sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

10 de fevereiro, Devocional Matutina

 “sei o que é ter fartura”

Filipenses 4:12 (NVI)

Muitas pessoas que sabem “como passar necessidade” ainda não aprenderam “o que é ter fartura”. Quando colocadas no topo de um pináculo, ficam zonzas e ficam prestes a cair. O cristão muitas vezes desonra mais sua confissão em tempos de prosperidade do que em tempos de adversidade. É perigoso ser próspero. O cadinho da adversidade é uma prova bem menos rigorosa para o cristão do que o crisol da prosperidade. Ó, quanta pobreza de alma e negligência das coisas espirituais foram provocadas pelas próprias misericórdias e dádivas de Deus! No entanto, essa não é uma questão de necessidade, pois o apóstolo nos diz que ele sabia como ter fartura. Quando tinha muito, ele sabia como usá-lo. A graça abundante permitiu que ele tivesse prosperidade abundante. Quando seu navio estava cheio, ele tinha muito lastro, por isso flutuava em segurança. É preciso mais do que a habilidade humana para segurar com mão firme o cálice transbordante da alegria material; e Paulo aprendeu a segurá-lo, pois declara, “Aprendi o segredo de viver contente em toda e qualquer situação, seja bem alimentado, seja com fome”. Saber como ter fartura é uma lição divina, pois quando os israelitas a tiveram, a ira divina desceu sobre eles enquanto a carne ainda estava em sua boca (Nm 11.33). Muitos pedem misericórdias para satisfazer a concupiscência do seu próprio coração. Fartura de pão com frequência causa derramamento de sangue, e isso traz devassidão de espírito. Quase sempre, quando recebemos muitas misericórdias providenciais de Deus, acabamos desfrutando menos da Sua graça e tendo pouca gratidão pelas dádivas recebidas. Ficamos empanturrados e nos esquecemos de Deus: satisfeitos com a terra, não nos importamos em dispensar o céu. Estejam certos de que é mais difícil saber como ter fartura do que saber como passar necessidade — tão desesperada é a tendência da natureza humana ao orgulho e ao esquecimento de Deus. Cuidem para pedir em suas orações que Deus os ensine a “ter fartura”.

“Não permitas que as dádivas concedidas pelo Teu amor

Afastem de Ti os nossos corações”

Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Copiosa Redenção

Sermão nº 351

Ministrado em Exeter Hall, Strand, Londres, Inglaterra

Pelo Rev. C. H. Spurgeon

“pois no Senhor há... copiosa redenção”. — Salmos 130:7

Redenção é uma palavra que tem alegrado muitos ouvidos desde que ainda nem havia o som dos carrilhões celestiais. Além de qualquer uso teológico, a palavra é extremamente doce e melodiosa para muitos corações. Nos dias em que a pirataria ainda era praticada ao longo da costa da África, quando nossos súditos cristãos eram capturados por corsários e levados cativos, era possível compreender como a alma oprimida do escravo algemado, acorrentado ao remo da sua galera, alegrava-se com a esperança de uma possível redenção. Seu senhor cruel, que o obrigara a ser sua propriedade, não o emanciparia de bom grado. No entanto, ao surgir o rumor de que, em alguma nação distante, uma soma de dinheiro fora levantada para comprar a liberdade dos escravos — que algum rico mercador dedicara parte de seus bens para reaver seus compatriotas; que o próprio rei, assentado em seu trono, prometera franca redenção para que os cativos entre os mouros pudessem retornar para casa (NT1), suponho que quando a palavra redenção soasse em seus ouvidos as horas corressem alegremente e a tristeza da sua labuta fosse amenizada. Assim também com nossos súditos e compatriotas que um dia foram escravos nos assentamentos das colônias da Índia Ocidental. Podemos imaginar que, para seus lábios, a palavra redenção deve ter soado como uma linda melodia. Saber que a nobre nação britânica tinha levantado vinte milhões da importância necessária para sua redenção deve ter soado tão doce quanto o badalar dos sinos a um jovem noivo no dia do seu casamento, e que, em determinada manhã, os grilhões seriam quebrados e eles não mais teriam de sair para as plantações debaixo do sol escaldante levados pelo chicote; que eles não seriam mais propriedade de alguém e ninguém mais teria posse sobre o seu corpo e sobre a sua alma. Será que é possível imaginar sua felicidade pela liberdade recém-conquistada, quando o sol nasceu naquela gloriosa manhã, quando a emancipação foi proclamada através dos mares e toda a terra ficou em liberdade? Ah, quantos sonetos há nessa única palavra, redenção!

Ora, para aqueles que venderam por nada sua gloriosa herança; que foram levados como escravos para os domínios de Satanás; que estão acorrentados pelos grilhões da culpa e gemem sob ela; que são açoitados pelo chicote da lei de Deus — o que as novas da redenção têm sido para os escravos e cativos será também para vocês nesta noite. Ela animará sua alma e alegrará seu espírito, e ainda mais quando este rico adjetivo for associado a ela — copiosa redenção.

Esta noite vou considerar a questão da redenção e, em seguida, observar o adjetivo atrelado a ela: “copiosa redenção”.

I. Sendo assim, em primeiro lugar vamos considerar a questão da REDENÇÃO.

Vou iniciar fazendo uma pergunta: O que foi que Cristo redimiu? E, para que saibam quais são os meus pontos de vista sobre este assunto, vou dizer, antes de qualquer coisa, que considero esta uma doutrina autoritativa, consistente com o senso comum e anunciada pelas Escrituras, ou seja, que tudo quanto Cristo redimiu, Ele realmente redimiu. Vou começar, então, com este princípio, que tudo quanto Cristo redimiu, Ele realmente redimiu. Considero uma afronta à razão, e ainda mais à revelação, dizer que Cristo teve de morrer para comprar o que Ele nunca poderia ter; considero quase uma blasfêmia afirmar que o propósito da morte do nosso Salvador possa algum dia ser frustrado. Todo e qualquer propósito que Cristo teve ao morrer — nós afirmamos isso como uma verdade muito bem estabelecida e que deve ser admitida por todas as pessoas razoáveis — tal propósito, com certeza, Ele alcançará. Não vejo como o propósito de Deus em qualquer coisa possa ser frustrado. Sempre pensamos em Deus como tão superior às Suas criaturas que, quando Ele propõe fazer alguma coisa, com certeza ela será feita. E, se tenho o que me foi concedido, não posso sequer por um momento permitir a alguém imaginar que Cristo tenha derramado Seu sangue em vão; que Ele tenha morrido com intenção de fazer alguma coisa, mas não tenha conseguido fazê-la; que Ele tenha morrido com pleno propósito em Seu coração, e com a promessa da parte de Deus de que receberia algo em troca de Seus sofrimentos, e ainda assim não tenha conseguido alcançá-lo. Para começo de assunto, e penso que qualquer pessoa que pondere um pouco sobre essa questão, e verdadeiramente a leve em consideração, entenda desta forma — é imperativo que o propósito de Cristo em Sua morte seja cumprido, e que todo o desígnio de Deus seja alcançado. Eu creio, portanto, que a eficácia do sangue de Cristo não conhece outro limite senão o propósito de Deus. Creio que a eficácia da expiação de Cristo é tão grande quanto Deus quis que ela fosse e que aquilo que Cristo redimiu é precisamente aquilo que Ele tinha intenção de redimir e exatamente aquilo que o Pai decretou que Ele redimisse. Assim sendo, não posso, nem por um segundo, dar crédito à doutrina que diz que todos os homens são redimidos. Alguns podem defendê-la com unhas e dentes, como sei que o fazem, até mesmo teimando que ela é parte fundamental da doutrina da revelação. Não importa, este é um país livre. Eles podem defender sua opinião, mas devo dizer-lhes solenemente que estou convicto de que essa doutrina não pode ser sustentada quando o assunto é considerado com seriedade, pois acreditar em redenção universal leva à conclusão blasfema de que o propósito de Deus foi frustrado e que Cristo não recebeu aquilo pelo que morreu. Se, portanto, eles podem acreditar nisso, podem acreditar em qualquer coisa; e não vou me desesperar ao vê-los desembarcar em Salt Lake (NT2), ou em qualquer outra região onde o entusiasmo e a credulidade podem florescer sem os obstáculos do ridículo ou da razão.

Partindo, portanto, desse pressuposto, vou lhes dizer o que acredito, de acordo com a sã doutrina e a Sagrada Escritura, que Cristo realmente redimiu. A essência da Sua redenção é esta: Ele redimiu muitas coisas: Ele redimiu a alma do Seu povo; Ele redimiu o corpo do Seu povo; Ele redimiu a herança original que foi perdida em Adão; e, por último, Ele redimiu o mundo, no sentido de que o mundo finalmente será Dele.

Cristo redimiu a alma de todas as pessoas que serão salvas. Ou, nos dizeres de um calvinista, Cristo redimiu os Seus eleitos; mas, uma vez que não sabemos quem são os eleitos até que sejam revelados, vamos fazer uma pequena alteração e dizer que Cristo redimiu todas as almas penitentes; Cristo redimiu a alma de todos os crentes; e Cristo redimiu a alma de todos aqueles que morrem na infância, visto que deve ser reconhecido que, todos os que morrem na infância estão inscritos no livro da vida do Cordeiro e são graciosamente privilegiados por Deus para ir imediatamente para o céu, ao invés de labutarem neste mundo cansativo.

A alma de todos aqueles que foram inscritos no livro da vida do Cordeiro antes da fundação do mundo, os quais, no devido tempo, se humilham diante de Deus, e que, no decurso de sua vida são levados a abraçar Jesus como o único refúgio da sua alma, que permanecem no caminho e, finalmente, alcançam o céu; estes, eu creio, foram redimidos, e devo afirmar, firme e solenemente, que a alma de nenhuma outra pessoa é, nesse sentido, objeto da redenção. Não defendo a doutrina de que Judas foi redimido; não posso conceber meu Salvador suportando a punição por Judas, ou, se assim fosse, Judas sendo castigado novamente. Não posso conceber que Deus primeiro exija das mãos de Cristo o castigo pelo pecado e, depois, novamente das mãos do pecador. Não posso conceber, nem por um momento, que Cristo tenha derramado Seu sangue em vão. E, embora eu tenha lido no livro de certos teólogos que o sangue de Cristo é combustível para as chamas do inferno, estremeço diante desse pensamento e o descarto como uma afirmação medonha, talvez digna daqueles que a fizeram, mas totalmente sem fundamento na Palavra de Deus. As almas do povo de Deus, sejam elas quais forem, e são uma multidão que não se pode contar — e espero sinceramente que todos vocês estejam incluídos — são efetivamente redimidas.

1. Em essência, as almas são redimidas em três sentidos. São redimidas da culpa do pecado, da punição do pecado e do poder do pecado. As almas do povo de Cristo carregam a culpa do pecado até serem redimidas; no entanto, quando a redenção é aplicada à minha alma, desse momento em diante meus pecados, todos eles, são para sempre cobertos.

No momento em que crê um pecador
E entrega sua alma ao Senhor
É imediato o seu perdão
Pois no sangue de Cristo há plena salvação

A culpa pelo nosso pecado é removida pela redenção de Cristo. Qualquer que tenha sido o pecado cometido por você, no momento em que crê em Cristo, você não só nunca será punido por ele, como sua própria culpa por tê-lo cometido será retirada. Aos olhos de Deus você deixa de ser culpado e é considerado por Ele como um crente justificado, o qual tem a justiça de Cristo sobre si; e, por isso, você pode dizer — recordando um verso que sempre repetimos —

Agora, livre do pecado posso andar
Liberto pelo sangue do meu Salvador
A Seus pés minha pode repousar
Um salvo e reverente pecador

Pela redenção de Cristo, cada pecado, cada pedacinho de culpa, cada vestígio de transgressão é efetivamente removido de todos os crentes da família do Senhor.

A seguir, observe: não somente a culpa, mas a punição do pecado também é removida. Na verdade, quando deixamos de ser culpados, deixamos de ser objeto de qualquer punição. Removida a culpa, não há mais castigo. Mas, para tornar isso mais claro, é como se fosse escrito de novo, a condenação é removida, assim como o pecado pelo qual deveríamos ser condenados. “Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus.” (Romanos 8:1). Nenhum daqueles que foram redimidos por Cristo podem ser condenados; eles nunca serão punidos por causa do seu pecado, pois Cristo já sofreu o castigo em seu lugar; por isso, eles não podem, a menos que Deus seja injusto, ser processados de novo por uma dívida que já foi paga. Se Cristo, sua redenção, morreu, então eles não podem morrer. Se ele, o seu fiador, já pagou a sua dívida, então, pela justiça de Deus, eles não devem mais nada, pois Cristo pagou tudo. Se Ele derramou Seu sangue, se Ele entregou Seu espírito, se Ele morreu, “o justo pelos injustos, para conduzir-vos a Deus” (1 Pedro 3:18), como, então, Deus poderia ser justo e ainda punir aqueles que Ele já puniu na pessoa de Jesus Cristo, o seu Salvador? Não, amados, pela copiosa redenção de Cristo, somos libertos de todo castigo decorrente do pecado e de toda a culpa em que tínhamos incorrido.

Além disso, a família dos crentes em Cristo — ou melhor, todos aqueles por quem Cristo morreu — são realmente libertos do poder do pecado. Oh, há quem absorva as duas verdades que já mencionei como se fossem mel; no entanto, elas não podem suportar este outro ponto: Cristo também nos liberta do poder do pecado.

Assim, observe que — nós afirmamos com toda convicção — nenhuma pessoa pode ser redimida da culpa do pecado, ou do seu castigo, a menos que também seja liberta do poder do pecado. A menos que Deus a faça odiar o seu próprio pecado, a menos que ela seja capaz de lançá-lo por terra, a menos que abomine todos os seus maus caminhos e se apegue a Deus com pleno propósito de coração, andando diante Dele na terra dos viventes, na força do Espírito Santo, tal pessoa não tem o direito de acreditar que seja redimida.

Se ainda estás sob o domínio das tuas luxúrias, ó vil pecador, não tens o direito de pensar que és um herdeiro comprado do céu. Se andas a beber, praguejar, amaldiçoar a Deus, se mentes, se profanas o dia de descanso, se odeias o povo de Deus, se desprezas a Sua Palavra, então não tens o direito, tal qual Satanás no inferno, de te vangloriares de ser redimido; pois todos os redimidos do Senhor são, no devido tempo, tirados casa da servidão, da terra do Egito, e aprendem sobre o mal do pecado, sobre o seu terrível castigo e sobre o seu caráter desesperador aos olhos de Deus.

Caro ouvinte, já foste liberto do poder do pecado? Tu o mortificaste? Estás morto para ele? Ele está morto para ti? Ele está crucificado para ti, e tu para ele? Odeias o pecado como odiarias uma víbora? Pisas nele como pisarias numa serpente? Se fazes estas coisas, ainda que haja pecados de fraqueza e enfermidade, se tu odeias o pecado do teu coração, se tiveres inimizade indizível contra ele, tem coragem e bom ânimo. O Senhor te redimiu da culpa e do castigo, e também do poder do pecado. Este é o primeiro ponto da redenção.

E ouçam-me com atenção, para que não me entendam mal. Gosto sempre de pregar de forma a não haver engano. Não quero pregar para que depois me julguem e digam: ele não quis dizer o que disse.

Por isso, quero repetir solenemente o que já disse — eu realmente acredito que ninguém mais foi redimido a não ser aqueles que são ou serão redimidos da culpa, do castigo e do poder do pecado, pois digo outra vez, é abominável à minha razão, pra não falar da minha visão da Escritura, imaginar que os condenados um dia foram redimidos, e que os perdidos um dia foram lavados no sangue do Salvador ou que Seu sangue foi derramado com intenção de salvá-los.

2. Agora vamos pensar na segunda coisa que Cristo redimiu. Cristo redimiu o corpo de todos os Seus filhos. No dia em que Cristo redimiu nossa alma, Ele redimiu o tabernáculo onde habita nossa alma. No mesmo instante em que o espírito foi redimido pelo sangue, Cristo, que entregou Sua alma humana e Seu corpo humano à morte, comprou o corpo, assim como a alma, de cada crente. Pergunta-se, então, de que maneira a redenção opera no corpo dos crentes. Respondo, em primeiro lugar, que ela lhes garante uma ressurreição. Aqueles por quem Cristo morreu têm a garantia, pela Sua morte, de uma ressurreição gloriosa. “Porque, assim como, em Adão, todos morrem, assim também todos serão vivificados em Cristo.” (1 Coríntios 15:22). Todos os homens são, em virtude da morte de Cristo, vivificados para uma ressurreição, mas, mesmo aqui há uma propriedade especial para os eleitos, tendo em vista que eles são vivificados para uma bendita ressurreição, enquanto os outros são vivificados apenas para uma ressurreição amaldiçoada; uma ressurreição miserável, uma ressurreição de angústia indizível. Ó cristão, o teu corpo está redimido!

Ainda que os teus pecados exijam
Que a tua carne veja o pó,
Como ressurgiu o teu Salvador
Assim será com o Seu seguidor

Sim! Ainda que em breve eu adormeça no túmulo, ainda que os vermes devorem este corpo, eu sei que o meu Redentor vive e, porque Ele vive, eu sei que em minha carne eu verei a Deus. (Jó 19.26). Estes olhos, que logo estarão vidrados na morte, não ficarão para sempre fechados na escuridão; a morte devolverá a sua presa; Ele restaurará todos aqueles que recebeu.

Vejam, lá está Ele! Ele tem os corpos dos justos trancados em suas masmorras; eles estão envoltos em suas mortalhas, e Ele sabe que estão seguros: Ele selou suas tumbas e as marcou para Si. Ó morte! Ó morte insensata! Teus caixões serão saqueados; teus depósitos serão arrombados. Eis que é chegada a manhã! Cristo desce lá do alto. Ouço a trombeta: “Despertai! Despertai!” E vejam! Os justos saem de seus túmulos; enquanto a morte senta-se perplexa, uivando em vão, vendo seu império ser despojado de seus súditos, suas masmorras sendo saqueadas de suas vítimas. “Precioso lhe é o sangue deles” (Salmo 72:14). Preciosos serão seus ossos! O próprio pó é bendito, e Cristo os ressuscitará com Ele mesmo.

Pensai nisso, vós que perdestes um amigo — vós que chorais de tristeza! Vosso amigo redimido viverá novamente. As mesmas mãos que seguraram as vossas com um aperto mortal irão apertá-las novamente no paraíso. Os mesmos olhos que se desfizeram em lágrimas irão acordar com os cordões oculares (NT3) intactos no meio-dia da felicidade. Aquele mesmo corpo que, em terríveis trajes de luto, vós carregastes tristemente para ser enterrado em seu túmulo — sim, aquele corpo humilhado, ressuscitará à semelhança de Cristo, espiritualizado e transformado, mas ainda o mesmo corpo, e vós, se fordes redimidos, o vereis outra vez, pois Cristo o comprou, e Cristo não morreu em vão. A morte nunca terá um osso sequer de um justo — nem uma partícula de pó — nem um fio de cabelo da sua cabeça. Tudo voltará. Cristo comprou todo o nosso corpo e, no céu, todo o corpo estará completo e unido para sempre com a alma glorificada. O corpo dos justos é redimido, e redimido para a felicidade eterna.

3. A seguir, tudo o que os justos possuíam, e foi perdido em Adão, é redimido. Adão! Onde estás? Tenho um assunto para tratar contigo, homem, pois perdi muito por tua causa. Chega para cá. Adão! Vês como és agora e diga-me o que perdeste, então saberei o que perdi por tua causa e serei capaz de agradecer ao meu Mestre por Ele ter resgatado graciosamente, para todos os crentes, tudo o que perdeste. O que perdeste? “Ai de mim!”, chora Adão, “Eu já tive uma coroa; já fui rei do mundo inteiro; as feras se colocavam aos meus pés e me faziam reverência. Deus me fez para que eu tivesse o domínio supremo sobre os rebanhos das colinas e sobre todas as aves do céu; mas perdi minha coroa. Eu já tive uma mitra”, disse Adão, “pois eu era sacerdote diante de Deus e, muitas vezes pela manhã, eu subia as colinas e recitava suaves preces de louvor ao meu Criador. Meu incensário fumegava com orações de louvor e era doce o som da minha voz”.

“Gloriosas são as Tuas obras, Pai de todo o bem,
Teu é este universo, ó Todo Poderoso
Maravilhosamente belo; pois Tu mesmo és maravilhoso.'

Muitas vezes ordenei às nuvens, ao sol, à lua e às estrelas que cantassem em Seu louvor. Todos os dias eu ordenava aos rebanhos sobre os montes que mugissem Suas glórias; e aos leões que rugissem em Sua honra. Todas as noites eu dizia às estrelas que brilhassem e às florezinhas que desabrochassem, mas, ai de mim, perdi minha mitra. E eu, que já fui sacerdote para Deus, deixei de ser Seu santo servo”. Ah! Adão, tu me fizeste perder muito; mas além vejo o meu Salvador; Ele tira a coroa da Sua cabeça para colocar uma coroa na minha cabeça; Ele põe uma mitra na Sua cabeça, para ser sacerdote, para colocá-la também na minha, e na cabeça de cada um do Seu povo, pois, como acabamos de cantar

“Nossa alma com sangue Tu remiste
Para da prisão nos libertar
Reis e sacerdotes nos fizeste
E Contigo nós iremos reinar”.

Justamente o que foi perdido por Adão, a realeza e o sacerdócio de Cristo, agora é conquistado por todos os crentes. E o que mais tu perdeste, Adão? “Ora, eu perdi o paraíso”. Silêncio, homem! Não digas nada sobre isso, pois Cristo comprou-me um paraíso no valor de dez mil Édens como o teu. Por isso, podemos muito bem te perdoar. E o que mais tu perdeste? “Ora, a imagem do meu Criador”. Ah! Cala-te, Adão! Em Jesus Cristo, todos temos algo melhor, pois temos a Sua perfeita justiça e, com certeza, isso é melhor que a imagem do Criador, pois são as próprias vestes e o próprio manto usados por Ele. Portanto, Adão, tudo o que perdeste, eu recuperei. Cristo resgatou tudo o que vendemos por nada. Eu, que vendi por nada minha herança divina, devo recuperá-la sem ter de comprá-la — o dom do amor, Cristo diz, é meu. Portanto, ouvi o toque da trombeta do Jubileu (Levítico 25.9-10): Cristo redimiu todas as posses perdidas do Seu povo.

4. E, agora, chegamos à última coisa que Cristo redimiu, embora não seja o último ponto do sermão. Cristo redimiu este mundo. “Ora”, diz alguém, “mas isso é estranho, acho que você está se contradizendo”. Pare! Por favor, entenda o que eu quero dizer com o mundo. Não estamos nos referindo a todos os homens que há no mundo; nunca tivemos tal intenção. Vou lhes dizer como Cristo redimiu o mundo. Com a queda de Adão, Deus amaldiçoou o mundo com esterilidade. “Ela (a terra) produzirá também cardos e abrolhos, e tu comerás a erva do campo.” (Gênesis 3:18). Deus amaldiçoou a terra. Quando Cristo veio ao mundo, uma coroa dos espinhos amaldiçoados foi colocada em Sua cabeça e Ele foi feito rei da maldição. E, naquele dia, Ele comprou a redenção do mundo da sua maldição. É nisto que eu creio; e acredito que, com base na Escritura, quando Cristo voltar, este mundo se tornará, em todos os lugares, tão fértil quanto o jardim do Paraíso costumava ser. Creio que o próprio deserto do Saara um dia florescerá como o Sarom e se alegrará como o jardim do Senhor. Não consigo imaginar que este pobre mundo seja um errante planetário perdido para sempre. Creio que a Terra ainda será verdejante como antes. Temos evidências nas camadas de carvão abaixo da terra de que este mundo já foi muito mais fértil do que é agora. Outrora, árvores gigantescas abriam seus braços poderosos e eu quase diria que apenas um braço de uma daquelas árvores poderia construir metade de uma floresta para nós hoje. Naquele tempo, poderosas criaturas, muito diferentes das nossas, espreitavam pela terra; e creio firmemente que uma vegetação luxuriante, como este mundo já conheceu, será restaurada para nós, e veremos novamente um jardim tal como aquele que não conhecemos. Não mais amaldiçoada com ferrugem e mofo, ou com explosões e destruições, veremos uma terra como o próprio céu —

“Onde a primavera é eterna
E as flores não murcham”.
Quando Cristo voltar, Ele fará exatamente isso.

Em geral, acredita-se também que foi no dia da queda que os animais se tornaram ferozes e começaram a atacar uns aos outros, mas disso não temos certeza. No entanto, se leio corretamente a Escritura, encontro que o leão se deitará junto ao cabrito e o leopardo comerá palha como o boi, e uma criancinha meterá a mão na toca do basilisco (Isaías 11.6-7). Eu realmente acredito que no futuro milênio, que virá em breve, não haverá mais leões devoradores, tigres sedentos de sangue ou criaturas que devoram a sua própria espécie. Deus restaurará, até mesmo os animais do campo, todas as bênçãos que foram perdidas em Adão.

E mais, há também uma maldição pior do que a que recaiu sobre este mundo. É a maldição da ignorância e do pecado: ela também deve ser removida. Vês aquele planeta? Ele rodopia pelo espaço — brilhante e glorioso. Ouves as estrelas cantando por causa da sua nova irmã? Aquela é a terra; agora ela brilha. Pare! Viste a sombra que a atravessa? O que a causou? O planeta está obscurecido e sobre sua face paira uma sombra dolorosa. Falo metaforicamente, é claro. Olha lá o planeta; ele desliza pela noite afora; só um pontinho de luz. Observa outra vez, ainda não chegou o dia em que sua glória será renovada, mas está vindo depressa. Assim como a serpente solta sua pele e a deixa para trás lá no vale, esse planeta também deixa para trás suas nuvens e resplandece como antes. Quem fez isso? Quem afastou a névoa? Quem retirou a escuridão? Quem removeu as nuvens? “Fui eu”, diz Cristo, o sol da justiça, “Eu dispersei a escuridão e fiz o mundo resplandecer novamente”. Eis que vejo um novo céu e uma nova terra, onde habita a justiça. Deixem-me explicar o que quero dizer, para não ser mal interpretado. Este mundo agora está coberto de pecado, ignorância, engano, idolatria e crime. Mas vem o dia em que a última gota de sangue será bebida pela espada; ele não será mais intoxicado com sangue; Deus fará cessar as guerras até as extremidades da terra. Está chegando o dia — ó, tomara fosse hoje! — em que os pés de Cristo pisarão a terra. Então os ídolos serão lançados de seus tronos e as superstições de seus pináculos; a escravidão cessará e os crimes passarão. E a paz estenderá suas asas pelo mundo afora e todos saberão que Cristo morreu pelo mundo e que Ele o venceu. “Porque”, diz Paulo, “sabemos que toda a criação, a um só tempo, geme e suporta angústias até agora.” (Romanos 8:22). Aguardando o quê? Aguardando a redenção, e, por redenção, entendo exatamente o que acabei de lhes explicar, que este mundo será lavado de todos os seus pecados; sua maldição será retirada e suas manchas removidas. E este mundo será tão belo como quando Deus o esboçou pela primeira vez em Sua mente; como quando, como uma faísca brilhante, ele foi lançado pelo golpe do martelo eterno em sua órbita. Isso, com certeza, Cristo fará.

II. E agora, uma palavra ou duas sobre o último ponto — “COPIOSA REDENÇÃO”.

É copiosa o suficiente se considerarmos o que já lhes disse a respeito do que Cristo comprou. É claro que eu não poderia torná-la mais copiosa se tivesse mentido contra minha consciência e dito que Ele comprou todos os homens; pois de que adianta eu ser comprado com sangue, se continuo perdido? De que me serve Cristo ter morrido por mim, se continuo mergulhado nas chamas do inferno? Como glorificará a Cristo Ele ter me redimido, mas falhado em Seu propósito? Certamente é mais honroso para Ele, crer que, de acordo com a Sua vontade imutável, soberana e onisciente, Ele lançou os alicerces tão fundo quanto pretendia que fosse a estrutura e então fez tudo exatamente conforme a Sua vontade. No entanto, a “redenção é copiosa”. Brevemente, então, emprestem-me seus ouvidos por alguns instantes.

É “copiosa” quando consideramos os milhões que são redimidos. Pense, se puder, em como é grande a hoste dos que já “lavaram suas vestiduras e as alvejaram no sangue do Cordeiro” (Apocalipse 7:14); depois pense em quantos agora, com os pés cansados, estão trilhando o caminho para o Paraíso, todos redimidos. Todos eles se sentarão à mesa das bodas do Cordeiro. Não é uma “copiosa redenção” se pensarmos na “grande multidão que ninguém pode contar” que lá estará reunida? Encerramos dizendo: “E quanto a você?” Se tantos são redimidos, por que você não haveria de ser? Por que não haveria de buscar misericórdia, sabendo que quem busca encontra, pois não teria buscado a menos que estivesse preparado para isso?

É “copiosa” também se considerarmos os pecados de todos aqueles que são redimidos. Por maiores que sejam os pecados de uma alma redimida, esta redenção é suficiente para cobrir todos eles — para lavar todos eles

Por mais que seus pecados excedam
Todas as estrelas do céu
Apontando para o trono eterno
Como os picos das grandes montanhas

Ainda assim esta copiosa redenção pode remover todos eles. Eles não são maiores do que Cristo anteviu e prometeu remover. Portanto, eu imploro, corram para Jesus, crendo que, por maior que seja a culpa que carregam, Sua expiação é grande o suficiente para todos os que vão a Ele e, por isso, vocês podem ir em segurança.

Lembrem-se mais uma vez de que esta “copiosa redenção” é copiosa porque é suficiente para todas as angústias de todos os santos. As carências dos santos são quase infinitas, mas a expiação de Cristo é realmente infinita. Seus problemas são quase indizíveis, mas essa expiação é totalmente inexprimível. Você mal pode contar todas as suas necessidades, mas sobre essa redenção eu sei que você não pode contar. Creia, então, que é uma “copiosa redenção”. Ó pecador crente, quão doce é saber que há uma “copiosa redenção”, e você tem parte nela. Com toda certeza você será levado para casa em segurança, pela graça de Jesus. Você está buscando a Cristo? Ou melhor, você reconhece que é um pecador? Se sim, eu tenho a autoridade de Deus para dizer a todo aquele que confessar seus pecados que Cristo o redimiu. “Fiel é a palavra e digna de toda aceitação: que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal.” (1 Timóteo 1:15). Você é um pecador? Não quero dizer um pecador fingido; há uma porção desses por aí e, neste momento, não tenho evangelho para pregar a eles. Não me refiro aos pecadores hipócritas que gritam: “Sim, sou pecador” — como se fosse um elogio, mas que realmente não querem dizer isso. A esses pregarei outra coisa: em outro momento pregarei contra a sua justiça própria; mas agora não falarei nada sobre Cristo, pois Ele “Não veio chamar justos, e sim pecadores, ao arrependimento.” (Lucas 5:32). Mas, e você, você é um pecador, no sentido fidedigno da palavra? Você reconhece que está perdido, arruinado e sem esperança? Se reconhece, em nome de Deus eu lhe rogo que creia nisto: Cristo morreu para salvá-lo; pois, tão certo quanto Ele lhe revelou a sua culpa por meio do Espírito Santo, Ele não o deixará até lhe revelar o Seu perdão por Seu único Filho. Se você reconhece seu estado de perdição, em breve você conhecerá o seu estado glorioso. Crê em Jesus agora; então serás salvo e irás embora feliz — muito mais que reis poderiam sonhar. Crê que, sendo tu um pecador, Cristo te redimiu — justamente porque reconheces teu estado de perdição, culpa e ruína, tens nesta noite o direito e o privilégio de se banhar na fonte cheia do sangue “derramado por muitos para remissão dos pecados”. Crê nisso e, então, saberás o significado deste texto: “Portanto, justificado pela fé, temos paz com Deus, por meio de nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual também temos recebido a justificação” (Rm 5.1-2). Que o Senhor te despeça com a Sua bênção, em nome de Jesus!

Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza

NT1 — para melhor compreensão da ilustração de Spurgeon, ver artigos sobre os corsários e o tráfico de europeus

NT2 — Salt Lake City, cidade dos Estados Unidos fundada pelos mórmons em 1847

NT3 — na época de Spurgeon acreditava-se que os olhos possuíam uma espécie de tendão ocular que se rompia no momento da morte ou quando a pessoa ficava cega — “eyestring: tendons formerly believed to be present in the eye and to break at the onset of death or blindness” (https://www.collinsdictionary.com/pt/dictionary/english/eyestrings).

terça-feira, 9 de agosto de 2022

O Tesouro da Graça

Sermão nº 295

Rev. Charles H. Spurgeon

Ministrado em 22 de janeiro de 1860

Exeter Hall, Strand, Londres, Inglaterra


“A remissão dos pecados, segundo a riqueza da sua graça” — Efésios 1:7

Da mesma forma que Isaías está entre os profetas, Paulo está entre os apóstolos; cada qual com sua própria distinção, levantado por Deus para um propósito notável, reluzindo como uma estrela de brilho extraordinário. Isaías falou mais de Cristo, e descreveu com mais detalhes Sua paixão e morte, do que todos os outros profetas juntos. Paulo proclamou a graça de Deus — livre, plena, eterna e soberana — muito mais que todo o glorioso colégio apostólico. Às vezes, ele subia a alturas tão incríveis ou mergulhava em águas tão profundas que nem Pedro conseguia segui-lo. Este prontamente confessou: “nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada, coisas difíceis de entender” (2Pe 3.15-16). Judas podia escrever sobre o juízo de Deus e fazer admoestações com palavras terríveis, “homens ímpios, que transformam em libertinagem a graça de nosso Deus” (Judas 1:4). No entanto, ele não podia dizer, como Paulo, como o propósito da graça foi planejado na Mente eterna ou como a experiência da graça é sentida e percebida no coração humano. Há também Tiago que, como ministro fiel, podia lidar muito bem com as evidências práticas do caráter cristão. E, mesmo assim, ele parece não sair da superfície. Ele não se aprofunda no substrato onde deve repousar o solo visível de todas as graças espirituais. Até João, o mais favorecido de todos os apóstolos que foram companheiros de nosso Senhor na terra — por mais doces que sejam as palavras do discípulo amado sobre a comunhão entre o Pai e Seu Filho Jesus Cristo — até mesmo ele não fala da graça com tanta riqueza quanto Paulo, “para que, em mim, o principal, evidenciasse Jesus Cristo a sua completa longanimidade, e servisse eu de modelo a quantos hão de crer nele para a vida eterna” (1 Timóteo 1:16). Não que, de fato, possamos ter a liberdade de preferir um apóstolo a outro. Não podemos dividir a igreja, dizendo eu sou de Paulo, eu de Pedro, e eu de Apolo; mas podemos reconhecer o instrumento que Deus aprouve usar; podemos admirar a maneira pela qual o Espírito Santo o dispôs para a Sua obra; podemos, com as igrejas da Judeia, “glorificar a Deus em Paulo”. Entre os primeiros pais da Igreja, Agostinho foi apontado como o “Doutor da Graça”, pelo tanto que se deleitava nas doutrinas que exibem a generosidade do favor divino. E, com certeza, podemos afirmar o mesmo de Paulo. Entre seus pares, ele superou a todos ao falar da graça que traz salvação. O senso de graça permeava cada um de seus pensamentos da mesma forma que o sangue da vida corre em cada uma das veias de uma pessoa. Quando fala da sua conversão, ele diz que “foi chamado pela graça”. E não somente isso, ele vê a graça antes da sua conversão, “separando-o desde o ventre da sua mãe” (Gálatas 1:15). Ele atribui todo o seu ministério à graça. “A mim, o menor de todos os santos, me foi dada esta graça de pregar aos gentios o evangelho das insondáveis riquezas de Cristo” (Efésios 3:8). Nós o vemos, em qualquer ocasião e em quaisquer circunstâncias, estando enfermo ou subindo ao terceiro céu pela revelação, tendo apenas uma conta a dar de si mesmo: “Mas, pela graça de Deus, sou o que sou” (1 Coríntios 15:10).

    Não há ministros que lutem com tanta convicção e inflexibilidade pela graça livre, soberana e incondicional, quanto aqueles que, antes de sua conversão, se deleitavam com pecados grosseiros e ultrajantes. Pregadores bem-educados, criados em lares piedosos e enviados do berço à escola, da escola à faculdade e da faculdade ao púlpito, que não enfrentaram muitas tentações ou não foram resgatados de antros profanos, comparativamente, pouco sabem e pouca ênfase dão à livre graça. Só um Bunyan, cuja boca exalava maldições, ou um Newton, um verdadeiro monstro pecaminoso, é como aqueles que não se esquecem, nem por um minuto, da graça que os arrebatou da cova e os tirou como um tição da fornalha. Estranho, de fato, é que Deus faça assim. A providência é tão inescrutável que permite a alguns de Seu povo escolhido vagar e perambular até onde uma ovelha pode se extraviar. Tais homens, no entanto, se tornam os mais valentes defensores da graça que salva o pecador da desgraça eterna! 

    Nesta manhã, pretendemos lhes falar sobre as riquezas da graça de Deus, este é o Tesouro; depois, falaremos sobre o Perdão de Pecados, o qual deve ser julgado por essa Medida; o perdão é segundo as riquezas da Sua graça; e então, vamos encerrar considerando alguns privilégios relacionados a ela.

    1. Primeiro, consideremos as RIQUEZAS DA SUA GRAÇA. Ao tentar sondar aquilo que é insondável, suponho que devamos usar algumas das comparações com as quais costumamos avaliar a riqueza dos ricos e poderosos deste mundo. Certa vez, o embaixador espanhol, nos dias gloriosos da Espanha, foi visitar o embaixador francês e foi convidado por ele para ver os tesouros do seu rei. Todo orgulhoso, o embaixador francês mostrou seus depósitos repletos dos bens mais caros e preciosos da terra. “Será que vocês têm gemas tão preciosas”, disse ele, “ou alguma vez já viram coisas tão magníficas nas terras do seu rei?”. “Você acha que o seu rei é rico?”, respondeu o embaixador da Espanha, “porque os depósitos de tesouro do meu rei não têm fundo!” — fazendo alusão, é claro, às minas do Peru e PetrosaNT1. O mesmo acontece com as riquezas da graça, há minas tão profundas que o entendimento finito do homem sequer pode imaginar. Por mais penetrante que seja nossa investigação, ainda existe um abismo tão profundo que só nos causa perplexidade. Quem pode desvendar os atributos de Deus? Quem pode compreender o Todo-Poderoso com perfeição? Não conseguimos nem avaliar a qualidade e as propriedades da graça conforme ela se encontra na mente de Deus! O amor no peito humano é paixão. Com Deus não é assim. O amor é um atributo da Essência Divina. Deus é amor. Nos homens, graça e generosidade podem se tornar um hábito, mas, com Deus, a graça é um atributo intrínseco da Sua Natureza. Ele nunca deixará de ser gracioso. Por necessidade da Sua divindade, Ele é onipotente e onipresente e, da mesma forma, por absoluta necessidade da Sua Divindade, Ele é gracioso!

    Portanto, irmãos, entremos nesta mina extraordinária dos atributos da graça de Deus. Cada um de Seus atributos é infinito, por isso, o atributo da graça não tem limites. É impossível imaginar a infinitude de Deus; sendo assim, por que eu deveria tentar descrevê-la? No entanto, lembre-se de que, como os atributos de Deus têm todos a mesma amplitude, a dimensão de um deve ser igual à do outro. Ou, ainda, se um atributo é ilimitado, o outro também é. Ora, é impossível conceber qualquer limite para a Onipotência de Deus. O que ele não pode fazer? Ele pode criar, Ele pode destruir; Ele pode chamar à existência uma miríade de universos ou pode apagar a luz de miríades de estrelas com a mesma facilidade com que apagamos uma vela! Ele tem apenas que desejar e infindáveis criaturas O louvam; outro desejo e as mesmas criaturas se desvanecem na sua própria insignificância, como a espuma do mar se desfaz na onda que a leva e se perde para sempre. O astrônomo aponta seu telescópio para o espaço longínquo e não consegue encontrar os marcos do poder criador de Deus; mas se ele achasse que os encontrou, então teríamos de informá-lo que todos os mundos do mundo que se aglomeram no espaço, abundantes como as gotas de orvalho que cobrem os prados pela manhã, são apenas fragmentos do poder de Deus. Ele pode fazer muito mais que isso, pode reduzi-los a nada e começar tudo de novo! Ora, tão ilimitada quanto Seu poder é a infinitude da Sua graça. Como ele tem poder para fazer qualquer coisa, Ele também tem graça suficiente para dar qualquer coisa — dar tudo, até mesmo aos piores pecadores! 

    Pense em qualquer outro atributo de Deus — Sua Onisciência, por exemplo, não há limites para ela. Sabemos que Seus olhos estão sobre qualquer indivíduo da nossa raça. Ele o vê tão detalhadamente quanto se fosse a única criatura da terra. A águia se gaba de ter uma visão poderosa e, embora possa olhar diretamente para o sol, também pode, mesmo estando a grande altura, detectar o movimento de pequenos peixes nas profundezas do mar. Contudo, o que é isso comparado à onisciência de Deus? Seus olhos observam o sol percorrendo o seu caminho; Seus olhos percebem o cometa voando pelo espaço. Seus olhos perscrutam todos os limites da criação habitada ou inabitada. Nada há que possa se esconder da luz, pois com Ele não há trevas. “Se subo aos céus, lá estás; se faço a minha cama no mais profundo abismo, lá estás também; se tomo as asas da alvorada e me detenho nos confins dos mares” (Salmo 139:8,9)

Sua mão logo chegará

E o fugidio prenderá


Não há limites para o Seu entendimento, nem para a Sua graça. E, assim como Seu conhecimento abrange todas as coisas, Sua graça abrange todos os pecados, todas as provações e todas as fraquezas das pessoas que estão sob o Seu cuidado. Ora, queridos irmãos, da próxima vez que tivermos receio de que a graça de Deus possa se exaurir, examinemos essa mina e pensemos em tudo quanto já foi tirado dela sem que ela diminuísse um milímetro sequer. Toda água já evaporada do mar jamais diminuiu sua profundidade, e todo o amor e misericórdia demonstrados por Deus aos incontáveis membros da raça humana jamais diminuíram uma gota sequer da grandeza da Sua graça.

Mas sigamos em frente, às vezes avaliamos a riqueza das pessoas não apenas pela posse de minas e coisas afim, mas também pelo que elas guardam em seu tesouro. Por isso, vou levá-los, irmãos, ao reluzente tesouro da graça divina. Vocês sabem o seu nome, é chamado de Aliança Eterna. Já ouviram falar da maravilhosa história acontecida na eternidade passada, antes da fundação do mundo? Deus sabia que o homem cairia, mas, no Seu propósito eterno e na Sua graça infinita, Ele determinou o resgate de uma multidão que não se pode contar. Foi um Conselho solene entre Pai, Filho e Espírito Santo. Assim disse o Pai: — “Desejo que aqueles a quem escolhi sejam salvos!” E o Filho disse: — “Pai, estou pronto a derramar Meu sangue e morrer para que a Tua justiça seja satisfeita e o Teu propósito seja executado.” E o Espírito falou: — “Desejo que aqueles a quem o Filho redimir com sangue sejam chamados pela graça, sejam vivificados, sejam preservados, sejam santificados e aperfeiçoados, e levados em segurança para casa”. Então a Aliança foi escrita, assinada, selada e ratificada pela Santíssima Trindade. O Pai deu Seu Filho, o Filho deu a Si mesmo e o Espírito Santo prometeu Sua influência e Sua presença a todos os escolhidos. Portanto, o Pai deu ao Filho todas as pessoas a quem Ele escolheu, o Filho deu a Si mesmo aos eleitos e os levou a ter comunhão com Ele; e, então, o Espírito, na Aliança, prometeu que todos os escolhidos seriam finalmente levados para casa em segurança. Sempre que penso na antiga aliança da graça, fico totalmente extasiado e maravilhado pela sua graça. Seja qual for o atrativo, eu jamais poderia ser arminiano; a verdadeira poesia da nossa santa religião está nas coisas antigas das colinas eternas — a gloriosa aliança firmada, selada e ratificada, em todas as coisas bem ordenada desde a eternidade passada.

    Pare e pense, querido ouvinte, muito antes da criação do mundo, muito antes de Deus ter estabelecido as fundações dos montes ou ter derramado as águas dos mares da concha das Suas mãos, Ele já tinha escolhido o Seu povo e colocado neles o Seu coração. A eles, Ele deu a Si mesmo, Seu Filho, Seu céu, Seu tudo. Por eles, Cristo determinou deixar Sua alegria, Seu lar, Sua vida. A eles o Espírito prometeu todos os Seus atributos, para que fossem abençoados. Ó graça divina, quão gloriosa és, sem princípio nem fim. Como te louvarei? Tangei a harpa, ó anjos; cantai estes nobres temas, o amor do Pai, o amor do Filho, o amor do Espírito.

    Irmãos, se pensarmos bem, isso nos ajuda a avaliar corretamente as riquezas da graça de Deus. Quando lemos os termos da aliança, do começo ao fim, vemos que ela envolve eleição, redenção, vocação, justificação, perdão, adoção, céu e imortalidade — ao ler tudo isso, podemos dizer: "Esta é a riqueza da graça — o Deus grande e infinito! Quem é semelhante a Ti, ó Deus, por todas as riquezas do teu amor”!

    Além disso, a riqueza dos grandes reis muitas vezes pode ser avaliada pela grandiosidade dos monumentos que eles ergueram para registrar seus feitos. Hoje ficamos impressionados com as maravilhosas riquezas dos reis de Nínive e da Babilônia. Os reis da atualidade, com todos os seus aparatos, não conseguiriam construir a quantidade absurda de monumentos como aqueles por onde passeava Nabucodonosor. Isso sem falar das pirâmides, onde podemos ver o que a riqueza das nações conseguiu realizar. Do outro lado do mar, no México e no Peru, vemos as relíquias de povos semi bárbaros e ficamos atordoados e maravilhados ao pensar nas jazidas de minérios e em toda riqueza que eles devem ter possuído para que tais obras pudessem ser construídas. Talvez possamos avaliar melhor as riquezas de Salomão se pensarmos nas grandes cidades que ele construiu no deserto, Tadmor/Palmira. Só quando visitamos suas ruínas, observando suas enormes colunas e sua escultura magnífica, é que percebemos o quanto Salomão era rico. Caminhando por entre elas, podemos nos sentir como a Rainha de Sabá, pensando que as Escrituras não falam nem da metade da riqueza de Salomão. Irmãos, Deus nos leva a examinar tesouros bem maiores que os tesouros de Salomão ou Nabucodonosor, ou de Montezuma, ou de qualquer um dos faraós. Olhe além e veja, ao redor do trono, a grande multidão vestida de branco, comprada pelo sangue de Cristo — ouça como eles cantam com vozes triunfantes e melodias seráficas: “Àquele que nos amou, e, pelo seu sangue, nos libertou dos nossos pecados, a ele a glória e o domínio pelos séculos dos séculos. Amém!” E, quem são eles? Quem são esses troféus da graça de Deus? Alguns vieram dos antros de prostituição; outros das tavernas de bebedeira. E, mais ainda, as mãos de alguns, hoje tão puras e belas, um dia estiveram manchadas com o sangue dos santos. Vejo os homens que pregaram na cruz o Salvador; homens que amaldiçoaram a Deus e invocaram sobre si morte e condenação. Vejo Manassés, que derramou tanto sangue inocente, e o ladrão da cruz que, no último instante, olhou para Cristo e disse: “Senhor, lembra-te de mim”. E nem é preciso ir tão longe; olhe ao seu redor, meu irmão, talvez você não conheça quem está assentado a seu lado. Mas há histórias da graça que podem ser contadas aqui que fariam os próprios anjos cantar como jamais cantaram. Bem sei como este rosto se enche de lágrimas quando ouve as histórias de como a livre graça operou nesta igreja. Há também aqueles a quem conheço, mas que, obviamente, vocês não conhecem, os quais estiveram entre as piores pessoas do mundo, a escória da sociedade! Alguns, que antes respiravam blasfêmias e viviam embriagados, agora estão aqui  — servos do Senhor e da Sua igreja — e seu maior prazer é dar testemunho do Salvador que encontraram. Ah, meu ouvinte, talvez sejas um destes troféus, e se assim for, a melhor prova das riquezas da graça de Deus é aquela que encontras na tua própria alma! Suponho que Deus seja gracioso quando vejo a salvação de outras pessoas, mas sei que Ele é, porque Ele me salvou. Aquele garoto teimoso e rebelde, que zombava do amor de uma mãe e não se comovia com todas as suas orações, que só desejava conhecer um pecado para poder cometê-lo; não é ele que está aqui hoje para pregar o evangelho da graça de Deus a vocês? Sim. Então, não há pecador fora do inferno que tenha tanto pecado que a graça não possa salvá-lo O amor que um dia me alcançou também pode alcançá-lo. Agora que conheço as riquezas da graça, espero prová-las e senti-las no fundo do meu coração. Caro ouvinte, que você também as conheça e possa juntar-se à nossa poetisa, que diz:

Então mais alto que a multidão cantarei

Enquanto ressoam as retumbantes mansões celestiais

Com os brados da graça soberanaNT2

Avancemos um pouco mais. Até aqui examinamos a mina, os tesouros e os monumentos. Mas ainda há mais. Uma coisa que impressionou a rainha de Sabá a respeito das riquezas de Salomão foi a suntuosidade da sua mesa (1Re 10; 2Cr 9). As multidões se sentavam para comer e beber e, embora fosse muita gente, todos tinham o suficiente e ainda sobrava. Ela ficou fora de si quando viu as provisões que foram trazidas para um único dia. Neste momento não me recordo da passagem que fala sobre a quantidade de bois cevados, bois de pasto, veados e gazelas e caça de todos os tipos, e de quantas medidas de farinha e galões de óleo eram trazidos diariamente à mesa de Salomão; mas era algo incrívelNT3. E as multidões que iam festejar também eram incríveis, mas todos tinham o suficiente. Agora, meus irmãos, pensemos na hospitalidade diária do Deus da graça. Milhares do Seu povo estão hoje sentados para festejar. Famintos e sedentos, eles vêm ao banquete com grande apetite; no entanto, ninguém vai embora com fome. Há o suficiente para cada um, o suficiente para todos, o suficiente para sempre. Embora as hostes que ali se alimentem sejam incontáveis como as estrelas do céu, não encontro ninguém sem a sua porção. O Senhor abre Suas mãos e supre a necessidade de cada santo vivo sobre a face da terra. Pense em quanta graça um santo requer a cada dia; a quantidade é tão grande, que nada, a não ser o Infinito, poderia supri-la. Todos os dias queimamos tanto combustível para manter o fogo do amor em nosso coração que poderíamos acabar com as riquezas das minas de carvão da Inglaterra num instante. Com certeza, se não fossem os infinitos tesouros da graça, o consumo diário de um único santo poderia exigir tudo o que se encontra sobre a face da terra. Além disso, não é somente um santo, mas milhares deles, não por um único dia, mas por muitos anos — não só por muitos anos, mas geração após geração, século após século, raça após raça, vivendo na plenitude de Deus em Cristo. E ainda assim, nenhum deles tem fome. Todos bebem até serem saciados; todos comem e ficam satisfeitos. Quantas riquezas da graça, então, podemos ver na suntuosidade da Sua hospitalidade!   

    Às vezes, irmãos, penso que, se eu pelo menos pudesse ficar com as sobras na porta dos fundos da graça de Deus eu já estaria satisfeito; tal como a mulher que disse: “Sim, Senhor, porém os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos” (Mateus 15:27); ou como o filho pródigo: “trata-me como um dos teus trabalhadores” (Lucas 15:19).  No entanto, lembre-se de que nenhum filho de Deus foi feito para viver de sobras. Deus não dá os restos da Sua graça nem ao pior deles, mas todos são alimentados como Mefibosete (2 Samuel 9.13); eles comem os pratos mais saborosos na própria mesa do rei. E, se um deles pode falar pelos demais, creio que em matéria da graça todos temos a refeição de Benjamim (Gênesis 43.34) — temos dez vezes mais do esperávamos e, embora não mais que as nossas necessidades, ainda assim, muitas vezes ficamos impressionados diante da maravilhosa abundância da graça que Deus nos dá na aliança e na promessa.

    Agora vejamos outro ponto para ilustrar a grandeza das riquezas da graça de Deus. As riquezas de uma pessoa muitas vezes podem ser julgadas pelas vestes de seus filhos, pela maneira como seus servos e seus familiares estão vestidos. Não se espera que filhos de pessoas pobres, embora bem vestidos, tenham roupas semelhantes às usadas por filhos de príncipes. Vejamos, então, quais são as vestes trajadas pelo povo de Deus e como eles são cuidados. Aqui falo novamente de um assunto que requer muita imaginação, e a minha não é das melhores. Os filhos de Deus estão envoltos em um manto, um manto sem costura, que a terra e o céu não poderiam comprar se um dia fosse perdido. Sua textura é superior ao fino linho dos mercadores, sua brancura é mais alva que a neve. Nenhum tear na terra poderia tecê-lo, mas Jesus deu Sua vida para fazer o meu manto de justiça. Havia uma gota de sangue em cada laçada e cada fio foi tecido das agonias do Seu próprio coração. É um manto divino, completo; muito melhor que aquele usado por Adão na perfeição do Éden. Adão tinha apenas uma justiça humana, embora perfeita, mas nós temos uma justiça divinamente perfeita. Surpreendentemente, minh’alma, estás vestida, pois as vestes do teu Salvador estão sobre ti; o manto real de Davi está envolto em seu Jônatas. Veja o povo de Deus, veja como também estão vestidos com as vestes da santificação. Será que já houve um manto assim? Ele é literalmente engomado com joias. Deus veste assim até mesmo o menor do Seu povo, todos os dias, como se fosse dia de casamento. Ele os adorna como uma noiva adorna a si mesma com joias. Ele lhes deu Etiópia e Sabá e os adornará com o ouro de Ofir. Que riquezas da graça deve haver, então, no Deus que veste assim os Seus filhos!

    E, para concluir este ponto que mal comecei, se você quiser conhecer todas as riquezas da graça divina, pense no coração do Pai ao enviar seu Filho à terra para morrer. Pense nas linhas do Seu semblante ao derramar Sua ira sobre o Seu amado Filho unigênito. Pense também na misteriosa escrita na carne e na alma do Salvador quando, em agonia na cruz, as ondas de tormento cada vez maiores rolam sobre o Seu peito. Se queres saber o que é o amor, deves ir a Cristo e ver um homem tão cheio de dor que Sua cabeça, Seus cabelos e Suas vestes estão ensanguentadas. Foi o  amor que O fez suar, por assim dizer, grandes gotas de sangue. Se quiseres saber o que é o amor, deves olhar para o Onipotente escarnecido por Suas criaturas, deves ouvir o Imaculado caluniado pelos pecadores, deves ouvir o Eterno gemendo e clamando na agonia da morte, “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste”? Enfim, para resumir, as riquezas da graça de Deus são infinitas, além de todos os limites — são inesgotáveis; nunca se acabam; são toda-suficientes; são suficientes para cada alma alcançada por elas. Serão suficientes para sempre, enquanto durar a terra, até o último vaso de misericórdia ser levado para casa em segurança. 

    Então, podemos dizer muito sobre as riquezas da Sua graça.

    II. Por um minuto ou dois, deixem-me discorrer sobre O PERDÃO DOS PECADOS. O tesouro da graça de Deus é a medida do nosso perdão; o perdão dos nossos pecados é de acordo com as riquezas da Sua graça. Portanto, podemos inferir que o perdão que Deus concede ao penitente não é um perdão mesquinho. Você já pediu perdão a alguém e a pessoa disse: “OK, eu te perdoo”, e você pensou: “Eu nem teria pedido perdão se achasse que ele iria me perdoar desse jeito. Eu poderia continuar como estava, em vez de ser perdoado com tanta má vontade”. No entanto, quando Deus perdoa alguém, mesmo que seja o maioral dos pecadores, Ele estende a Sua mão e o perdoa de bom grado. Na verdade, há tanta alegria no coração de Deus quando Ele perdoa quanto há no coração do pecador quando é perdoado. Deus é tão abençoado em dar quanto nós somos em receber. É da Sua própria natureza perdoar. Ele deve ser gracioso, deve ser amoroso e, quando Ele deixa Seu coração de amor nos libertar dos nossos pecados, é com um fluxo ilimitado. Ele o faz voluntariamente, sem restrição. Mais uma vez: se o perdão é proporcional às riquezas da Sua graça, podemos ter certeza de que é um perdão ilimitado; não é o perdão de apenas alguns pecados, deixando o resto por nossa conta. Não, isso não seria divino, não seria consistente com as riquezas da Sua graça. Quando Deus perdoa, Ele retira a marca de cada pecado que o crente já cometeu ou irá cometer. Este último ponto talvez o deixe chocado, mas eu creio, como John KentNT4, que no sangue de Cristo

Há perdão para todas transgressões passadas

Não importa quão negras tenham sido

Ó! Minh’alma, que maravilhosa visão

Para os pecados que vierem também há perdão

Sejam quais forem os nossos pecados, por mais odiosos, por mais numerosos que sejam, no momento em que cremos, cada um deles é apagado. No livro de Deus não há o registro de um pecado sequer contra alguém que esteja aqui hoje, cuja confiança está em Cristo. Nenhum pecado, nem mesmo a sombra ou a mancha ou o resquício de um pecado permanece, tudo se foi. Quando o dilúvio de Noé cobriu as montanhas mais altas, com certeza cobriu também os montículos; e, quando o amor Deus cobre os pequenos pecados, cobre também os grandes, e todos se vão de uma vez por todas! Quando o valor integral de uma conta é recebido, nada mais resta a ser cobrado; e, quando Deus perdoa os pecados de um crente, não sobra nenhum; nem mesmo um pequenino que possa ser trazido à Sua memória novamente. E não é só isso, quando Deus perdoa, Ele não só perdoa todos os pecados, Ele os perdoa de uma vez por todas. Alguns dizem que Deus perdoa as pessoas e ainda assim elas podem se perder. Mas que belo deus é esse! Eles acreditam que o pecador penitente encontra misericórdia, mas que, se ele tropeçar ou cair em algum momento, vai ser retirado da aliança da graça e perecer. Não posso e nem quero acreditar nesse tipo de aliança. Para mim, ela é totalmente desprezível. O Deus a quem amo, quando perdoa, não pune depois. Por um único sacrifício há plena remissão de todos os pecados que eram ou serão contra um crente. Mesmo que você viva até que todos os seus fios de cabelo embranqueçam três vezes, ou que os mill anos de Matusalém passem pela sua fronte, nem um único pecado será levantado contra você, e nem você será punido por qualquer um deles. O pecado é perdoado para sempre, totalmente perdoado, de modo que nem uma parte do castigo será executada contra você. No entanto, alguém diz: “Bem, mas como é que Deus pune os Seus filhos”? Eu respondo: “Não pune”. Ele os castiga como Pai, mas isso é diferente da punição de um juiz. Se o filho de um juiz fosse levado ao tribunal e fosse livremente perdoado de tudo o que fez de errado; se a justiça o exonerasse e absolvesse, mas ainda houvesse mal em seu coração, o pai, por amor ao filho, poderia ter de extirpá-lo. Existe uma grande diferença entre uma vara na mão do carrasco e uma vara na mão do pai. Deus me castiga se eu pecar contra Ele, ainda que não seja pela culpa do pecado — o castigo não é para isso — a cláusula penal foi eliminada. É apenas para que Ele cure o meu erro, para que Ele retire a loucura do meu coração. Será que você castiga seus filhos só porque está zangado com eles? Não, mas porque você os ama. Se você é um pai como deveria ser, o castigo é prova da sua afeição, e a dor no seu coração é maior que a dor no corpo dos seus filhos quando você os castiga por aquilo que fizeram de errado. Deus não está irado com Seus filhos, nem há pecado neles que Ele vá punir. Ele irá corrigi-los, mas não irá puni-los. Ó graça gloriosa! Este evangelho é digno de ser pregado!

No instante em que o pecador crê

E no Deus crucificado põe seu coração

De uma vez o perdão ele recebe

No sangue de Cristo há plena redenção

Tudo se foi; cada pedacinho se foi, por toda a eternidade, e ele sabe muito bem.

Agora, liberto do pecado, sigo livremente

Plena redenção tenho no sangue do Salvador

A seus pés minh’alma se prostra reverente

Um pecador salvo adorando o Redentor

    Assim sendo, tendo falado que o perdão do pecado é totalmente proporcional à graça de Deus, eu lhe pergunto: Amigo, você já foi perdoado? Seus pecados já se foram? Alguém diz: “Não, não posso dizer que se foram, mas estou fazendo o melhor que posso para mudar”. Ah! Você pode fazer o melhor que puder para mudar, e espero que consiga, mas isso nunca irá lavar uma única mancha dos seus pecados. “Mas”, diz outra pessoa, “será que posso, assim como sou, crer que meus pecados são perdoados”? Não, mas eu te digo o que podes fazer. Se Deus te ajudar, tu podes simplesmente lançar-te sobre o sangue e a justiça de Cristo. E, no momento em que fizeres isso, todos os teus pecados irão embora, e irão para nunca mais voltar. “Aquele que crê no Senhor Jesus será salvo”. Ele é salvo no momento da sua fé. Aos olhos de Deus, ele não é mais recebido como pecador; Cristo foi punido em seu lugar. Ele está envolto pela justiça de Cristo e é aceito no Amado. E alguém pode retrucar: “Acredito que uma pessoa, depois de muito tempo de vida cristã, possa ter certeza de que seus pecados foram perdoados, mas não consigo imaginar como posso saber disso no momento em que creio”. O conhecimento de nosso perdão nem sempre vem no momento em que cremos, mas a realidade do nosso perdão vem antes da nossa compreensão e somos perdoados antes de termos consciência disso. No entanto, se creres em Jesus Cristo de todo o teu coração, eu te direi: Se a tua fé for livre de toda a tua autoconfiança, tu saberás, hoje mesmo, que teus pecados estão perdoados, pois o testemunho do Espírito ratifica o testemunho do teu coração, e ouvirás aquela vozinha secreta dizendo: “Tem bom ânimo, filho; estão perdoados os teus pecados” (Mateus 9:2). “Ó”, diz outra pessoa, “eu daria tudo por isso”. Você poderia dar tudo o que tem, mas isso não tem preço. Você poderia dar o seu primogênito por suas transgressões; o fruto do seu corpo pelo pecado da sua alma. Poderia oferecer rios de azeite e a gordura de milhares de animais cevados. Você não pode comprar o perdão, mas pode tê-lo graça. Ele é gratuito e você é convidado a aceitá-lo. Reconheça o seu pecado e coloque a sua fé em Cristo, e ninguém saberá qualquer coisa sobre o seu pecado no Dia do Juízo. Ele será lançado nas profundezas do mar — será levado para sempre.

    Vou fazer uma ilustração e depois deixarei este ponto. Veja, lá está o Sumo Sacerdote dos judeus. Um bode é levado a ele — é chamado de “bode emissário”NT5. Ele põe as mãos sobre a cabeça do bode e começa a confessar os pecados. Você fará o mesmo? Jesus Cristo é o bode emissário. Venha e, pela fé, coloque sua mão sobre Sua cabeça coroada de espinhos e confesse seus pecados, da mesma forma que o Sumo Sacerdote fazia antigamente. Você já fez isso? Seu pecado foi confessado? Agora, creia que Jesus Cristo pode e deseja levar seu pecado embora. Descanse plena e inteiramente nEle. O que acontece em seguida? O Sumo Sacerdote pega o bode emissário, entrega-o nas mãos de um homem de confiança e este o leva colina abaixo até que esteja a muitos quilômetros de distância (Lv 15.21). Então, repentinamente, ele solta as amarras e assusta o bode, que foge com todas as suas forças. O homem fica observando até o bode desaparecer e ele não poder mais vê-lo. Ele volta e diz: “Levei o bode emissário e ele desapareceu da minha vista. Ele se foi pelo deserto”. Ah, meu ouvinte, se lanças os teus pecados sobre Cristo, confessando-os totalmente, lembra-te de que Ele os leva embora, para tão longe quanto dista o oriente do ocidente; eles se vão e se vão para sempre. Tua embriaguez, tuas imprecações; tuas mentiras, teus roubos; tuas violações do domingo; teus pensamentos vis, tudo se vai — eles se vão e nunca mais os verás — 

Imersos, como em mar sem costa,

Perdidos, como na imensidão.

    III. E agora, concluo, chamando a atenção para OS BENDITOS PRIVILÉGIOS DECORRENTES DO PERDÃO QUE NOS É DADO SEGUNDO A GRAÇA DE DEUS. Creio que há um grande número de pessoas que pensa não haver qualquer realidade na religião. Para elas, ir à igreja ou à capela é uma questão de respeito, mas, para desfrutar da ideia de que seus pecados são perdoados, elas nem pensam nisso. E devo confessar que, nas religiões atuais, parece não haver muita realidade mesmo. Não tenho ouvido a proclamação clara, vibrante e distinta do evangelho que precisamos ouvir. É formidável que ele seja proclamado a qualquer pessoa, que seja levado ao teatro e coisas do gênero, mas o evangelho precisa ser puro — o leite deve ter menos água em sua consistência. A verdade de Deus precisa ser ensinada ao povo de forma mais distinta, mais palpável, deve ser algo que as pessoas possam pegar e compreender, mesmo que não creiam. Espero que ninguém me entenda mal. O perdão imediato dos nossos pecados é uma realidade. Ter esse conhecimento e poder desfrutá-lo também é uma realidade. Por isso, vou lhes mostrar quais são as alegrias decorrentes disso. 

    Em primeiro lugar, você terá paz de consciência, o coração que bate mais rápido quando você está sozinho estará tranquilo e sossegado. Você estará menos sozinho quando estiver sozinho. Aquele velho temor que o faz apertar o passo na escuridão quando está com medo, e não sabe por quê, irá desaparecer. Ouvi falar de um homem que tinha muitas dívidas, por isso, os oficiais de justiça estavam sempre atrás dele. Um dia, quando andava por uma área gradeada, sua manga ficou presa em uma das grades. Ele se virou e disse: “Não lhe devo nada, senhor”. Ele achou que era um oficial de justiça. O mesmo acontece com pecadores não perdoados, onde quer que estejam, eles acham que serão presos. Eles não conseguem desfrutar de nada. Até sua alegria nada mais é que um borrão, o crepitar dos espinhos debaixo de uma panela (Eclesiastes 7:6); não há um fogo forte e constante. No entanto, quando alguém é perdoado, pode andar por onde quiser e dizer: “Tanto faz viver ou morrer, se for tragado pelas profundezas do oceano ou se for soterrado por uma avalanche; com meus pecados perdoados, estou seguro”. Ele não teme o aguilhão da morte. Sua consciência está em paz. E, então, ele dá mais um passo. Sabendo que seus pecados estão perdoados, ele possui uma alegria indizível. Ninguém tem olhos tão brilhantes quanto o verdadeiro cristão; ele sabe que seu interesse está em Cristo e pode ver sua posição claramente. Ele é feliz, e deve ser feliz. O que são seus problemas? Não são nada, são apenas vaidade, pois todos os seus pecados são perdoados. Quando o pobre escravo desembarca no CanadáNT6, talvez não tenha um tostão no bolso e suas roupas sejam apenas andrajos; mas quando coloca os pés em solo britânico, ele é um homem livre. Veja como ele pula e dança e bate palmas, dizendo: “Grande Deus eu Te agradeço, sou um homem livre”. Assim é com o cristão quando, em sua cabana, ele se senta para comer seu pão endurecido e diz: graças a Deus não tenho pecado misturado em meu cálice (Sl 75.8) — tudo está perdoado. O pão pode estar seco, mas não é tão seco quanto seria se eu tivesse de comê-lo com as ervas amargas de uma consciência culpada e com um terrível temor da ira de Deus. Ele possui uma alegria que resistirá a todas as intempéries, uma alegria que permanecerá em todas as épocas, um brilho que irradia tanto de dia quanto de noite. 

    Além disso, o verdadeiro cristão tem acesso a Deus. Alguém com pecados não perdoados permanece alienado e quando, finalmente, pensa em Deus, é como fogo consumidor. No entanto, o cristão perdoado, ao ver as montanhas e as colinas, os riachos ondulantes e o rugido de muitas águas, olha para Deus e diz: “Meu Pai fez tudo isso”, e abraça o Altíssimo na infinitude que separa o homem do seu Criador. Seu coração se eleva a Deus. Ele vive perto dEle e sente que pode falar com Deus como alguém fala com um amigo.

    Outro efeito de ter os pecados perdoados é que o crente não teme o inferno. A Palavra de Deus fala de coisas profundas, mas elas não amedrontam o crente. Pode haver um abismo (Ap 9), mas seus pés nunca deslizarão para dentro dele. É verdade que há um fogo que nunca se apaga, mas ele não pode queimá-lo (Mc 9.41-49). Esse fogo é para o pecador, pois o crente não tem pecado imputado a ele; tudo lhe foi perdoado. Todos os demônios do inferno não podem levá-lo para lá, pois ele não tem um único pecado que lhe possa ser imputado. Embora ele ainda peque todos os dias, ele sabe que seus pecados já foram expiados, ele sabe que Cristo foi punido em seu lugar e, por isso, a Justiça não pode tocá-lo novamente.

    E, ainda, o cristão perdoado tem a expectativa do céu. Ele está aguardando a volta do Senhor Jesus Cristo. Se a morte intervir antes desse glorioso advento, ele sabe que, para ele, morte repentina é glória repentina. E, tendo uma consciência tranquila e paz com Deus, quando chegar o momento final, ele pode subir para os seus aposentos e recolher os pés na cama. Ele pode se despedir de seus irmãos e amigos, de sua esposa e de seus filhos; pode fechar os olhos em paz, na segurança de que irá abri-los no céu. Talvez seja no leito de morte que a alegria de ter os pecados perdoados seja mais brilhante. Muitas vezes tenho tido o privilégio de poder testar a força da religião ao me assentar ao lado de um moribundo. Há no céu agora uma garotinha que foi membro desta igreja. Quando ela estava prestes a partir, fui visitá-la com um de meus queridos diáconos. Ela estava no último estágio de sua doença. Sua aparência era bela e cheia de doçura, e acho que nunca ouvi palavras tão lindas quanto as que saíram de seus lábios. Ela tinha passado por muitas decepções, provações e tristezas, mas não reclamava de nada e bendizia a Deus por tudo o que tinha acontecido, pois a levara para mais perto do Salvador. Quando lhe perguntamos se ela não estava com medo de morrer, ela respondeu: “Não. A única coisa de que tenho receio é de viver, pois minha paciência pode se esgotar. Até agora eu não disse uma palavra impaciente, senhor, e espero não dizer. É triste estar tão fraca, mas acho que se pudesse escolher, eu preferiria estar lá a ter saúde, pois isso é precioso para mim. Eu sei que meu Redentor vive e estou esperando o momento em que Ele enviará Sua carruagem de fogo para me levar até Ele”. Eu lhe perguntei: “Você não tem dúvida”? “Não, senhor, por que teria? Lanço-me ao pescoço de Cristo”. Você não teme seus pecados? “Não, senhor, estão todos perdoados. Confio no precioso sangue do Salvador”. E você acha que será tão corajosa assim quando chegar a hora da morte? “Nem se Ele me deixar, senhor, mas eu sei que Ele nunca me deixará, pois Ele disse: ‘De maneira alguma te deixarei, nunca jamais te abandonarei’” (Hebreus 13:5). Isso é fé, queridos irmãos e irmãs! Que todos nós a tenhamos e recebamos o perdão dos pecados segundo as riquezas da Sua graça.

Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza


Notas do tradutor:

NT1 — Petrosa não existe, provavelmente a referência é às minas de Potosi.

NT2 — When Thou my righteous Judge shalt comeQuando Tu voltares, meu justo Juiz — composição de Selina Hastings (1707-1791), Condessa de Huntington, disponível em https://hymnary.org/text/when_thou_my_righteous_judge_shalt_come, acesso em 19.07.22

NT3 — 1Re 4.22-23 

NT4 — John Kent,1766-1843, compositor inglês

NT5 — embora a tradução literal e o termo mais conhecido em português para scapegoat seja “bode expiatório”, nas versões da Bíblia ARA, ACF, ARC e NAA o termo é “bode emissário”, e nas versões NVI, NVT, NTLH, A21, TB e na Bíblia de Jerusalém, “bode para Azazel”, cf Levítico 16.8, 10 e 26.

NT6 — na época em que Spurgeon pregou este sermão, 1860, o Canadá ainda fazia parte das colônias britânicas