quinta-feira, 13 de maio de 2021

Uma Lei Inalterável

 Sermão nº 3418

Publicado na terça-feira, 06 de agosto de 1914

Ministrado por C. H. Spurgeon

No Tabernáculo Metropolitano, Newington


“Sem derramamento de sangue, não há remissão”. — Hebreus 9:22


Em qualquer lugar sob a antiga dispensação figurativa, o sangue era algo bem visível. O sangue era a coisa mais importante da economia judaica e raramente uma cerimônia era realizada sem ele. Ninguém podia entrar no tabernáculo, mas era possível ver vestígios de sangue por toda parte. Às vezes, recipientes com sangue eram derramados aos pés do altar. O lugar era tão parecido com um matadouro que visitá-lo estava longe de ser uma coisa agradável; por isso, para gostar daquele lugar, era preciso ter uma fé viva e entendimento espiritual. A matança de animais era a forma de adoração; o derramamento de sangue era o ritual designado e o sangue espalhado pelo chão, pelas cortinas e pelas vestes dos sacerdotes era um memorial constante. Quando Paulo diz que, quase todas as coisas, sob o regime da lei, eram purificadas com sangue, ele está se referindo a umas poucas coisas que não eram. Assim sendo, encontraremos diversas passagens onde as pessoas eram exortadas a lavar suas vestes, e aqueles que estavam impuros devido a causas físicas tinham de lavar suas vestes com água. As roupas usadas pelos homens geralmente eram lavadas com água. Após a derrota dos midianitas, conforme registrado no livro de Números, os despojos, que estavam contaminados, tiveram de ser purificados antes de serem reivindicados pelos israelitas vitoriosos (Números 31). De acordo com as ordenanças da lei que o Senhor dera a Moisés, alguns bens, como roupas e artigos feitos de pele ou pelo de cabra, deveriam ser purificados com água, enquanto as coisas feitas de metal, que podiam suportar o fogo, eram purificadas com fogo. Mesmo assim, o apóstolo se refere a um fato literal quando diz que quase todas as coisas, sendo as vestes a única exceção, eram purificadas, sob o regime da lei, com sangue. Portanto, ele está se referindo a uma verdade conhecida por todos, a de que, sob a antiga dispensação legal, não havia perdão de pecados, exceto pelo derramamento de sangue. Havia uma única exceção aparente e, até mesmo ela, prova a universalidade da regra, pois a razão para tal é bem esclarecida. A oferta pela culpa, apresentada como alternativa em Levítico 5.11, poderia, em casos de extrema pobreza, ser uma oferta sem sangue. Se alguém fosse pobre demais para levar uma oferta de gado, poderia levar duas rolas ou dois pombinhos; no entanto, se a pessoa fosse pobre demais até para isso, poderia oferecer a décima parte de um efa da flor de farinha como oferta pelo pecado, sem azeite ou incenso, a qual seria lançada no fogo. Esta é a única exceção entre todos os exemplos. Em todos os lugares, em todas as vezes e em todos os casos em que houvesse pecado a ser removido, o sangue deveria fluir, a vida tinha que ser tirada. A única exceção registrada apenas ressalta o fato de que “sem derramamento de sangue, não há remissão”. Sob o evangelho, no entanto, não há exceção, não há um único caso sequer, como havia sob o regime da lei; não, nem mesmo para os paupérrimos. E tais somos nós espiritualmente. Visto que não há nenhum de nós para levar a oferta, e não mais que uma oferta para oferecer, todos temos que tomar a oferta já apresentada e aceitar o sacrifício feito por Jesus Cristo, de Si mesmo, em nosso lugar — agora não há motivo ou fundamento para exceção, para qualquer homem ou mulher vivo, nem haverá, seja neste mundo ou no porvir — “Sem derramamento de sangue, não há remissão”. Então, com grande simplicidade, no que diz respeito à nossa salvação, peço a atenção de cada um de vocês para este assunto tão grandioso, o qual está intimamente ligado aos nossos interesses eternos. Por isso, em primeiro lugar, deduzo do texto o seguinte fato encorajador:

I. HÁ REMISSÃO — ou seja, remissão de pecados. “Sem derramamento de sangue, não há remissão”. Sangue foi derramado, portanto, há esperança com relação a isso. Remissão, não obstante os rigores da lei, não é ser entregue ao puro desespero. A palavra remissão significa quitar dívidas. Assim como o pecado pode ser considerado uma dívida contraída com Deus, essa dívida pode ser apagada, cancelada e removida. O pecador, em débito com Deus, pode deixar de ser devedor, por compensação ou por absolvição total, e pode ficar livre em virtude dessa remissão. Isso é possível. Glória a Deus, a remissão de todos os pecados, dos quais é possível se arrepender, pode ser obtida. Seja qual for a transgressão de alguém, seu perdão será possível se o seu arrependimento for possível. Pecado sem arrependimento é pecado imperdoável. Se o pecado for confessado e abandonado, a pessoa encontrará misericórdia. Deus disse isso e Ele não será infiel à Sua Palavra. “Mas”, alguém diz, “não há um pecado que é para a morte”? Sim, na verdade há, mas eu não sei qual é, nem creio que quem quer que estude o assunto seja capaz de descobrir que pecado é esse; parece muito claro que o pecado é praticamente imperdoável porque nunca houve arrependimento. Quem comete um pecado que é para a morte, para todos os efeitos e propósitos, torna-se morto em pecado no sentido mais profundo e permanente até mesmo que a raça humana como um todo, e é abandonado como um caso inveterado — de consciência cauterizada, por assim dizer, com ferro em brasa — e daí por diante ele não buscará misericórdia. Mas todo tipo de pecado e blasfêmia será perdoado aos homens. Seja para a luxúria, roubo ou adultério — sim, até mesmo para o assassinato, há o perdão de Deus, para que Ele seja temido. Ele é o Senhor Deus, gracioso e misericordioso, que Se esquece da transgressão, da iniquidade e do pecado.

E esse perdão que é possível é também, de acordo com as Escrituras, completo; isto é, quando Deus perdoa o pecado de alguém, Ele o faz de uma vez por todas. Ele apaga a dívida sem qualquer cálculo retroativo. Ele não tira uma parte do pecado da pessoa e a responsabiliza pelo resto; mas, no momento em que o pecado de alguém é perdoado, é como se sua iniquidade nunca tivesse sido cometida; ele é recebido na casa do Pai e abraçado com o amor do Pai como se nunca tivesse errado; ele é aceito na presença de Deus como se nunca tivesse cometido qualquer transgressão. Bendito seja Deus, crente, pois não há pecado contra ti no Livro de Deus. Se tu crês, estás perdoado — não parcialmente, mas totalmente perdoado. A escrita que era contra ti foi cancelada, encravada na cruz de Cristo (Cl 2.14), e jamais poderá ser pleiteada novamente contra ti. O perdão é completo.

Além do mais, esse perdão é agora. Na imaginação de algumas pessoas (para vergonha do evangelho), o perdão não é concedido até a hora da morte e, talvez, só então, de alguma forma misteriosa, nos últimos minutos de vida, a pessoa possa ser absolvida. Nós, porém, pregamos, em nome de Jesus, o perdão presente e imediato de todas as transgressões — um perdão dado em um instante — o momento em que o pecador crê em Jesus. Não como se fosse a cura gradual de uma doença, que precisasse de meses ou anos de tratamento. É verdade que a corrupção da nossa natureza é uma dessas doenças, e o pecado que habita em nós deve ser diariamente, e continuamente, mortificado; no entanto, quanto à culpa pelas nossas transgressões diante de Deus, e quanto à dívida contraída com a Sua justiça, a remissão não é uma coisa progressiva ou gradual. O perdão de um pecador é concedido imediatamente; e ele será dado a qualquer um que o aceite hoje mesmo — sim, e dado de tal forma que você nunca o perderá. Uma vez perdoado, perdoado para sempre, e nenhuma das consequências do pecado o afligirá. Você será absolvido irrestrita e eternamente, de modo que, quando os céus estiverem em chamas e o grande trono branco for erguido, e a última grande assembleia for realizada, você possa se apresentar com ousadia diante do tribunal, sem temer qualquer acusação, pois o perdão que o próprio Deus concede jamais será revogado.

Vou acrescentar ainda outra observação. Quem recebe o perdão, sabe que o recebeu. Se alguém simplesmente tivesse a esperança de ter recebido o perdão, essa esperança muitas vezes poderia lutar contra o medo. Se a pessoa só achasse que foi perdoada, seus escrúpulos poderiam assustá-la. No entanto, saber que o perdão foi concedido é fundamento seguro de paz para o coração. Glória a Deus que os privilégios da aliança da graça não são questões de esperança e suposição, mas de fé, convicção e segurança. Não é presunção crer na Palavra de Deus. A própria Palavra diz: “Quem crê em Jesus Cristo não é condenado”. Se creio em Cristo, então, não sou condenado. Que direito tenho de achar que sou? Se Deus diz que não, seria presunção da minha parte achar que sim. Não pode ser presunção entender a Palavra de Deus exatamente como ela é dita a mim. No entanto, alguém pode dizer: “Que felicidade se esse fosse o meu caso!” Disseste bem, pois “Bem-aventurado aquele cuja iniquidade é perdoada, cujo pecado é coberto. Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não atribui iniquidade” (Salmo 32:1-2).  E outra pessoa diz: “Nunca pensei que uma coisa tão maravilhosa fosse possível a alguém como eu”. Tu raciocinas à maneira dos filhos dos homens. Saiba, então, que assim como os céus são mais altos do que a terra, assim os caminhos de Deus são mais altos que os nossos, e seus pensamentos mais altos do que os nossos. (Is  55.9). Errar é do homem, perdoar é de Deus. Nós erramos como homens, mas Deus não perdoa como o homem, Ele perdoa como Deus, para que exultemos de alegria e cantemos: “Quem, ó Deus, é semelhante a ti, que perdoas a iniquidade e te esqueces da transgressão, da iniquidade e do pecado”? (Mq 7.18). Quando fazemos alguma coisa, é apenas um pequeno esforço feito de acordo com nossas habilidades; nosso Deus, no entanto, fez os céus. Quando perdoamos, perdoamos segundo a nossa natureza e nossas condições, mas quando Deus perdoa, Ele mostra as riquezas da Sua graça numa escala tão grande que nossa mente finita jamais poderia compreender. Milhares de pecados horrendos, pecados infernais, Ele remove num só instante, pois Ele Se deleita na Sua misericórdia; e o julgamento é sua obra estranha (Is 28.21). “Porque não tenho prazer na morte de ninguém, diz o Senhor Deus. Portanto, convertei-vos e vivei” (Ezequiel 18:32). Essa é uma observação maravilhosa fornecida pelo nosso texto. Não há remissão, exceto pelo sangue. Contudo, há remissão, pois sangue foi derramado.

Examinando o texto mais de perto, temos que insistir em sua grande lição:

II. EMBORA HAJA PERDÃO DO PECADO, ISSO JAMAIS SERÁ SEM SANGUE

Esta é uma sentença arrebatadora, pois algumas pessoas confiam no seu arrependimento para perdão dos seus pecados. Sem dúvida, arrepender-se dos pecados é um dever. Se você desobedece a Deus, deve lamentar por isso. Abandonar o pecado é simplesmente um dever da criatura, caso contrário, o pecado não seria violação da santa lei de Deus. Mas saiba que todo o arrependimento do mundo não pode apagar nem o menor dos pecados. Se você tiver um único pensamento pecaminoso passando pela sua cabeça, e sofrer por causa disso todos os dias da sua vida, ainda assim a mancha desse pecado não poderá ser removida, nem mesmo pela angústia que isso lhe causa. Onde o arrependimento é obra do Espírito Santo, ele é um dom precioso e um sinal da graça de Deus; mas não existe poder expiatório no arrependimento. Nem mesmo um mar repleto de lágrimas penitenciais tem poder ou virtude para lavar uma única mancha dessa hedionda impureza. Sem derramamento de sangue, não há remissão. Outras pessoas, no entanto, supõe que, de qualquer forma, a transformação decorrente do arrependimento é suficiente. O que aconteceria se a embriaguez fosse abandonada e a sobriedade se tornasse a regra? E se a licenciosidade fosse deixada por completo e a castidade se tornasse o adorno do caráter? E se a conduta desonesta fosse posta de lado e a integridade fosse escrupulosamente mantida em todos os negócios? Digo que tudo isso é muito bom; queira Deus que essas mudanças possam ocorrer em todos os lugares — no entanto, não contrair mais dívidas não paga as dívidas anteriores, e bom comportamento no futuro não perdoa os delitos passados. Por isso, o pecado não é remido com mudanças. Mesmo que um dia pudéssemos ser tão imaculados quanto os anjos (não que tal coisa seja possível a nós, pois um etíope não pode mudar a cor da sua pele, nem o leopardo as suas manchas), nossas mudanças não poderiam fazer expiação pelos pecados cometidos nos dias em que transgredimos contra Deus. Mas alguém diz: “O que posso fazer, então?” Há quem pense que suas orações e sua humildade de alma talvez possam fazer alguma coisa por eles. Suas orações talvez, se forem sinceros, mas preferiria que fossem expressão de uma vida espiritual. Contudo, caro ouvinte, a oração não tem efeito de apagar pecados. Vou dizer com mais ênfase. Todas as orações, de todos os santos na terra e, se fosse possível, junto com as orações de todos os santos nos céus, todas elas não poderiam apagar, por sua eficácia natural, o pecado de uma única palavra maligna. Não, não há poder de dissuasão na oração. Deus nunca a estabeleceu como meio de purificação. Ela tem seus usos, e usos valiosos. É um dos privilégios de quem ora que sua oração seja aceitável, mas a própria oração em si jamais poderá apagar o pecado sem o sangue. “Sem derramamento de sangue não há remissão”; ore como quiser.

Há quem pense que a negação de si mesmo e as mortificações em formas extraordinárias podem livrá-lo da culpa. Não é comum encontrarmos tais pessoas em nosso meio, mas há aqueles que, para purificarem a si mesmos do pecado, flagelam seu corpo, observam jejuns prolongados, vestem pano de saco e roupas de pelo coladas à pele, e alguns já chegaram ao ponto de imaginar que abster-se de banho e deixar o corpo sujo fosse o meio mais rápido de purificar a alma. Uma estranha obsessão, com certeza! Ainda hoje, no Industão, pode-se encontrar um faquir fazendo seu corpo passar por tremendos sofrimentos e distorções na esperança de se livrar do seu pecado. Qual é o propósito disso tudo, afinal? Parece-me que ouço o Senhor dizendo: “O que é para mim que inclines a cabeça como junco, vistas pano de saco, comas cinza com teu pão e mistures absinto em tua bebida? Tu violaste a minha lei; tais coisas não podem repará-la; ofendeste a minha honra com teu pecado; mas, onde está a justiça que dá honra ao meu nome?” O clamor dos antigos era: “Com que nos apresentaremos diante de Deus?”, e diziam: “Darei o meu primogênito pela minha transgressão, o fruto do meu corpo, pelo pecado da minha alma?” (Miquéias 6:7). Ah! Era tudo em vão. Eis aqui a sentença. E deve permanecer para sempre: “Sem derramamento de sangue não há remissão”. É a vida que Deus exige como a penalidade devida pelo pecado, e nada além da vida indicada no derramamento de sangue jamais poderá satisfazê-lO.

Observem mais uma vez como este texto envolvente tira toda a confiança nas cerimônias, mesmo aquelas que fazem parte das ordenanças de Deus. Há quem pense que o pecado possa ser lavado no batismo. Ah! Quanta tolice! A expressão usada na Escritura não tem essa implicação (At 22.16) — não tem o significado que alguns atribuem a ela, uma vez que o próprio apóstolo que disse isso se gloriava por não ter batizado muitas pessoas, a fim de que não pensassem que havia alguma eficácia na administração do rito (1Co 1.13-16). O batismo é uma ordenança admirável, na qual o crente mantém comunhão com Cristo na Sua morte (Cl 2.12). Ele é um símbolo; nada mais que isso. Milhões de pessoas são batizadas e morrem em seus pecados. Ou que proveito há no sacrifício incruento da missa, como ensina o anticristo (NT: o papa)? A quem disser que é um “sacrifício incruento” e, ao mesmo tempo, o oferecer como propiciação pelo pecado — nós jogamos este texto na cara: “Sem derramamento de sangue não há remissão”. Eles respondem que o sangue está no corpo de Cristo? Nós replicamos que, mesmo que estivesse, este não é o caso, pois é sem derramamento de sangue — sem sangue derramado; sangue, como distinto da carne, sem o derramamento de sangue não há remissão do pecado.

Aqui preciso seguir adiante e fazer um esclarecimento ainda mais profundo. O próprio Jesus Cristo, sem Seu sangue, não pode nos salvar. Essa é uma suposição que só os loucos já fizeram, mas que refutamos até mesmo como hipótese, quando se afirma que o exemplo de Cristo pode remover o pecado humano, que a vida santa de Jesus colocou a raça humana em tal compasso com Deus que agora Ele pode perdoar suas faltas e transgressões. Não é assim; não é a santidade de Jesus, não é a vida de Jesus, não é a morte de Jesus, é somente o sangue de Jesus, pois “sem derramamento de sangue não há remissão”.

Além disso, conheço algumas pessoas que pensam tanto na segunda vinda de Cristo que parecem ter firmado sua fé somente no Cristo em glória. Creio que isso se deva ao irvingismo (NT: movimento surgido na Escócia com o pastor Edward Irving — 1792-1834) — que fixa os olhos do pecador no Cristo entronizado — pois, embora Cristo em Seu trono deva ser sempre amado e honrado, ainda precisamos ver Cristo na cruz, ou nunca poderemos ser salvos. Tua fé não pode ser colocada simplesmente no Cristo glorificado, mas no Cristo crucificado. “Mas longe esteja de mim gloriar-me, senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo” (Gálatas 6:14). “Mas nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios” (1 Coríntios 1:23). Lembro-me de uma pessoa que fazia parte dessa igreja (a querida irmã talvez esteja aqui hoje), a qual era professa há alguns anos mas ainda não desfrutava da paz com Deus, nem produzia qualquer fruto do Espírito. Ela disse: “Frequentei uma igreja onde fui ensinada a descansar no Cristo glorificado e, assim, coloquei minha fé nEle de tal forma que, do Cristo glorificado, eu não tinha qualquer senso de pecado ou de perdão! Eu não conseguia entender e, até ter visto Cristo como aquele que derramou Seu sangue e fez propiciação pelo meu pecado, não pude descansar”. Sim, vou dizer outra vez, pois o texto é de vital importância: “Sem derramamento de sangue, não há remissão”, nem mesmo com o próprio Cristo. É pelo sacrifício que Ele ofereceu por nós que nos livramos do nosso pecado — só isso e nada mais. Sigamos adiante com a mesma verdade.

III. ESSA REMISSÃO DO PECADO DEVE SER ENCONTRADA AO PÉ DA CRUZ

A remissão deve ser obtida por meio de Jesus Cristo, cujo sangue foi derramado. O hino que cantamos no início do culto nos deu a essência da doutrina. A punição pelo pecado é a nossa dívida para com Deus. Essa dívida era devida ou não? Se a lei estava certa, a pena devia ser aplicada. Se a pena era severa demais, e a lei inadequada, então Deus teria cometido um erro. No entanto, é uma blasfêmia supor tal coisa. Portanto, se a lei é justa, e a pena é justa, será que Deus faria algo injusto? Injusto seria Ele não executar a pena. Gostaria que Ele fosse injusto?  Ele declarou que a alma que pecar deve morrer (Ez 18.4); gostaria que Ele fosse mentiroso? Será que Ele tem de engolir Suas palavras para salvar Suas criaturas? “Seja Deus verdadeiro, e mentiroso, todo homem” (Rm 3.4). A sentença da lei devia ser cumprida. Era inevitável que, para manter a prerrogativa da Sua santidade, Deus tivesse de punir os pecados cometidos pelos homens. Como, então, Ele deveria nos salvar? Veja o plano! Seu querido Filho, o Senhor da glória, assume em Si mesmo a forma humana, recebe a todos quantos o Pai Lhe deu, toma o seu lugar, e quando a sentença judicial é promulgada e a espada da vingança salta da bainha, eis que o glorioso Substituto desnuda o braço e diz: “Golpeia, espada, mas golpeia a Mim, e deixa Meu povo ir”. A espada da lei traspassou a própria alma de Jesus e Seu sangue foi derramado, o sangue, não de quem era apenas homem, mas dAquele que, por ser um Espírito eterno, foi capaz de oferecer a Si mesmo sem mácula a Deus, de uma forma que deu eficácia infinita a Seus sofrimentos. Está escrito que Ele, por meio do Espírito eterno, ofereceu a Si mesmo sem mácula a Deus (Hb 9.14). Sendo, em Sua própria natureza, infinitamente mais que a natureza do homem, compreendendo em Si mesmo, por assim dizer, todas as naturezas do homem, em razão da majestade da Sua pessoa, Ele foi capaz de oferecer a Deus uma expiação de infinita, ilimitada e inconcebível suficiência.

O que Jesus sofreu, nenhum de nós pode dizer. No entanto, de um coisa estou certo: não posso desprezar ou subestimar Seus sofrimentos — as torturas físicas que Ele suportou — mas estou igualmente certo de que ninguém pode exagerar ou supervalorizar os sofrimentos de uma alma como a Dele; eles estão muito além do que podemos conceber. Ele foi tão puro, tão perfeito, tão extraordinariamente sensível e tão imaculadamente santo que, ser contado com os transgressores, ser ferido pelo Pai, morrer (como direi?) a morte dos incircuncisos pelas mãos de estrangeiros, foi a própria essência da amargura, a consumação da angústia. “Todavia, ao Senhor agradou moê-lo, fazendo-o enfermar” (Isaías 53:10). Suas próprias angústias foram aquilo que a liturgia grega chama, com muita propriedade, de “sofrimentos desconhecidos, dores extraordinárias”. Por conseguinte, sua eficácia é também infinita, ilimitada. Agora, então, Deus pode perdoar o pecado. Ele puniu o pecado em Cristo; é uma questão de justiça, assim como de misericórdia, que Deus cancele as dívidas que já foram pagas. Seria injusto, digo isso com reverência, mas com santa ousadia — seria injusto da parte da infinita Majestade culpar-me de um único pecado que foi imputado ao meu Substituto. Se meu Fiador pagou meu pecado, Ele me libertou, e estou livre. Quem ressuscitará o julgamento contra mim quando já fui condenado na pessoa do meu Salvador? Quem me entregará às chamas do inferno, quando Cristo, meu Substituto, já sofreu o equivalente ao inferno por mim? Quem intentará acusação contra mim, quando Cristo assumiu a culpa por todos os meus crimes, respondeu por eles, expiou-os e recebeu o recibo de quitação, uma vez que Ele ressuscitou dos mortos para poder reivindicar abertamente essa justificação na qual pela graça sou chamado e tenho o privilégio de participar? Resumindo, é tudo muito simples, mas será que todos nós o recebemos, que todos o aceitamos? Oh! Caros ouvintes, o texto está repleto de advertências para alguns de vocês. Talvez você tenha uma boa disposição, um caráter excelente, uma atitude séria, mas ainda tem receio de aceitar a Cristo; você tropeça na pedra de tropeço; você se despedaça na rocha. Como posso explicar um caso tão infeliz? Não vou discutir com você. Evito entrar em qualquer discussão. Apenas vou lhe fazer uma pergunta. Você acredita que a Bíblia seja inspirada por Deus? Veja então esta passagem: “Sem derramamento de sangue, não há remissão”. O que você me diz? Ela não é absolutamente conclusiva? Permita-me fazer uma inferência. Se você não tem interesse no derramamento de sangue, o qual tentei brevemente descrever, será que existe remissão para você? Pode haver? Seus pecados estão sob sua total responsabilidade agora. Quando o grandioso Juiz voltar, eles serão requeridos das suas mãos. Você pode trabalhar, se esforçar, ser sincero em suas convicções, ter a consciência tranquila ou ser cheio de escrúpulos; no entanto, tão certo quanto vive o Senhor, não há perdão para você, a não ser pelo derramamento de sangue. Você o rejeita? O perigo jaz sobre sua cabeça. Deus falou. Não se pode dizer que sua ruína foi designada por Ele quando o próprio remédio para ela é revelado por Ele.

Deus ordena que você siga o caminho designado por Ele e, se você o rejeitar, deve morrer. Sua morte é suicídio, seja deliberado, acidental ou por erro de julgamento. Seu sangue está sobre sua própria cabeça. Você está avisado.

Por outro lado, que grande consolação o texto nos dá! “Sem derramamento de sangue, não há remissão”. Mas onde há sangue derramado, há remissão. Se vieres a Cristo, serás salvo. Se puderes dizer, de todo coração:

Minha fé sua mão estende

Colocando-a sobre a Tua cabeça

Aqui estou como um penitente

Que seus pecados confessa


Então, o pecado se foi. Onde está aquele jovem? E aquela jovem? Onde estão aqueles corações ansiosos que dizem: “Será que agora seremos perdoados”? Ah, olhem, olhem, olhem, olhem para o Salvador crucificado, e sejam perdoados. Podem seguir seu caminho, pois vocês aceitaram a expiação de Deus. Filha, tende bom ânimo, teus pecados, que são tantos, te foram perdoados. Filho, regozija-te, pois tuas transgressões foram apagadas.

Minha última palavra será esta. Quem ensina outras pessoas e tenta fazê-lo da maneira correta, apegue-se a esta doutrina. Que ela seja a frente, o centro, a essência e o cerne de tudo o que você tem a dizer. Costumo pregar com frequência sobre isso, e não há domingo em que eu vá para cama tão satisfeito em meu íntimo quanto aquele em que prego sobre o sacrifício substitutivo de Cristo. Só então eu sinto que “se os pecadores estão perdidos, seu sangue não está sobre mim”. Esta é a doutrina da salvação da alma, compreenda-a e terá conquistado a vida eterna; rejeite-a e sua rejeição será para sua vergonha. Ah! Guardem isso. Martinho Lutero costumava dizer que todo sermão devia incluir a doutrina da justificação pela fé. Verdade; mas incluindo também a doutrina da expiação. Ele dizia que não conseguia enfiar a doutrina da justificação pela fé na cabeça dos cidadãos de Wurtemberg e se sentia meio inclinado a pegar o livro do púlpito e atirar na cabeça deles, para que a entendessem. Receio que, mesmo que ele tivesse tentando, não teria tido muito sucesso. Ah, como eu gostaria de insistir neste ponto mais e mais vezes, “a vida está no sangue”. “Quando eu vir o sangue, passarei por vós” (Êxodo 12:13).

Cristo deu Sua vida ao derramar Seu sangue — e é isso que dá perdão e paz a cada um de vocês, se olharem somente para Ele — perdão agora, perdão completo, perdão para sempre. Não confie em mais nada; confie somente nos sofrimentos e na morte do Deus encarnado, que subiu ao céu e hoje vive para suplicar por nós diante do trono do Pai; pelo mérito do sangue que, no Calvário, Ele derramou pelos pecadores. Assim como os encontrarei naquele grande dia, quando o Crucificado vier como Rei e Senhor de todos, dia esse que se apressa, assim como eu os encontrarei então, oro para que vocês testemunhem que me esforço para lhes dizer com toda simplicidade qual é o caminho da salvação. Se vocês o rejeitarem, façam-me este favor: digam que pelo menos eu lhes ofereci, em nome do Senhor Deus, o Seu evangelho, e insisti honestamente para que o aceitassem, a fim de poderem ser salvos. Contudo, eu preferiria, pela graça de Deus, encontrá-los lá, todos cobertos pela única expiação, revestidos da única justiça e aceitos no único Salvador, para juntos cantarmos: “Digno é o Cordeiro que foi morto de receber o poder, e riqueza, e sabedoria, e força, e honra, e glória, e louvor” (Apocalipse 5:12). Amém.

Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza