para mim, tudo é fantasmagoria. Creio em tudo o que a Bíblia diz sobre um futuro glorioso, mas não tenho a intenção de ficar fazendo gráficos o tempo todo. Só uma coisa tomo como certa: um dia os santos reinarão sobre a terra. Para mim, essa verdade parece clara o suficiente, sejam quais forem os diferentes pontos de vista sobre o milênio. Agora os santos não reinam de forma visível; eles são desprezados. Nos tempos antigos, eles foram levados às covas e às cavernas da terra: mas virá o tempo quando os santos serão reis, e os chamados de Deus, príncipes ━ quando as amas serão rainhas, e os aios da igreja de Cristo, reis. A hora está chegando, quando o santo será honrado, não desprezado; e os monarcas, antes inimigos da verdade, serão seus amigos. Os santos reinarão. Eles serão maioria, o reino de Cristo terá a supremacia; não será humilhado ━ este não será mais o mundo de Satanás ━ ele cantará novamente com suas irmãs, as estrelas, e o louvor jamais cessará. Ah, eu creio que virá o dia quando os sinos de domingo ressoarão pelas planícies da África ━ quando as profundezas das selvas da Índia verão os santos de Deus subindo para o santuário; e, estou certo de que as multidões fervilhantes da China irão se reunir nos templos para orar e, como você e eu fazemos, cantarão ao glorioso e eterno Senhor
“Louvai a Deus de quem as bênçãos vêm.”
Oh, dia feliz! Dia feliz! Que venha logo!
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(1) Shakespeare, Henrique IV - Parte II
Tradução: Mariza Regina de Souza