terça-feira, 6 de novembro de 2018

A Consolação Propiciada Para Aflições Espirituais

Sermão nº 13 
Ministrado na manhã de domingo, 11 de março de 1855 
Pelo Rev. Charles H. Spurgeon 
Em Exeter Hall, Strand


“Porque, como as aflições de Cristo são abundantes em nós, assim também é abundante a nossa consolação por meio de Cristo.” ━ 2 Coríntios 1.5 (Almeida Corrigida, Fiel)

          Quereis descanso das vossas tribulações, filhos da tristeza e da angústia? Eis o lugar onde podeis aliviar vossos fardos e deixar vossas preocupações. Ó, filho da aflição e da miséria, queres te esquecer por um momento das tuas dores e pesares? Eis Betesda, a casa da misericórdia; eis o lugar designado por Deus para dar-te ânimo e interromper o incessante curso das tuas angústias; eis o local onde os filhos de Deus amam estar, pois é onde encontram consolo em meio à tribulação, alegria na tristeza e conforto na aflição. Até as pessoas do mundo admitem que há algo extremamente reconfortante nas sagradas Escrituras e em nossa santa religião. Já ouvi falar de algumas que, de acordo com sua lógica, pensaram ter desacreditado o cristianismo e provado que ele não era real, mas acabaram por reconhecer que destruíram uma ilusão muito reconfortante, chegando quase ao ponto do desespero por não crerem nele. Ah, meus amigos, se o cristianismo não fosse real, vocês poderiam chorar. Se a Bíblia não fosse a verdade de Deus ━ se não pudéssemos nos reunir ao redor do Seu trono de misericórdia, então vocês poderiam colocar as mãos nos quadris e andar como se estivessem em trabalho de parto. Se não tivessem algo neste mundo além da sua razão, além das alegrias passageiras da terra ━ se não tivessem algo dado por Deus, alguma esperança além do azul do céu, algum refúgio maior que o terreno, algum livramento melhor que o propiciado pelo mundo, então poderiam chorar. Ah! Poderiam chorar até seu coração sair pelos olhos e seu corpo se dissipar numa lágrima perpétua. Poderiam pedir às nuvens para pairar sobre sua cabeça e os rios para rolar de seus olhos, pois sua tristeza “precisaria de toda a água que a natureza pudesse produzir”. No entanto, bendito seja Deus, temos consolação, temos alegria no Espírito Santo. E isso não encontramos em nenhum outro lugar. Podemos vasculhar a terra e não acharemos joia alguma; podemos revirar este mundo muitas e muitas vezes e não encontraremos nada de valor; mas aqui, na Bíblia, aqui na religião do bendito Jesus Cristo, nós, que somos filhos de Deus, achamos consolo e alegria, enquanto dizemos: “como as aflições de Cristo são abundantes em nós, assim também é abundante a nossa consolação por meio de Cristo”. 

          Há quatro coisas neste texto para as quais gostaria de chamar sua atenção: a primeira é que as aflições devem ser esperadas ━ “as aflições de Cristo são abundantes em nós”; segunda, é preciso observar uma distinção ━ as aflições são de Cristo; terceira, há uma proporção a ser experimentada ━ “como as aflições de Cristo são abundantes em nós, assim também é abundante a nossa consolação”; e quarta, há uma pessoa a ser honrada ━ “assim também é abundante a nossa consolação por meio de CRISTO”. 

         1. Portanto, nossa primeira divisão é: AS AFLIÇÕES DEVEM SER ESPERADAS. O santo apóstolo diz: “as aflições de Cristo são abundantes em nós”. Antes de vestir a armadura cristã, precisamos saber que tipo de serviço nos aguarda. Ao fazer o recrutamento para o serviço de Sua Majestade (rainha da Inglaterra), o sargento recrutador sempre desliza uma pequena quantia na mão de algum jovem desinformado, dizendo-lhe o quanto o serviço é bom, que a única coisa a fazer é andar de lá para cá num uniforme vistoso e que o trabalho não é difícil ━ pois, na verdade, ele só precisa ser um bom soldado e ir direto para a glória. No entanto, o servo cristão, quando recruta um soldado da cruz, nunca o engana. O próprio Senhor Jesus disse para “calcular a despesa” (Lucas 14.28). Ele não queria nenhum discípulo que não estivesse preparado para ir até o fim ━ “e suportar a dificuldade como um bom soldado”. Às vezes ouço o evangelho sendo descrito de uma forma que seu colorido exagerado não me agrada. É verdade que “os seus caminhos são caminhos deliciosos” (Provérbios 3.17), mas não é verdade que o cristão nunca terá tristezas ou problemas. É verdade que pessoas alegres e despreocupadas podem passar por este mundo sem muita depressão e tribulação; mas não é verdade que o cristianismo protege alguém das tribulações, nem que ele deva ser representado dessa forma. Na verdade, é preciso dizer exatamente o contrário. Soldado de Cristo, se te alistares, terás uma árdua batalha pela frente. Para ti não haverá hora de dormir, nem subida para o céu numa carruagem; será preciso trilhar um caminho difícil, escalar montanhas, atravessar rios, combater dragões, matar gigantes, superar dificuldades e enfrentar grandes provações. Creia-me, o caminho para o céu não é suave; aqueles que já iniciaram a jornada descobriram como o terreno é acidentado. É um caminho delicioso; é o mais agradável que existe, mas não é fácil; só é agradável devido à companhia, às promessas maravilhosas nas quais nos apoiamos e à presença do nosso Amado junto conosco em todos os momentos tortuosos e espinhosos da vastidão do deserto. Cristão, espere as tribulações: “não estranheis o fogo ardente que surge no meio de vós, destinado a provar-vos, como se alguma coisa extraordinária vos estivesse acontecendo” (1 Pedro 4.12), pois, tão certo quanto és filho de Deus, é certo que teu Salvador te deixou este legado: “No mundo, passareis por aflições; mas em mim tereis paz”. Se eu não tivesse nenhum problema, não acreditaria que faço parte da família de Deus. Se não tivesse nenhuma provação, não me consideraria herdeiro do céu. Os filhos de Deus não podem, nem irão, escapar da vara. Os pais terrenos podem estragar seus filhos, mas o Pai celestial nunca fará isso. “O Senhor corrige a quem ama” (Hebreus 12.6) e açoita a todo filho a quem escolheu. Seu povo deve sofrer; por isso, cristão, espere a aflição; se és filho de Deus, creia nisso, espera por isso e, quando a aflição vier, dize: “Bem-vinda, sabia que virias, não és estranha para mim; estava à tua espera”. Você não imagina o quanto suas provações serão mais leves se esperá-las com resignação. Na verdade, será uma maravilha se houver um dia sem aflição. Será notável se houver uma semana sem perseguição; e se, por acaso, houver um mês inteiro sem gemidos interiores, será o milagre dos milagres. Mas quando o problema surgir, diga: “Ah, é isso que eu esperava; está assinalado no mapa para o céu; a rocha está ali, passarei por ela com confiança, meu Mestre não me iludiu”. 

“Por que reclamar de necessidade ou agonia,
Tentação ou dor? Ele não disse que não as teria”.

           Mas, por que o cristão deve esperar os problemas? Por que deve esperar que as aflições de Cristo sejam abundantes sobre ele? Espera um momento, querido irmão, e te mostrarei quatro razões pelas quais deves suportar a provação. Primeiro, olha para cima, depois olha para baixo, olha ao teu redor, e então olha para dentro de ti, e verás as quatro razões pelas quais as aflições de Cristo devem abundar sobre ti. 

          Olha para cima. Vês teu Pai celeste, um ser puro e santo, imaculado, perfeito e justo? Sabes que um dia serás como Ele? Pensas que serás facilmente conformado à Sua imagem? Será que não precisas ser trabalhado na forja, moído no moinho da tribulação, triturado no pilão da aflição, quebrado sob as rodas da agonia? Pensas que será fácil ao teu coração se tornar tão puro quanto Deus? Pensas que logo te livrarás das tuas corrupções e te tornarás perfeito, como é perfeito teu Pai que está no céu? 

          Levanta os olhos novamente; consegues ver aqueles espíritos brilhantes com vestiduras brancas, mais puros que o alabastro, mais castos, mais formosos que o mármore de Paros (1)? Vê, eles estão na glória. Pergunta-lhes de onde veio sua vitória. Alguns dirão que atravessaram rios de sangue. Observa os sinais de honra em suas frontes; olha, alguns levantam as mãos e dizem que foram consumidos pelo fogo; enquanto outros foram passados ao fio da espada, despedaçados por feras; foram afligidos e atormentados. Ó, nobre exército de mártires, gloriosas hostes do Deus vivo. Vós tivestes de atravessar rios de sangue, e eu espero ir para o céu envolto em pele de arminho? Vós enfrentastes dor e sofrimento, e eu devo ser mimado com os luxos deste mundo? Vós lutastes e depois reinastes, e eu devo reinar sem uma batalha? Ah, não, é claro que não! Com o auxílio de Deus, espero que, assim como vós sofrestes eu também sofra, e assim como entrastes no reino do céu por meio de muita tribulação, eu também entre. 

          A seguir, cristão, volta teus olhos para baixo. Sabes quais inimigos tens abaixo dos teus pés? Lá estão o inferno e seus leões contra ti. Já foste servo de Satanás e nenhum rei gosta de perder seus súditos. Pensas que ele está satisfeito contigo? Ora! Tu mudaste de lado! Antes eras um servil vassalo de Apoliom, mas agora te tornaste um bom soldado de Cristo; e pensas que o diabo está satisfeito com isso? Posso dizer-te que não. Se tivesses visto Satanás no momento em que foste convertido, terias visto uma cena impressionante. Assim que entregaste teu coração a Cristo, ele abriu as asas como um morcego, voou para o inferno, convocou todos os seus conselheiros e disse: “filhos das profundezas, legítimos herdeiros das trevas; vós que no passado fostes revestidos de luz, mas caístes junto comigo das alturas celestes, sabei que outro servo me deixou; perdi mais um da família; ele passou para o lado do Senhor dos Exércitos. Ó companheiros, camaradas dos poderes das trevas, tentai por todos os meios destruí-lo. Eu vos ordeno: lançai sobre ele todos os vossos dardos inflamados; atormentai-o; cães do inferno, ladrai contra ele; demônios, cercai-o; não deis descanso a ele; fustigai-o até a morte; que a fumaça do nosso lago corrupto e ardente encham suas narinas; persegui-o, o homem é um traidor; não o deixeis em paz; já que não posso tê-lo aqui para prendê-lo com correntes inquebráveis; já que nunca poderei tê-lo comigo, atormentai-o e afligi-o o quanto puderdes, até o dia da sua morte. Eu vos ordeno: urrai sobre ele até que cruze o rio; atribulai-o, importunai-o, angustiai-o, pois o patife se voltou contra mim e se tornou servo do Senhor”. Essa bem poderia ser a cena no inferno no dia em que entregaste teu amor ao Senhor. E pensas que Satanás te ama mais agora? Ah! Com certeza, não! Ele sempre te atormentará e será teu inimigo: “como leão que ruge procurando alguém para devorar” (1 Pedro 5.8). Portanto, cristão, quando olhares para baixo, espera por tribulações. 

          Depois, homem de Deus, olha ao teu redor. Não fiques dormindo! Abre teus olhos e olha ao teu redor. Onde estás? Esse, ao teu lado, é teu amigo? Não, tu estás na terra do inimigo. Este é um mundo perverso. Creio que metade das pessoas professa não ter religião e a outra metade, que professa ser crente, muitas vezes não é. “Maldito o homem que confia no homem, faz da carne mortal o seu braço” (Jeremias 17.5) ━ “Bendito o homem que confia no SENHOR e cuja esperança é o SENHOR” (Jeremias 17.7). “Somente vaidade são os homens plebeus”. A voz da multidão não vale a pena ouvir; “falsidade, os de fina estirpe” (Salmo 62.9), o que é ainda pior. Não se pode confiar no mundo, nem contar com ele. O verdadeiro cristão calca o mundo a seus pés, junto com “tudo que a terra chama de bom ou grande”. Olha ao teu redor, irmão, verás alguns corações bons, fortes e valentes; verás algumas almas verdadeiras, sinceras e honestas; verás fiéis adoradores de Cristo; porém eu te digo, ó filho da luz, que onde encontrares um homem sincero, encontrarás vinte hipócritas; onde encontrares um que te conduza ao céu, encontrarás muitos que te arrastam para o inferno. Estás numa terra de inimigos, não de amigos. Não acredites que o mundo é bom. Muita gente já se deu mal por querer abraçar o mundo. Muitos já foram picados por terem posto a mão nesse ninho de cascavel, achando que as cores brilhantes da serpente adormecida fossem garantia de que não teriam problemas. Ah, cristão, o mundo não é teu amigo. Se fosse, tu não serias amigo de Deus, pois aquele que é amigo do mundo é inimigo de Deus; e aquele é desprezado pelos homens, muitas vezes é amado do Senhor. Estás na terra do inimigo, irmão: por isso, espera por problemas, espera que “aquele que come no teu prato, cuspa nele”; espera que aqueles que te amam se afastem de ti; estejas certo de que, estando em território inimigo, irás encontrar inimigos por toda parte. Ao dormires, lembra-te de que estás no campo de batalha; quando andares por aí, não te esqueças de que pode haver uma emboscada em cada arbusto. Presta atenção, toma cuidado! Este não é um mundo para andares de olhos fechados. Olha ao teu redor e, quando estiveres na torre de vigia, estejas certo de que os problemas virão. 

         E, então, olha para dentro de ti. Ali dentro há um mundinho que é suficiente para nos causar muitos problemas. Certa vez, um católico romano disse que desejava ter uma janela em seu coração para que todos pudessem ver o que acontecia lá dentro. Fico feliz por não ter uma no meu coração; se tivesse, eu a deixaria cerrada como costumavam ficar as janelas da Apsley House (2). Cuidaria para que a veneziana nunca estivesse aberta. A maioria de nós teria necessidade deixá-la com a veneziana cerrada, se tivesse uma janela assim. No entanto, por um momento, espreita a janela do teu coração e observa o que tem lá dentro. Ali se encontra o pecado ━ o pecado original e a depravação; e mais, teu ego ainda está lá. Ah! Se não tivesses nenhum demônio para tentar-te, tu tentarias a ti mesmo; se não houvesse inimigos para lutar contra ti, tu mesmo serias o pior dos teus inimigos; se não houvesse mundo, tu mesmo serias ruim o suficiente; pois “Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto” (Jeremias 17.9). Crente, olha pra dentro de ti; vê os tumores que tens nas tuas partes vitais; vê que carregas dentro de ti uma granada prestes a explodir à menor faísca de tentação; vê que tens dentro do coração uma coisa ruim, uma víbora enrolada, pronta para dar o bote e te picar, e te causar dores e tristezas indescritíveis. Cuida do teu coração, cristão e, quando descobrires que há pesar, sofrimento e necessidade, olha para dentro de ti e pergunta: “Será que posso suportar tudo isso, considerando o perverso coração de incredulidade que carrego dentro de mim?” (Hebreus 3.12). Será que agora vês, querido irmão em Cristo? Ali não há escapatória. O que fazer, então? Não temos nenhuma chance. Precisamos suportar o sofrimento e a aflição; portanto, vamos enfrentá-los com disposição. Alguns de nós são oficiais nos regimentos de Deus e ficam sob a mira dos atiradores do inimigo. Ficando na linha de frente, temos de aparar todos os tiros. Que bênção nenhum oficial de Deus cair em batalha! Deus sempre os guarda. Quando as flechas voam ligeiras, o escudo da fé não deixa nenhuma passar; quanto mais furioso o inimigo, mais Deus fica satisfeito. Por isso, seja qual for a nossa preocupação, o mundo pode continuar, o diabo pode nos insultar, a carne pode se rebelar; “porque somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou” (Romanos 8.37). Portanto, toda honra seja sempre dada a Deus. Espera pelas aflições. Este é o nosso primeiro ponto. 

          2. Agora, em segundo lugar, É PRECISO OBSERVAR UMA DISTINÇÃO. Está escrito que as nossas aflições são as aflições de Cristo. Ora, a aflição em si mesma não é evidência de cristianismo. Muita gente passa por tribulações e problemas e não é filha de Deus. Já ouvi algumas pessoas chorosas dizerem: “Sei que sou filho de Deus, pois estou cheio de dívidas, sou pobre e tenho muitos problemas”. Será que é mesmo? Conheço muito patife que está nas mesmas condições, e não creio que alguém seja filho de Deus só porque está em condições precárias. Muita gente tem problemas e angústias além dos filhos de Deus. Esta não é uma particularidade da família do Senhor; e, se a minha esperança como cristão não tivesse outro fundamento, exceto as minhas tribulações, eu teria um fundamento realmente muito fraco. Por isso, é preciso observar uma distinção. Será que essas aflições são as aflições de Cristo ou não? A pessoa é desonesta e vai para a cadeia; é covarde e todo mundo a reprova por isso; é mentirosa e, por isso, todos fogem dela. No entanto, ela diz que é perseguida. Perseguida! Não mesmo! Ela procurou por isso. Ela merece isso. Contudo, tal pessoa consola a si mesma com o pensamento de que “faz parte do amado povo de Deus”, pois os outros se afastam dela, quando o caso é justamente porque ela merece as consequências de seus atos. Pessoas assim não vivem como deveriam; por isso, o mundo as abandona. Veja bem, meu amado, se as suas aflições são as verdadeiras aflições de Cristo, esteja certo de que elas não são suas mesmo; pois se forem, você não terá alívio. Somente quando as aflições são as aflições de Jesus é que podemos encontrar conforto. 

          “Bem”, diz você, “o que significa serem as nossas aflições as aflições de Cristo”? Sabemos que na Bíblia, às vezes, a palavra “Cristo” se refere a toda a igreja com Cristo, como em 1 Coríntios 12.12 (3), e diversas outras passagens que não me recordo no momento; no entanto, podemos nos lembrar do texto que diz: “preencho o que resta das aflições de Cristo, na minha carne, a favor do seu corpo, que é a igreja” (Colossenses 1.24). Ora, assim como Cristo, o cabeça, teve de suportar muitas aflições, o corpo também tem de suportar algum peso sobre ele. Nossas aflições são as aflições do Cristo místico, as aflições do corpo de Cristo, as aflições da igreja de Cristo; pois sabemos que, se alguém pudesse ser tão alto que sua cabeça alcançasse o céu e os pés o fundo do mar, seu corpo ainda seria o mesmo, e a cabeça sentiria o sofrimento dos pés. Por isso, embora minha cabeça esteja no céu e eu na terra, minhas dores são as dores de Cristo; minhas provações são as provações de Cristo, e minhas aflições são sofridas por Ele. 

Sinto em meu coração todos os teus suspiros e gemidos 
Pois estás perto de mim, da minha carne e dos meus ossos 
Em todas as tuas aflições, tua Cabeça sente a dor 
Contudo, todas são necessárias, nenhuma é sem valor. 

As tribulações do verdadeiro cristão são tanto as aflições de Cristo quanto as agonias do Calvário. 

          Mas você ainda diz: “Como saber se os nossos problemas são as provações de Cristo”. Bem, são provações de Cristo se você se aflige por amor de Cristo. Se você é chamado a enfrentar dificuldades por causa da verdade, então elas são as aflições de Cristo. Se você se aflige por causa de você mesmo, talvez seja um castigo devido aos seus próprios pecados; mas se é por causa de Cristo, então suas aflições são as aflições de Cristo. Mas alguns perguntam: “Será que ainda existe perseguição? Será que os cristãos ainda sofrem por amor de Cristo”? Sofrem sim! Se quisesse, poderia lhes falar de fanatismo insuportável, de perseguição quase tão intensa quanto nos dias de Maria; com a diferença de que nossos inimigos não têm o poder e a lei a seu lado. Poderia lhes contar de algumas pessoas que, pelo simples fato de virem aqui e ouvir este jovem desprezado, este sujeito falador, são olhadas como se fossem a escória do mundo. Muita gente que leva uma vida miserável e infeliz vem a mim simplesmente porque ouve de meus lábios a palavra da verdade. E, apesar de tudo o que é dito, elas ouvem. Muitos que estão diante de mim com certeza ficariam com os olhos cheios de lágrimas se eu contasse suas histórias ━ pessoas que me enviaram mensagens particulares falando sobre o quanto têm sofrido por amor de Cristo, só porque desejam ouvir a quem querem. Por quê? Será que as pessoas não podem fazer o que desejam? Se não quero fazer exatamente como os outros ministros, será que não tenho o direito de pregar como quero? Se não tenho, vou ter! ━ E isso é tudo. E será que outras pessoas não têm o direito de me ouvir, se quiserem, sem terem de pedir permissão a quem quer que seja, religioso ou não? Liberdade! Liberdade! Que as pessoas façam o que quiserem. Mas a liberdade, onde está? Dizem que na Bretanha. Sim, até certo ponto, mas não totalmente. No entanto, fico feliz por alguns dizerem: “Bem, minha alma foi edificada; digam o que quiserem, sempre defenderei a verdade e o lugar onde ouço a palavra para minha edificação”. Por isso, queridos corações, sigam em frente; e se tiverem aflições por amor de Cristo, saibam que elas são as aflições de Cristo. Se vocês vieram aqui simplesmente porque queriam ganhar alguma coisa com isso, então as aflições seriam suas; mas, já que não há nada a ganhar, a não ser a edificação da alma, continuem firmes. Não importa o que digam, a perseguição só lhes trará uma coroa mais brilhante na glória. 

         Ah! Cristão, isso nos enobrece. Irmãos, pensar que as nossas aflições são as aflições de Cristo nos enche de orgulho e felicidade. Creio ter sido uma grande honra para os antigos soldados que lutaram ao lado do Duque de Ferro (4) poderem dizer: “Lutamos sob o comando do bom e velho Duque, o qual venceu tantas batalhas; e, quando ele vencia, parte da honra também era nossa”. Cristão, tu lutas lado a lado com Jesus; Cristo é contigo; cada golpe é um golpe dirigido a Cristo; cada calúnia é uma calúnia lançada contra Cristo; a batalha é do Senhor; o triunfo é do Senhor; portanto, avante, rumo à vitória! Lembro-me da história de um grande comandante que, tendo conquistado muitas vitórias importantes, conduziu suas tropas a um desfiladeiro e, quando chegaram lá, foram completamente cercados pelo inimigo. Ele sabia que na manhã seguinte a batalha seria inevitável, por isso, passou a ronda por todas as tendas, para saber como estava a disposição dos seus soldados ━ se estavam desanimados ou não. Ao se aproximar de uma tenda, ouviu um soldado dizendo: “Aí está o nosso general; ele é bastante corajoso, mas desta vez foi muito imprudente; ele nos trouxe a um lugar onde certamente seremos derrotados; o inimigo tem muitos soldados na cavalaria e na infantaria”; a seguir, o homem contou as tropas do seu próprio lado e disse quantas tinha. O comandante, então, depois de ouvi-lo, puxou gentilmente a lona da barraca e disse: “Você me incluiu na sua conta? Você contou os homens da infantaria e da cavalaria; mas você me incluiu, seu bravo capitão, que conquistou tantas vitórias”? Ora, cristão, eu digo o mesmo: quantos você contou? Cristo não é um, nem mil: Ele é o “comandante de dez milhares”. Contudo, Ele é muito mais que isso. Ah, Ele é a pessoa mais importante; e quando contares teus ajudantes e auxiliares, repara que Cristo é tudo em todos, pois nEle a vitória é certa ━ o triunfo é garantido. 

         3. Nosso terceiro ponto é: HÁ UMA PROPORÇÃO A SER EXPERIMENTADA. Assim como as aflições de Cristo são abundantes em nós, assim também são as consolações de Cristo. Eis a bênção da proporção. Deus sempre mantém o equilíbrio da balança ━ de um lado Ele coloca as aflições de Seu povo, de outro as Suas consolações. Você verá que, quando o prato das aflições estiver quase vazio, o prato das consolações também estará; e quando o prato das aflições estiver cheio, o prato das consolações terá o mesmo peso, pois as aflições de Cristo abundam em nós assim como são abundantes as consolações em Cristo. Essa é uma questão de pura experiência. Algumas pessoas aqui não sabem o que é isso. Elas não são cristãs, não são nascidas de novo, não são convertidas, ainda não foram regeneradas e, por isso, ainda não perceberam o quanto é maravilhosa a proporção entre as aflições e as consolações de um filho de Deus. Ah, é um mistério que, quanto mais negras são as nuvens dentro de nós, mais intenso é o brilho da luz. Quando a noite cai e a tempestade se aproxima, o capitão celestial está sempre mais perto da Sua tripulação. É uma bênção que, quanto mais abatidos, mais elevados somos pelas consolações de Cristo. Deixem-me lhes mostrar as razões disso. 

         A primeira razão é porque as aflições abrem mais espaço para as consolações. Não há nada como uma grande aflição para fazer um grande coração. Acho que pessoas pequenas, infelizes, cujo coração é do tamanho de um grão de mostarda, nunca tiveram muitas provações. Percebi que pessoas que não mostram compaixão pelos seus semelhantes ━ que não choram pelas tristezas dos outros ━ raramente tiveram grandes problemas. Grandes corações só podem ser produzidos por grandes tribulações. A pá da tribulação cava mais fundo o reservatório do bem-estar para abrir mais espaço para as consolações. Deus entra no nosso coração ━ vê que ele está cheio ━ então começa a quebrar o nosso bem-estar para deixá-lo vazio; abrindo mais espaço para a graça. Quanto mais humilde alguém for, maior consolo terá. Lembro-me de um dia ter caminhado ao lado de um lavrador ━ um homem profundamente instruído, apesar de ser lavrador; e creio que lavradores poderiam realmente ser muito melhores pregadores do que muitos homens graduados ━ e ele me disse: “Creia nisso, irmão, se você ou eu subirmos um centímetro acima do chão, acharemos que esse único centímetro é muito alto”. Acho que é verdade, pois quanto mais baixo estivermos, mais perto do chão ━ quanto mais problemas para nos humilhar, mais aptos estaremos para receber consolo; e Deus sempre nos dá consolo quando estamos mais preparados para isso. Esta é uma razão das razões pelas quais nossas consolações aumentam na mesma proporção que as nossas provações. 

         Por outro lado, os problemas exercitam as nossas graças, e o próprio exercício das graças nos leva a sermos mais felizes e satisfeitos. Onde o solo é mais regado, a grama é mais verde. Creio que são as brumas e névoas da Irlanda que a tornam a “Ilha Esmeralda”; e, onde quer que você encontre grandes brumas de tribulação e névoas de tristeza, você sempre encontrará corações verde-esmeralda: cheios do belo verdor do consolo e do amor de Deus. Ah, cristão, não fiques dizendo: “Para onde foram as andorinhas? Elas partiram; estão mortas”. Elas não estão mortas, elas sobrevoaram o mar púrpura e foram para uma terra distante; mas aos poucos estarão de volta. Filho de Deus, não digas que as flores estão mortas; não digas que o inverno as matou e elas se foram. Oh, não, embora o inverno as tenha recoberto com um manto de neve, elas se erguerão novamente e em breve voltarão à vida. Não digas, filho de Deus, que o sol se apagou só porque a nuvem o encobriu. Ah, não, ele está lá atrás, preparando o verão para ti, pois quando sair novamente, terá deixado as nuvens prontas para as chuvas de abril, mães das lindas flores de maio. E, acima de tudo, quando teu Deus esconde a Sua face, não digas que Ele te esqueceu. Ele só está demorando um pouquinho para te fazer amá-lO ainda mais; e, quando Ele vier, terás prazer no Senhor e te regozijarás com alegria indescritível. Esperar exercita as nossas graças; esperar prova a nossa fé; portanto, espera com esperança; pois embora a promessa possa demorar, ela nunca chega tarde demais. 

         Outra razão pela qual muitas vezes somos mais felizes em nossas tribulações é esta: por temos contato mais íntimo com Deus. Falo isso pelo conhecimento do coração e por experiência própria. Nunca temos tanta intimidade com Deus como quando passamos por tribulações. Quando o celeiro está cheio, o homem pode viver sem Deus; quando a bolsa está repleta de ouro, podemos fazer as coisas sem nos dedicar muito à oração. No entanto, quando as nossas abóboras secam (Jonas 4.7), nós queremos Deus; quando os ídolos do lar se vão, precisamos ir e honrar o Senhor. Algumas pessoas que estão aqui hoje não oram nem a metade do que deveriam. Mas, se são filhos de Deus, serão açoitados, e quando forem açoitados, correrão para o Pai. Um belo dia, uma criança caminhava adiante do pai; de repente apareceu um leão na estrada e o garoto voltou correndo e pegou sua mão. Enquanto tudo estava calmo e corria bem, ele pôde ficar a uma boa distância do pai, mas quando o leão apareceu, ele voltou correndo e gritou “papai, papai”! O mesmo acontece com o cristão. Quando tudo está bem, ele se esquece de Deus. “Mas, engordando-se o meu amado, deu coices; engordou-se, engrossou-se, ficou nédio e abandonou a Deus” (Dt. 32.15). No entanto, tire suas esperanças, roube suas alegrias, coloque seu bebê num caixão, destrua suas colheitas, leve seu rebanho do aprisco, ponha seu marido de ombros largos no túmulo, deixe seus filhos órfãos ━ e só então Deus será realmente Deus. Ó Senhor, mesmo que me deixes nu, me leves tudo o que tenho, me faças pobre, mendigo, sem um centavo, sem esperança; mesmo que quebres a cisterna; esmagues a esperança; apagues as estrelas; escureças o sol; escondas a lua nas trevas, e me deixes totalmente só, sem amigo e sem quem me ajude, ainda assim, “Das profundezas clamo a ti, SENHOR” (Salmo 130.1). Não há clamor tão bom quanto aquele que vem do fundo do abismo; não há oração tão sincera quanto aquela que brota das profundezas da alma, das profundas aflições e provações, pois eles nos levam para Deus e somos mais felizes, porque esse é o jeito de ser feliz ━ viver perto de Deus. De forma que, embora as aflições sejam abundantes, elas nos conduzem a Deus e, por isso, as consolações também são abundantes. 

         Algumas pessoas chamam os problemas de peso. Na verdade, eles são mesmo um peso. Um navio que tem velas grandes e enfrenta muitos ventos, precisa de lastro. Os problemas são o lastro de um crente. Os olhos são as bombas que retiram a água dos porões da alma, impedindo-o de afundar. Mas, se suas provações são pesadas, vou lhe contar um pequeno segredo. Há uma coisa que pode fazer o peso erguê-lo. Se estou acorrentado a um peso, ele me mantém embaixo; mas se tenho uma polia e determinados aparelhos, posso fazer com que o peso me levante. Sim, há uma coisa que me ergue para o céu. Certa vez, um senhor perguntou a um amigo por que seu belo cavalo ficava com a pata presa enquanto pastava: “Por que prende um animal tão esplêndido”? “Senhor”, respondeu o amigo, “prefiro prendê-lo a perdê-lo: ele costuma pular a cerca”. Eis a razão pela qual Deus refreia Seu povo. Ele prefere refreá-los a perdê-los; se Ele não os refreasse, eles pulariam a cerca e iriam embora. Eles precisam de uma corda para impedir que se desviem, e seu Deus os amarra com aflições para mantê-los perto dEle, para preservá-los e tê-los em Sua presença. Mas que bênção: assim como nossas aflições são abundantes, nossas consolações também são abundantes. 

        4. Agora, vamos fechar com nosso último ponto. Que o Espírito Santo me dê forças mais uma vez para lhes falar uma palavra ou duas. HÁ UMA PESSOA A SER HONRADA. É fato que os cristãos podem se regozijar mesmo na mais profunda aflição; é verdade que, mesmo na prisão, eles ainda cantam; como muitos pássaros, eles cantam melhor quando estão na gaiola. É verdade também que, mesmo encobertos pelas ondas, sua alma não afunda. E é verdade, ainda, que eles têm uma boia que os mantém com a cabeça fora d’água e os ajuda a cantar na mais negra escuridão: “Deus ainda está comigo”. Mas, a quem devemos honrar? A quem devemos dar glória? Oh! Só a Jesus, só a Jesus! Pois o texto diz que tudo é por Jesus. Não é por ser cristão que tenho alegria na tribulação ━ não, necessariamente; nem sempre a tribulação traz consolação; mas é Cristo quem vem a mim. Estou doente, de cama; Cristo sobe as escadas e Se senta ao meu lado, e me fala palavras doces. Estou morrendo, as águas frias do Jordão tocam meus pés, sinto meu sangue estagnar e congelar. Vou morrer; Cristo coloca Seus braços ao meu redor e diz: “Não temas, amado; morrer é ser abençoado; a nascente das águas da morte está no céu; as águas não são amargas, são doces como néctar, pois fluem do trono de Deus”. Eu entro no rio, as ondas me cercam, sinto meu coração e minha carne falharem, mas a mesma voz está em meus ouvidos: “não temas, porque eu sou contigo; não te assombres, porque eu sou o teu Deus” (Isaías 41.10). Agora chego às margens do infinito desconhecido, aquela terra “de cuja fronteira ninguém jamais retorna”; ao entrar no reino das sombras, fico meio assustado, mas aquela voz doce continua: “Estarei contigo aonde quer que vás; se fizeres a tua cama no Hades, Eu estarei contigo”; então eu prossigo, contente por morrer, pois Jesus me alegra, Ele é meu consolo e esperança. Ah! Vós que não conheceis o nome incomparável de Jesus, vós tendes perdido a nota mais doce que pode compor uma melodia. Vós, que nunca fostes arrebatados pelo precioso soneto contido nesta única palavra, Jesu (NT: nome poético de Jesus), não sabeis o que ela significa ━ I-ES-U (“I ease you”, em português “eu te acalmo”.); perdestes a alegria e o consolo da sua vida, e tendes de viver tristes e infelizes. O cristão, no entanto, pode se regozijar, pois Cristo nunca vai desampará-lo, nunca vai deixá-lo, estará com ele para sempre. 

         E, agora, mais uma palavra ou duas. Em primeiro lugar, tenho um conselho a dar àqueles que antecipam suas tribulações e se afligem antes que elas aconteçam. Lembrem-se do ditado popular: “não coloque o carro adiante dos bois”. Sigam meu conselho: “nunca procurem os problemas, pois eles, com certeza, virão mais cedo do que esperam”. Conheço muitas pessoas que ficam se martirizando antes mesmo que as coisas aconteçam. O que há de bom nisso? Se me mostrarem qualquer benefício, eu lhes digo para irem em frente; mas, para mim, parece-me suficiente que o Pai encoste a vara no filho sem que ele mesmo se castigue. Por que antecipar as tribulações? Se estão com medo delas, por que fazem isso? A tribulação nunca será insuportável; e quando ela vier, a força para enfrentá-la virá junto. Portanto, põe-te de pé, tu que estás aí sentado, lamentando-se por coisas que ainda não aconteceram. 

A religião nunca foi designada 
Para diminuir os nossos prazeres. 

Para com isso! Apruma-te! Por que te assentar e ficar paralisado de medo? Quando a tribulação vier, então luta! Com coração forte e corajoso mergulha no rio, vestido como estás, e nada; mas não a temas antes que ela venha. 

         Agora, cristão com problemas, tenho uma palavra para ti. Irmão amado, estás com problemas, estás em meio às ondas da aflição, não é? Isso não te é estranho, é? Já passaste por isso muitas vezes. “Ah”, dizes tu, “esta é a pior delas. Levantei-me esta manhã com um grande peso nas costas; parece que tem chumbo no meu coração: estou infeliz, triste e muito abatido”. Bem, irmão, assim como são abundantes as tuas aflições, assim serão as tuas consolações. Penduraste a harpa no salgueiro? (Salmo 137.2). Fico feliz por não a teres quebrado. É melhor pendurá-la no salgueiro do que quebrá-la; cuida para que não a quebres. Ao invés de ficares angustiado com teu problema, regozija-te nele; assim irás honrar a Deus e glorificar a Cristo, e levar pecadores a Jesus, ao cantares em meio às tribulações, pois eles dirão: “Deve haver algo de bom na religião, afinal; de outro modo ele não seria tão feliz”. 

         A seguir, uma palavra àqueles que estão quase no nível do desespero. Se pudesse, estenderia minhas mãos, pois creio que um pregador deveria ser como um Briareus (5), com mil mãos para buscar cada um de seus ouvintes e lhes falar pessoalmente. Aqui temos pessoas quase tomadas pelo desespero ━ quase sem esperanças. Irmão, devo dizer-te o que fazer? Caíste do convés principal, estás no mar e as águas te rodeiam; parece que toda esperança se foi, que te agarras em palha; o que farás agora? Ora, deita-te no mar de angústia e flutua sobre ele; acalma-te e sabe que Deus é Deus, não perecerás. Debater-se e espernear só te levará para o fundo; acalma-te e vê: o bote salva-vidas está chegando, Jesus Cristo está vindo para te ajudar; em breve Ele te libertará e te livrará de todas as tuas dificuldades. 

         Finalmente, alguns de vocês não têm qualquer interesse neste sermão. Nunca tento enganar meus ouvintes, fazendo-os acreditar que tudo o que digo é para todos os que me ouvem. Na Palavra de Deus temos pessoas diferentes; cabe a você examinar seu próprio coração e ver se faz parte ou não do povo de Deus. Assim como o Senhor vive, diante de quem estou, aqui temos duas classes de pessoas. Eu não possuo a distinção dos aristocratas e democratas; em minha opinião, e aos olhos de Deus, somos todos iguais. Somos todos feitos de carne e sangue; não temos cavalheiros de porcelana e gente pobre de barro; somos todos feitos do mesmo molde. No entanto, há uma distinção, e apenas uma. Ou você é filho de Deus ou filho do diabo; ou é nascido de novo ou está morto em seus delitos e pecados. Cabe a você deixar a pergunta soar em seus ouvidos: “Onde estou? Será que meu rei é aquele tirano cruel, com sua espada de fogo; ou pertenço ao Senhor Jesus, minha força, meu escudo, meu Salvador"? Não vou obrigá-lo a responder; não vou lhe dizer mais nada. Apenas responda para si mesmo; deixe seu coração falar; deixe sua alma se pronunciar. Tudo o que posso fazer é propor a pergunta. Que Deus a aplique à sua alma! Peço a Ele que dispare a seta e que ela fique bem cravada! (Salmo 38.2) 

Jesus é meu! Já estou preparado 
Para o encontro mais almejado. 
Que soprem ventos de tribulação 
E que todos os prazeres se vão 
Nem árvores secas, nem colheita tardia 
Tiram da esperança eterna a doce alegria 
Criaturas mudam, não o Senhor 
Meu triunfo é glorioso em meu Salvador. 

Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza

Notas:
1 ━ variedade de mármore altamente apreciada pela brancura, fineza e semitransparência 
2 ━ casa que foi residência do primeiro Duque de Wellington, o qual derrotou Napoleão na famosa batalha de Waterloo 
3 ━ “Porque, assim como o corpo é um e tem muitos membros, e todos os membros, sendo muitos, constituem um só corpo, assim também com respeito a Cristo” (1Co 12.12) 
4 ━ Arthur Wellesley, primeiro Duque de Wellington, também chamado de Duque de Ferro 
5 ━ Briareu (em grego clássico: Βριάρεως; transl.: Briáreos , lit. "vigoroso") ou Egeão (em grego clássico: Αἰγαίων; transl.: Aegaeon , lit. "bode do mar"), na mitologia grega, era um dos três hecatônquiros, também conhecidos como centímanos, gigantes com cem braços e cinquenta cabeças, filhos de Gaia e Urano. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Briareu)

terça-feira, 28 de agosto de 2018

28 de agosto - Devocional vespertina


“Canta alegremente, ó estéril”
Isaías 54.1
Apesar de produzirmos alguns frutos para Cristo, e de termos a doce esperança de ser “plantio da Sua destra”, ainda assim, algumas vezes, nos sentimos totalmente estéreis. A nossa oração é sem vida, o amor é frio, a fé é fraca, e as graças no jardim do nosso coração definham e caem. Somos como flores ao sol quente que precisam ser regadas. O que devemos fazer em tais condições? O texto de Isaías é dirigido exatamente para pessoas nessa situação. “Canta alegremente, ó estéril, que não deste à luz”. Mas, cantar sobre o quê? Não posso falar sobre o presente, e até o passado parece totalmente árido. Ah! Mas posso cantar sobre Jesus Cristo. Posso falar sobre as visitas do Redentor; ou, então, posso exaltar o grande amor com que Ele amou Seu povo, descendo das alturas para redimi-lo. Irei à cruz outra vez. Vem, minh’alma, já suportaste grande peso, mas ali perdeste o teu fardo. Vai de novo ao Calvário. Talvez a própria cruz que te deu vida possa te fazer frutificar. O que é a minha esterilidade? É a plataforma para o poder criador e frutificador do Senhor. O que é a minha desolação? É o negro pano de fundo para a safira do Seu amor eterno. Irei em pobreza, irei em carência, irei em toda a minha vergonha e falta de fé, e Lhe direi que ainda sou Seu filho e, confiante na fidelidade do Seu coração, até mesmo eu, um estéril, cantarei e exultarei.
Canta, ó crente, pois isso animará tanto o teu próprio coração quanto o coração de outros desolados. Canta, pois agora que estás realmente envergonhado da tua esterilidade, em breve, serás frutífero; agora que Deus te deixa inquieto por não dar frutos, logo Ele te cobrirá de cachos. A experiência da nossa esterilidade é dolorosa, mas as visitações do Senhor são deliciosas. O senso da nossa própria pobreza nos leva a Cristo, e é aí que devemos estar, pois nEle o nosso fruto pode ser encontrado.
Charles Spurgeon
Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

24 de agosto - Devocional matutina

“Subirá diante deles o que abre caminho”
Miqueias 2.13

Uma vez que Jesus vai adiante de nós, as coisas não continuam como se Ele não tivesse passado. Ele derrotou todos os inimigos que obstruíam o caminho. Anima-te, pois, guerreiro medroso. Cristo não só percorreu a estrada, como também abateu teus inimigos. Tens medo do pecado? Ele o encravou na cruz. Tens medo da morte? Ele foi a morte da Morte. Tens medo do inferno? Ele cerrou suas portas a qualquer um de Seus filhos; eles jamais verão o abismo da perdição. Quaisquer que sejam os inimigos do cristão, todos são vencidos. Há leões, mas seus dentes estão quebrados; há serpentes, mas suas presas foram extraídas; há rios, mas eles têm pontes ou podem ser atravessados; há chamas, mas nossas roupas incomparáveis nos tornam invulneráveis ao fogo. A espada forjada contra nós está sem fio; os instrumentos de guerra que o inimigo está preparando estão ultrapassados. Deus, na pessoa de Jesus Cristo, removeu todo o poder de qualquer coisa que possa nos ferir. Assim pois, o exército pode marchar em segurança e podemos prosseguir alegremente em nossa jornada, pois todos os inimigos foram conquistados de antemão. O que mais podemos fazer, senão marchar para pegar a presa? Os inimigos foram abatidos e conquistados; tudo o que temos a fazer é dividir os despojos. É bem verdade que sempre estaremos em combate, mas a luta será contra um inimigo vencido. Sua cabeça está ferida. Ele pode tentar nos prejudicar, mas sua força não é suficiente para concretizar seu intento maligno. Nossa vitória será fácil, e nosso tesouro, inigualável.

Proclama em alta voz a fama do Salvador
Quem carrega o maravilhoso nome do Eterno
O doce, suave nome do Conquistador
Que derrota o mundo, o pecado, a morte e o inferno!

Charles H. Spurgeon

Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza



quarta-feira, 22 de agosto de 2018

23 de agosto - Devocional matutina

“e nunca mais se ouvirá nela nem voz de choro nem de clamor.”

Isaías 65.19


Não há mais choro para os glorificados, pois já passaram todas as causas externas de tristeza. No céu não há inimizades, nem perspectivas sombrias. Ali, a pobreza, a fome, os perigos, as perseguições e as calúnias são desconhecidos. Nenhuma dor causa angústia, nem pensamento de morte ou luto entristece. Não há mais choro, pois eles são perfeitamente santificados. Nenhum “coração vil e incrédulo” os afasta do Deus vivo; eles estão imaculados diante do Seu trono e totalmente conformados à Sua imagem. Não há lamento para quem deixou de pecar. Não há mais choro, pois o medo de mudança passou. Eles sabem que estão eternamente seguros. O pecado foi expulso e eles estão protegidos. Eles habitam numa cidade que nunca será invadida; se aquecem ao sol que nunca se põe; bebem de um rio que nunca se esgota; pegam o fruto de uma árvore que nunca resseca. Incontáveis ciclos podem passar, mas a eternidade nunca será exaurida, e enquanto ela perdurar, a imortalidade e bem-aventurança dos glorificados coexistirá com ela. Eles estão pra sempre com o Senhor. Não há mais choro, pois cada desejo é satisfeito. Eles não podem desejar nada que não possuam. Olhos e ouvidos, mãos e coração, juízo, imaginação, esperança, desejo, vontade, todas faculdades estão completamente satisfeitas. Apesar da imperfeição de nossas ideias sobre as coisas que Deus preparou para aqueles que O amam, sabemos o suficiente, pela revelação do Espírito, sobre as bênçãos de que desfrutam os santos lá de cima. A alegria de Cristo, a plenitude infinita de deleite, está neles. Eles se banham nas profundezas do mar da felicidade eterna. E esse mesmo descanso magnífico permanece para nós. Talvez não esteja distante. Em breve o salgueiro-chorão será trocado pelo ramo de palmeira da vitória, e as gotas de orvalho de tristeza serão transformadas em pérolas de eterna felicidade. 
“Consolai-vos, pois, uns aos outros com estas palavras” (1Ts 4.18)


Charles Haddon Spurgeon

Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

17 de agosto - Devocional Vespertina

“Esta enfermidade não é para morte” - João 11.4


Pelas palavras de nosso Senhor, aprendemos que há um limite para a doença. Existe um “até” dentro do qual o fim último é contido, e além do qual não pode ir. Lázaro poderia passar pela morte, mas a morte não deveria ser o último estágio da sua doença. Em toda enfermidade, o Senhor diz às ondas de dor: “Até aqui irás, mas não além”. A intenção do Seu propósito não é a destruição, mas a instrução do Seu povo. A Sabedoria prende o termômetro na boca do forno e regula o calor.

  1. O limite é consoladoramente abrangente. O Deus da providência põe limite ao tempo, à maneira, intensidade e repetição, e influencia todas as nossas enfermidades; cada batimento cardíaco é decretado, cada hora insone predestinada, cada recaída ordenada, cada depressão do espírito prevista e cada resultado santificador eternamente proposto. Nada, seja grande ou pequeno, escapa à mão soberana dAquele que conta os fios de cabelo da nossa cabeça. 
  2. Esse limite é sabiamente ajustado à nossa força, ao fim proposto e à graça concedida. A aflição não vem por acaso ━ o peso de cada golpe da vara é medido com precisão. Aquele que não errou ao equilibrar as nuvens e estender os céus, não comete erros ao pesar os ingredientes que compõem o remédio das almas. Não sofremos além da conta, nem recebemos alívio tarde demais. 
  3. O limite é gentilmente estipulado. O bisturi do Cirurgião celestial nunca penetra além do que é absolutamente necessário. “Porque não aflige, nem entristece de bom grado os filhos dos homens” (Lamentações 3.33). O coração da mãe grita: “Poupe meus filhos”; no entanto, nenhuma mãe é mais compassiva do que o nosso bondoso Deus. Quando pensamos no quanto somos teimosos e obstinados, é de admirar que não sejamos tratados com mais rigor. Pensar que Aquele que fixou os limites da nossa habitação é o mesmo que fixa os limites da nossa tribulação nos enche de consolo.

Charles Spurgeon
Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza

terça-feira, 14 de agosto de 2018

O Sono Peculiar dos Amados de Deus

Sermão nº 12
Ministrado na manhã de domingo, 4 de março de 1855
Pelo Rev. Charles Haddon Spurgeon
Em Exeter Hall, Strand, Londres, Inglaterra




“pois assim dá ele aos seus amados o sono” ━ Salmo 127.2 (Almeida Corrigida e Revisada, Fiel)

O sono do corpo é dom de Deus. Assim disse Homero, nos tempos antigos, quando o descreveu como se descesse das nuvens e repousasse sobre as tendas dos guerreiros ao redor da antiga Troia (Ilíada, Canto II). E Virgílio, em sua canção, quando falou de Palinuro adormecido na proa do seu navio. O sono é dom de Deus. Nós achamos que, quando deitamos a cabeça no travesseiro e acomodamos nosso corpo numa posição confortável, o sono virá natural e necessariamente. Mas não é assim. O sono é dom de Deus; e ninguém consegue fechar os olhos para dormir se Deus não colocar os dedos em suas pálpebras; se o Todo-Poderoso não enviar Sua influência calma e reconfortante para embalar e aquietar seus pensamentos, fazendo-o entrar naquele estado de felicidade a que chamamos de sono. É verdade que existem drogas e narcóticos que levam as pessoas a um estado quase de morte, ao qual chamam de sono; mas o sono saudável é dom de Deus. É Ele quem o dá; é Ele quem embala o nosso berço todas as noites; é Ele quem fecha as cortinas da escuridão; é Ele quem ordena ao sol que cerre os olhos flamejantes; e depois vem e diz: “Dorme, meu filho, dorme, Eu te dou o sono”. Alguma vez você já foi para a cama e não conseguiu pegar no sono? E, como se disse de Dario, poderia ser dito de você: “não deixou trazer à sua presença instrumentos de música; e fugiu dele o sono” (Daniel 6.18)? Você tenta, tenta, mas não consegue dormir; está além do seu poder ter um bom descanso. Você imagina que, se se concentrar em alguma coisa até que ela ocupe seu pensamento, você irá dormir; no entanto, até mesmo disso você é incapaz. Milhares de coisas se passam pela sua cabeça, como num turbilhão. Coisas passadas ficam dançando como loucas diante dos seus olhos. Você os fecha, mas continua vendo; e há coisas também em seus ouvidos, na sua cabeça e no seu cérebro que não o deixam dormir. Somente Deus pode cerrar os olhos do jovem marinheiro no alto do mastro oscilante e dar descanso ao rei, pois este, mesmo com todos os seus recursos, não pode repousar sem o auxílio de Deus. Só Ele pode mergulhar a nossa mente no esquecimento e nos convidar a dormir, a fim de que nosso corpo se refaça e nos levantemos revigorados e fortalecidos para o trabalho do dia seguinte. Ah, meus queridos, como devemos ser gratos a Deus pelo sono! O sono é o melhor médico que conheço. O sono cura mais dores de ossos cansados do que os médicos mais famosos do mundo. O sono é o melhor remédio; é a melhor escolha na lista de medicamentos da farmácia. Não há nada como o sono! É é maravilhoso o sono pertencer a todo mundo! Deus não faz do sono uma bênção só para o rico; ele não o dá somente aos nobres ou aos poderosos, a fim de que possam mantê-lo como um luxo exclusivo para si; Deus concede o sono a todos. Mas, se há uma diferença, esta é que o sono do trabalhador é doce, quer ele coma pouco ou muito. Aquele cujo trabalho é árduo tem um sono mais profundo. Enquanto as pessoas mais abastadas e delicadas não conseguem dormir, revirando-se na cama macia, aquele que trabalha duro, com seus membros fortes e vigorosos, cansado e exaurido, se atira no catre duro e dorme, e acorda, graças a Deus que o revigora. Vós sabeis, meus amigos, o quanto deveis a Deus por Ele vos dar o descanso noturno. Se tivésseis noites insones, daríeis valor a essa bênção. Se, por semanas a fio, não pudésseis dormir, revirando-vos de um lado para outro na cama, daríeis graças a Deus por Seu favor. No entanto, como o sono é um dom de Deus, um dom precioso que ninguém valoriza até ser tirado, nós não o apreciamos como devemos.

O salmista diz que algumas pessoas se recusam a dormir. Às vezes, por dinheiro ou ambição, elas se levantam cedo e dormem tarde. Alguns de nós talvez tenhamos o mesmo problema. Quando queremos ler um bom livro para aumentar nosso conhecimento, nós levantamos bem cedinho e ficamos acordados até tarde, muitas vezes até o sol raiar, até que nossos olhos fiquem ardendo, nosso cérebro fique entorpecido e nosso coração fique palpitante. Ficamos cansados e esgotados; levantamos cedo e dormimos tarde e, por isso, acabamos comendo o pão que penosamente granjeamos. Muitos aqui são homens de negócio que trabalham dessa forma. Não os condenamos por isso; não os proibimos de levantar cedo e dormir tarde, mas gostaríamos que se lembrassem deste texto: “Inútil vos será levantar de madrugada, repousar tarde, comer o pão que penosamente granjeastes; aos seus amados ele o dá enquanto dormem” (Salmo 127.2). É sobre esse sono, que Deus dá a Seus amados, que queremos falar nesta manhã ━ o sono peculiar dos filhos de Deus ━ um sono que Ele dá a “Seus amados”. Que Deus nos ajude.

O sono, na Palavra de Deus, algumas vezes é usado em sentido pejorativo para designar a condição de homens lascivos e mundanos. Alguns têm o sono da preguiça e da lassidão: os filhos insensatos dos quais Salomão nos fala, que dormem na sega e causam vergonha (Provérbios 10.5); pois, quando a sega é consumida e acaba o verão, eles não são salvos. O sono quase sempre é exemplo da indolência, preguiça, indiferença, que caracteriza os ímpios, de acordo com as palavras: “já é hora de vos despertardes do sono” ━ “Nós, porém, que somos do dia, sejamos sóbrios”. Muita gente dorme o sono do indolente, o qual repousa no leito da preguiça; no entanto, elas terão um despertar horrível ao descobrir que o tempo se foi; que as areias douradas da vida escorreram despercebidas na ampulheta; e que elas entraram naquele mundo onde não existe perdão, nem esperança, nem refúgio, nem salvação.

Em outros lugares, vemos o sono usado como figura de segurança pessoal. Vejam o caso de Saul, mergulhado no sono devido à segurança ao seu redor ━ não como Davi, que disse: “Em paz me deito e logo pego no sono, porque, SENHOR, só tu me fazes repousar seguro” (Salmo 4.8). Abner está ao lado de Saul, e suas tropas à sua volta, mas Abner pega no sono. Dorme, Saul, dorme. Só que tem um Abisai ao lado do teu travesseiro, com a lança em punho, dizendo: “deixa-me, pois, agora, encravá-lo com a lança, ao chão, de um só golpe; não será preciso segundo” (1 Samuel 26.8). E Saul continua dormindo; sem saber de nada. O mesmo acontece com muitos que estão aqui hoje, dormindo com a alma em risco; Satanás está pronto; a lei está a postos; a vingança está ansiosa, e todos dizem: “Vamos encravá-lo? Vamos encravá-lo de uma vez e ele nunca mais acordará”. Mas Cristo diz: “Calma aí, vingança, calma aí”. Vejam, a lança agora treme ━ “Calma aí, espere mais um ano, ele pode acordar de seu longo sono de pecado”. Eu te digo, pecador que, como Sísera, estás dormindo na tenda do destruidor; talvez estejas comendo manteiga e mel em prato de ouro, mas estás dormindo na porta do inferno; agora mesmo o inimigo está com o martelo e a estaca prontos para cravar na tua têmpora e te pregar na terra, onde irás jazer para sempre na morte do tormento eterno ━ se é que se pode chamar de morte.

Na Escritura também é mencionado o sono da luxúria, como o de Sansão quando perdeu suas tranças. Esse é o tipo de sono que muitos têm quando são indulgentes com o pecado e, ao acordar, descobrem que estão nus, perdidos e arruinados. E há também o sono da negligência, como o daquelas virgens, das quais está escrito: “foram todas tomadas de sono e adormeceram” (Mateus 25.5); e o sono da tristeza, que tomou conta de Pedro, Tiago e João. Mas nenhum deles é dom de Deus. Todos estão ligados à fragilidade da nossa natureza; eles nos sobrevêm porque somos falíveis; eles se apoderam lentamente de nós porque somos filhos de um ancestral arruinado e perdido. Esses tipos de sono não são bênçãos de Deus; e nem Ele concede aos Seus amados. Agora, então, vamos dizer quais são os tipos de sono que Ele concede.

1. Em primeiro lugar, havia um sono extraordinário que Deus muitas vezes dava a Seus amados, mas que agora não dá mais. Foi nesse tipo de sono miraculoso, ou melhor, nesse transe, que caiu Adão, quando adormeceu triste e sozinho e, ao acordar, já não estava só, pois Deus lhe dera o melhor presente que poderia dar ao homem. Também foi esse o sono de Abraão quando é dito que sobre ele caiu profundo sono, e ele se prostrou e viu diante de si um fogareiro fumegante e uma tocha de fogo, enquanto uma voz lhe dizia: “Não temas, Abrão, eu sou o teu escudo, e teu galardão será sobremodo grande” (Gênesis 15.1). Jacó também teve um sono semelhante ao tomar uma pedra como travesseiro e as sebes como cortinas, deitar-se e dormir. Em sonho, ele viu uma escada posta na terra cujo topo chegava ao céu, e os anjos de Deus subiam e desciam por ela (Gênesis 28.12). O mesmo aconteceu com José, quando sonhou que os feixes dos outros faziam reverência para o seu (Gênesis 37.7), e que o sol, a lua e onze estrelas se inclinavam perante ele. Davi, de tempos em tempos, também tinha um bom repouso, quando o sono era doce para ele, conforme lemos no Salmo 4: “Em paz me deito e logo pego no sono, porque, SENHOR, só tu me fazes repousar seguro”. Daniel também teve um sono extraordinário quando disse: “caí sem sentidos, rosto em terra, e vi o Senhor que me disse: Levanta-te sobre os teus pés” (Daniel 10.9-11). O mesmo aconteceu com aquele que era considerado pai de nosso bendito Senhor, quando à noite, em uma visão, um anjo lhe disse: “José, dispõe-te, toma o menino e sua mãe, foge para o Egito e permanece lá até que eu te avise; porque Herodes há de procurar o menino para o matar” (Mateus 2.13). Todos esses sonos são milagrosos. O anjo de Deus toca em Seus servos com a varinha mágica do sono e eles dormem, não como nós dormimos, mas com um sono incrível; eles caem nas profundezas do sono e mergulham num mar de descanso, onde veem o invisível, falam com o desconhecido e ouvem sons místicos e maravilhosos; e, quando acordam, dizem: “Que sono! O meu sono foi doce para mim” (Jeremias 31.26). “Assim dá ele aos seus amados o sono”.

No entanto, atualmente não existe mais esse tipo de sono. Muitas pessoas sonham com coisas maravilhosas, mas a maioria só sonha com coisas sem sentido. Alguns depositam sua fé em sonhos: e, com certeza Deus ainda nos adverte por meio de sonhos e visões. Tenho certeza de que Ele o faz. Não há ninguém que não possa mencionar um ou mais exemplos de advertência, ou favor, que tenha recebido em um sonho. Contudo, não podemos confiar em sonhos. Lembro-me de que Rowland Hill (pregador inglês influenciado por George Whitefield) disse a uma senhora que ele sabia ser filha de Deus, a qual tivera um certo sonho: “Não se importe, madame, com aquilo que fez quando dormia, vejamos o que fará quando estiver acordada”. Esta é a minha opinião sobre sonhos. Nunca vou acreditar que alguém seja cristão simplesmente porque sonhou consigo mesmo; pois uma religião de sonhos fará com que a pessoa seja sonhadora pelo resto da vida ━ e, no final, tais sonhadores terão um terrível despertar, se isso for tudo em que confiam.

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O último sono de Argyll antes de sua execução
1685, por Edward Matthew Ward
2. Em segundo lugar, Deus dá a Seus amados o sono de uma consciência tranquila. Creio que a maioria de nós já viu aquele esplêndido quadro em exibição na Academia Real de Londres ━ O Último Sono de Argyll Antes da Execução (1685, Edward Matthew Ward), no qual ele está dormindo tranquilamente momentos antes da sua execução. Na tela, vemos um nobre parado, olhando-o quase com remorso; e também o carcereiro, com suas chaves penduradas; no entanto, o homem está realmente dormindo, mesmo sabendo que na manhã seguinte sua cabeça estará totalmente separada do corpo, e alguém a pegará e dirá: “Eis a cabeça do traidor”. O homem estava dormindo porque tinha a consciência tranquila, por nada ter feito de errado. Agora, vejamos Pedro. Já repararam como é notável aquela passagem onde está escrito que Herodes pretendia apresentá-lo ao povo no dia seguinte, mas enquanto Pedro dormia entre dois soldados, um anjo o tocou? Dormindo entre dois soldados, quando na manhã seguinte ele deveria ser crucificado ou morto! Ele não se importava, pois seu coração estava limpo; ele nada tinha feito de errado. Ele podia dizer: “Julgai se é justo diante de Deus servir a vós outros do que a Deus” (Atos 4.19), e, por isso, ele se deitou e dormiu. Ah, senhores! Vocês sabem o que é o sono de uma consciência tranquila? Já tiveram de enfrentar calúnias, lançadas por todo tipo de gente? Já viraram objeto de escárnio, de riso, de canção de bêbados? Se já, conseguiram dormir depois disso, como se nada tivesse acontecido, porque seu coração estava limpo? Ah! Vós que estais em débito ━ vós que sois desonestos ━ vós que não amais a Deus, nem a Cristo ━ fico me perguntando se conseguem dormir, pois o pecado coloca espinhos afiados no travesseiro. O pecado coloca um punhal na cama da pessoa, de forma que, para onde quer que ela se vire, leva uma cutucada. Uma consciência tranquila, no entanto, é a música mais doce para embalar a alma. O demônio do desassossego não chega na cama de quem tem uma consciência tranquila ━ uma consciência que está em paz com Deus ━ e que pode cantar:

Com o mundo, comigo e contigo
Eu, ao dormir, em paz não litigo

“Assim dá ele aos seus amados o sono”.

Contudo, preciso dizer a vocês que não conhecem a sua eleição em Cristo Jesus, que não confiam no preço do sangue do Salvador ━ não foram chamados pelo Espírito Santo ━ não foram regenerados e não nasceram de novo ━ deixe-me lhes dizer que vocês não conhecem tal descanso. Talvez sua consciência esteja em paz; talvez vocês digam que não fizeram mal a ninguém e acreditam que quando estiverem diante do tribunal de Deus terão poucas contas a prestar. No entanto, cavalheiros, vocês sabem que a alma que peca, mesmo que seja uma única vez, deve morrer. Se uma pintura tem uma única falha, ela não é perfeita. Se pecaram uma única vez, serão condenados por isso, a menos que tenham alguma coisa para tirar esse pecado. Vós não conheceis o sono de uma consciência tranquila, mas o cristão conhece, pois todos os seus pecados foram computados na cabeça do antigo “bode emissário”. Cristo morreu por todos os pecados dos crentes, por maiores ou piores que tenham sido; e agora não há nada escrito contra eles no Livro de Deus. “Eu, eu mesmo”, diz Deus, “sou o que apago as tuas transgressões por amor de mim e dos teus pecados não me lembro” (Isaías 43.25). Agora, podeis dormir, pois “Assim dá ele aos seus amados o sono”.

Além disso, há o sono do contentamento que o crente desfruta. Pouquíssimas pessoas neste mundo estão satisfeitas. Ninguém deve recear oferecer uma recompensa a uma pessoa contente, pois se alguém viesse reclamar, é óbvio que estaria demonstrando seu descontentamento. Desconfio que, em certa medida, todos nós estejamos insatisfeitos com a nossa sorte; a grande maioria das pessoas está sempre voando de um lado para outro; nunca se estabelece; nunca pousa em alguma árvore para construir seu ninho; está sempre voando de uma para outra. Esta não está muito verde; esta outra não é muito alta; aquela ali não é muito frondosa; e aquela acolá não é muito viçosa; e assim, está sempre voando pra lá e pra cá, sem nunca construir um ninho calmo e tranquilo. O cristão, no entanto, constrói seu ninho e, como disse o nobre Lutero: “Como aquele passarinho na árvore, ele se alimenta esta noite ━ sem saber onde estará seu café da manhã no dia seguinte. Ele fica ali quietinho enquanto a árvore é balançada pelo vento; ele fecha os olhinhos, põe a cabecinha debaixo da asa e dorme; e, quando acorda pela manhã, canta:

Os mortais cessam seu labor e tristeza
Para amanhã, Deus proverá, com certeza”

Pouquíssimos são aqueles que possuem a bênção do contentamento ━ que podem dizer: “Nada mais quero; tenho tudo de que preciso ━ nada mais desejo ━ estou satisfeito ━ estou contente”. Acabamos de cantar um belo hino, mas tenho a impressão de que muitos não tinham o direito de cantá-lo, pois não se sentem assim.

Em Tua vontade entrego a minha sorte
Concede-me só mais um favor
Que tanto na vida quanto na morte
Eu prove sinais do Teu amor

Será que você poderia dizer que não quer mais nada neste mundo, a não ser Jesus? Poderia dizer que está totalmente satisfeito ━ que tem o sono do contentamento? Ah! Não mesmo! Os aprendizes suspiram até se tornarem oficiais; os oficiais se esforçam para se tornarem chefes; os chefes anseiam pela aposentadoria, mas, quando se aposentam, almejam ver seus filhos estabelecidos. O homem está sempre olhando além; é um marinheiro que nunca alcança o porto; uma flecha que nunca atinge o alvo. O cristão, no entanto, tem este texto e medita nele: “assim dá ele aos seus amados o sono”. Certa vez, quando me encontrava meio adormecido, pareceu-me estar num castelo. Ao redor de suas muralhas havia um fosso profundo. Guardas marchavam sobre elas dia e noite. Era uma bela fortaleza antiga que desafiava o inimigo; mas eu não estava feliz ali. Pensei em me deitar, mas, mal fechei os olhos, soou uma trombeta: “Às armas! Às armas!”. Quando o perigo passou, deitei-me novamente. “Às armas! Às armas!”, ressoou mais uma vez, e mais uma vez coloquei-me de pé. Não conseguia descansar. Estava com minha armadura, andando de um lado para o outro, sempre protegido pela cota de malha, voando para o topo do castelo a cada novo alarme. Às vezes o inimigo vinha do leste, outras do oeste. Acho que tinha algum tesouro escondido no castelo e era meu dever guardá-lo. Estava apavorado, temendo que alguém pudesse tomá-lo de mim. Então acordei e pensei que jamais viveria num lugar como aquele, por mais imponente que ele fosse. Aquele era o castelo do descontentamento, o castelo da ambição, onde nunca ninguém descansa. É sempre: “Às armas! Às armas!” O inimigo está por todo lado. O precioso tesouro precisa ser guardado. O sono nunca atravessa a ponte levadiça do castelo do descontentamento. Então, achei que poderia apagar essa imagem substituindo-a por um sonho muito melhor. Eu estava em um chalé. Era um daqueles lugares a que os poetas chamam de belo e agradável, mas isso não importava. Eu não tinha nada, só uma joia cintilante no peito; coloquei minha mão sobre ela e fui dormir, e só acordei na manhã do dia seguinte. Esse tesouro era uma consciência tranquila e o amor de Deus ━ “a paz que excede todo o entendimento”. Eu dormi, porque dormi na casa do contentamento, satisfeito com aquilo que tinha. Vão, sovinas miseráveis! Vão, ávidos ambiciosos! Não invejo sua vida irrequieta. O sono dos políticos, com frequência, é quebrado; o sonho do avarento é sempre ruim; o sono do homem que ama o lucro nunca é saudável; contudo, Deus “dá”, pelo contentamento, “aos seus amados o sono”.

4. E ainda, Deus dá aos Seus amados o sono da quietude da alma em relação ao futuro. Ah, o futuro sombrio! O futuro! O presente pode ser bom; mas, e se a próxima ventania secar todas as flores, onde estarei? Tu, sovina, segura firme o teu ouro, pois “certamente, a riqueza fará para si asas, como a águia que voa pelos céus” (Provérbios 23.5). Mãe, aperta teu filho contra o peito, pois a horrível mão da morte pode roubá-lo de ti. Ó, homem cheio de ambição, olha a tua fama e te admires dela! Pois, apenas um ligeiro boato poderá acabar com a tua reputação e, pelas vozes da multidão, descerás da mesma forma que foste elevado. Ah, o futuro! Todos precisam temer o futuro, exceto o cristão. Deus dá a Seus amados o sono em relação aos acontecimentos do porvir.

Seja como for o futuro,
Bom ou mau, estou seguro;
Meu coração no Senhor descansa,
O Seu desígnio sempre me alcança.

Se vou viver ou morrer, não me importa; se vou ser “escória de todos” ou “o homem a quem o rei deseja honrar”, também não me importa. Tudo é igual, se vem do Pai. “Pois assim dá ele aos seus amados o sono”. Quantos aqui já tiveram a felicidade de dizer que não desejam absolutamente mais nada? É bom ter pelo menos um único desejo; mas é ainda melhor não ter nenhum ━ estar totalmente imerso no presente, regozijando-se em Cristo e na antevisão da Sua face. Ah, minh’alma! Como seria o futuro, se não tivesses a Cristo? Que importa um futuro amargo e sombrio, se Cristo, teu Senhor, o santificar, e o Espírito Santo te der coragem, energia e força? Grande bênção é poder dizer junto com Madame Guyon ━ 

Tudo é igual se ordenado pelo amor
Vida ou morte, prazer ou sofrer
Mal não vê minh’alma na dor
Nem bem real na saúde e prazer

Um único bem ambiciono
Sem egoísmo, Tua vontade escolher
Preferir uma choupana a um trono 
E dor ao conforto, se for Teu querer

É Teu mandar minha cruz suportar ━ 
Morrer para o mundo e viver sem pecado
Sob a mais rude mão com paciência penar
Feliz em naufrágio ou em terra amparado

Quem alcança essa condição é feliz. “Pois assim dá ele aos seus amados o sono”. Ah! Se você tem um desejo egoísta no coração, peça a Deus para removê-lo. Você é egocêntrico? Suplique ao Espírito Santo para mudar sua atitude; pois se sempre fizer as coisas conforme a vontade de Deus, você será feliz. Uma vez ouvi falar de uma senhora que vivia numa casinha muito humilde e que não tinha nada, a não ser um pedaço de pão e umas migalhas, mas que levantava as mãos para o alto, como que proferindo uma bênção, e dizia: “O quê? Tudo isso, além de Cristo?”. Sim, é “tudo isso”, se comparado ao que merecemos. Li também sobre um homem que estava às portas da morte, a quem perguntaram se preferia viver ou morrer, e ele respondeu: Não penso nisso. ━ Mas, e se pudesse desejar uma coisa ou outra, o que escolheria? ━ Não escolheria. ━ Mas, e se Deus lhe pedisse para escolher? ━ Eu pediria que Ele escolhesse por mim, pois não saberia o que fazer”. Isso é felicidade! Isso é felicidade! Ser totalmente aquiescente ━ 

Entregar-se passivamente em Suas mãos
E nada saber além da Sua vontade.

“Pois assim dá ele aos seus amados o sono”

5. Em quinto lugar: há também o sono da segurança. Salomão dormia com homens armados ao redor da sua cama, por isso, dormia em segurança; mas o pai de Salomão certa noite dormiu no chão duro ━ não num palácio ━ sem fosso ao redor do castelo ━ no, entanto, dormiu com tanta segurança quanto seu filho, pois disse: “Deito-me e pego no sono; acordo, porque o SENHOR me sustenta” (Salmo 3.5). Ora, algumas pessoas nunca se sentem seguras, e eu me pergunto se metade de meus ouvintes também não se sentem assim. Suponha que, de repente, eu comece a cantar:

Até o fim vou suportar
Com a segurança que me é dada
Mais feliz, não mais segura deve estar
Toda alma no céu glorificada

Você poderia me dizer que esta é uma doutrina muito elevada; e eu responderia que, para você, talvez seja, mas é uma verdade de Deus, e é preciosa para mim. Eu amo saber que, se sou predestinado segundo a presciência de Deus, devo ser salvo; se fui comprado pelo sangue do Filho, não posso ser perdido, pois seria impossível que Jesus perdesse qualquer um dos Seus redimidos, caso contrário Ele não Se satisfaria com a Sua obra. Sei que onde Ele começou boa obra, Ele há de terminá-la. Nunca tive receio de me desviar ou de ser perdido; meu único temor seria se não tivesse sido justificado; mas já que fui, já que sou realmente filho de Deus, posso até acreditar que o sol poderia enlouquecer e cambalear pelo universo como um bêbado ━ que as estrelas sairiam de seus cursos e, em vez de marchar a passos comedidos, como o fazem agora, iriam rodopiar pelo céu numa orgia desenfreada ━ poderia até mesmo imaginar que todo este vasto universo poderia submergir em Deus, como “a espuma de um momento desaparece sob a onda que a sustenta” (citação da obra A Life Drama and other poems, de Alexander Smith, cena II, p. 35, 1859, Boston: Ticknor and Fields). No entanto, nem razão, nem heresia, nem lógica, nem eloquência, nem um conclave de religiosos, me fará levar sequer em consideração a terrível sugestão de que um filho de Deus pode perecer. Portanto, posso trilhar meu caminho na terra com confiança. Ainda há pouco, discutindo com um arminiano, ele disse: ━ “Senhor, você deve ser um homem muito feliz, pois, se o que você diz é verdade, você está tão seguro de ir para céu que é como se já estivesse lá”. ━ “Sim, sei disso”, repliquei. ━ “Então, você deve viver acima das preocupações e tribulações, e deve cantar o dia inteiro”. E eu lhe disse: “Assim devo ser e assim serei, com a ajuda de Deus”. Isso é segurança. “Dá ele aos seus amados o sono”. Saber que, quando morrer, vou para o céu ━ ter tanta certeza, quanto tenho da minha própria existência, de que Deus, tendo me amado com amor eterno, e sendo Ele imutável, jamais me odiaria se um dia me amou ━ saber que vou entrar no reino da Sua glória ━ não será isso suficiente para aliviar todos os fardos e dar a meus pés a ligeireza da corça para que eu me firme nas alturas (Salmo 18.33)? Que segurança! “Pois assim dá ele aos seus amados o sono”. 

E há um sono, meus amigos, de segurança, que é desfrutado aqui na terra mesmo em meio a grandes tribulações. Lembram-se daquela passagem do livro de Ezequiel em que está escrito: “seguras habitarão no deserto e dormirão nos bosques” (Ezequiel 34.25)”? Que lugar estranho para se dormir! “Nos bosques”. Ali tem lobo; tem tigre no meio do mato; tem águia rondando no céu; e um bando de ladrões vivendo na floresta. Mas o filho de Deus diz: “Não importa”.

Quem em Deus encontra guarida
Tem morada segura e querida
Sob Sua sombra de dia andará
E à noite em paz dormirá

Sempre admirei a postura de Martinho Lutero. Quando falavam mal dele, sabem o que ele dizia? ━ “Lembro-me de um Salmo que diz: ‘Deus é o nosso refúgio e fortaleza, socorro bem-presente nas tribulações. Portanto, não temeremos ainda que a terra se transtorne e os montes se abalem no seio dos mares’ (Salmo 46.1-3)”. De modo bem menos incisivo, também tenho sido chamado a enfrentar problemas como os de Lutero e tenho sido alvo de difamação e objeto de zombaria e escárnio; no entanto, isso não tem abatido meu espírito; e nem abaterá, enquanto eu for capaz de desfrutar dessa calma interior: “assim dá ele aos seus amados o sono”. Contudo, tomo a liberdade de dizer àqueles que preferem zombar e falar mal de mim, que fiquem à vontade e o façam até se cansar. Meu moto é cedo nulli ━ não me rendo a ninguém. Nunca procurei a simpatia de quem quer que seja; nem pedi apoio para o meu ministério; prego o que quero, quando quero e como quero. Ah! Que felicidade! Ser ousado, apesar de abatido e magoado ━ dobrar os joelhos e contar tudo ao Pai, e depois ir para os meus aposentos e dizer:

Se por Teu doce Nome
Vergonha e rejeição eu passar
Uma e outra são bem-vindas 
Pois de mim sei que vais Te lembrar

6. O último sono dado por Deus a Seus amados é o sono da alegre despedida. Já estive diante do túmulo de muitos servos do Senhor. Já enterrei algumas das melhores pessoas do mundo; e quando dou adeus a meus irmãos que estão sendo baixados à sepultura, costumo iniciar com estas palavras: “assim dá ele aos seus amados o sono”. Amados servos de Jesus! Eu os verei lá! O que mais posso dizer sobre eles, senão que “assim dá ele aos seus amados o sono”? Ah! Que sono feliz! Neste mundo há muita agitação, mas na sepultura eles descansam. Ali não há tristeza, suspiro ou gemido para se misturar com as canções que brotam das línguas imortais. Por isso, posso me dirigir ao morto e dizer: ━ “Irmão, muitas vezes travaste as batalhas deste mundo; tiveste as tuas preocupações; mas agora já partiste ━ não para mundos desconhecidos, mas para a pátria de luz e glória além. Descansa em paz, meu irmão! Tua alma não dorme, porque tu estás no céu; mas teu corpo repousa. A morte te colocou no teu último leito; talvez seja frio, mas é santificado; talvez seja úmido, mas é seguro; e na manhã da ressurreição, quando o arcanjo tocar a trombeta, tu ressuscitarás. “Bem-aventurados os mortos que, desde agora, morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que descansem das suas fadigas, pois as suas obras os acompanham” (Ap 14.13). Descansa no teu túmulo, meu irmão, pois ressuscitarás para a glória. “Assim dá ele aos seus amados o sono”.

Alguns aqui têm medo de morrer, e com boa razão, pois a morte para vocês seria o princípio das dores; e quando ela se aproximar, vós podereis ouvir o anjo do Apocalipse: “O primeiro ai passou. Eis que, depois destas coisas, vêm ainda dois ais” (Ap 9.12). Sim, cavalheiros, se morrerdes despreparados, sem conversão e sem salvação, a única coisa que vos resta é “certa expectação horrível de juízo e fogo vingador” (Hb 10.27). Não preciso falar como um Boanerges (Mc 3.17), pois esta é para vocês uma verdade bem conhecida, a de que, sem Deus, sem Cristo, “separados da comunidade de Israel” (Ef 2.12), sua porção deve ser entre os condenados ao inferno ━ os demônios ━ os torturados ━ os espíritos horripilantes ━ as almas errantes que não encontram descanso ━ 
Nas ondas do mar de enxofre lançado,
Pra sempre, sim, pra sempre, perdido!

“A ira vindoura!” “A ira vindoura!” “A ira vindoura!”

Contudo, amado irmão em Cristo, por que temes morrer? Vem, deixa-me pegar tua mão:

Para mim e para ti, a graça nos deu
Conhecer o precioso nome do Salvador
Em breve nos encontraremos no céu
Nosso fim e esperança, o eterno dulçor.

Sabe que o céu está logo ali, além do rio? Está com medo de mergulhar e atravessar? Tem medo de se afogar? Posso sentir o fundo ━ é bom. Pensas que vais afundar? Ouve a voz do Espírito: “não temas, porque eu sou contigo; não te assombres, porque eu sou o teu Deus: Quando passares pelas águas, eu serei contigo; quando, pelos rios, eles não te submergirão” (Is 41.10; 43.2). A morte é o portão das alegrias sem fim, e tens medo de entrar por ele? O quê? Temes ficar livre da corrupção? Ah, não digas isso! Deita-te alegremente e dorme em Jesus, e sê abençoado.

Concluí minha exposição. Só quero lhes fazer mais uma pergunta antes de saírem por aquelas portas. Vocês têm certeza de que fazem parte dos “amados” aqui mencionados? Talvez eu esteja sendo um tanto impertinente; já fui acusado disso antes, mas nunca o neguei. Prefiro ser impertinente a não ser nada. No entanto, vou perguntar novamente, com toda seriedade: ━ Vocês acham que estão entre os amados de Deus? Se quiserem de fato saber, permitam-me sugerir-lhes rapidamente três testes, e então encerro. Dizem que há três tipos de pregadores: os que falam sobre doutrina, os que falam sobre experiências e os que falam sobre prática. Da mesma forma, creio que há três coisas que fazem um cristão: doutrina genuína, experiência legítima e prática correta.

Primeiramente, quanto à sua doutrina. Em parte, você pode dizer que é um amado do Senhor por causa disso. Alguns acham que não importa em que se crê. Perdoem-me, mas a verdade é sempre preciosa e até o menor átomo de verdade deve ser buscado. Hoje em dia (século. XIX, época de Spurgeon), as seitas não são tão dissonantes quanto já foram. Talvez isso seja bom, mas, de certa forma, também é ruim. As pessoas não leem a Bíblia como antes. Elas acham que todos estão certos. Bem, creio que todos podem estar certos na essência, mas não nos pontos em que se contradizem, o que deveria fazer com que todos buscassem na Bíblia o que é certo. Não tenho medo de submeter meu calvinismo ou a doutrina do batismo dos crentes ao exame da Bíblia. Certa vez, um senhor muito culto, mas não crente, disse à George Whitefield: “Senhor, não sou crente, não acredito na Bíblia, mas se a Bíblia é verdadeira, o senhor está certo, e seus adversários arminianos, errados. Se a Bíblia é a Palavra de Deus, as doutrinas da graça são verdadeiras”; acrescentado que, se alguém lhe provasse que a Bíblia é a verdade, ele o desafiaria a refutar o calvinismo. As doutrinas do pecado original, eleição, vocação eficaz, perseverança dos santos e todas as grandes verdades que são chamadas de calvinismo ━ embora o próprio Calvino não tenha sido seu autor e sim um hábil escritor e pregador desses assuntos ━ são, creio eu, as doutrinas essenciais do evangelho que está em Jesus Cristo. Ora, não estou perguntando se vocês creem nisso ou não, talvez não creiam, mas acredito que irão crer antes de entrar no céu. Estou certo de que, assim como Deus limpou seu coração, Ele também limpará seu cérebro antes que entrem no céu. Ele os fará aceitar Suas doutrinas. No entanto, preciso perguntar se vocês leem a Bíblia. Não estou criticando-os por discordarem de mim; posso estar errado; o que quero saber é se vocês já encontraram nas Escrituras qual é a verdade. E, se vocês não leem a Bíblia, se sua doutrina é de segunda mão, se vão à igreja e dizem: “Não gosto disso”; não importa se gostam ou não, mas está na Bíblia? É verdade bíblica ou não? Se é a verdade de Deus, é digna de louvor. Talvez não seja do seu gosto, mas deixe-me lembrá-lo de que Jesus nunca foi agradável ao paladar de homens carnais, e creio que nunca será. A razão pela qual não gostam das doutrinas da graça é porque elas acabam com seu orgulho; elas o humilham demais. Busquem a si mesmos, então, na doutrina.

A seguir, cuidem para se lembrar do teste da experiência. Receio que haja muito pouca religião vivida entre nós; mas onde há doutrina genuína, deve sempre haver experiência legítima. Cavalheiros, provem a si mesmos com o teste da experiência. Já experimentaram sua própria corrupção, sua depravação, sua incapacidade, sua morte em pecado? Já sentiram vida em Cristo, a experiência da luz do semblante de Deus, da luta contra a corrupção? Já tiveram a graça concedida pelo Espírito Santo ━ a experiência implantada da comunhão com Cristo? Se já, então vocês passaram no teste.

E, para concluir, cuidem do teste da prática. “A fé, se não tiver obras, por si só está morta” (Tg 2.17). Aquele que anda em pecado é filho do diabo; e aquele que anda em retidão é filho da luz. Não pense que, por crer nas doutrinas certas, você é justo. Há muitos que creem da forma certa, vivem errado e morrem. “Não vos enganeis: de Deus não se zomba; pois aquilo que o homem semear, isso também ceifará” (Gálatas 6.7).

Terminei. Agora, permitam-me suplicar-lhes, pela fraqueza das suas próprias vidas ━ pela brevidade do tempo ━ pelas temíveis realidades da eternidade ━ pelos pecados que têm cometido ━ pelo perdão que necessitam ━ pelo sangue e pelas chagas de Jesus ━ pela Sua segunda vinda para julgar o mundo em justiça ━ pelas glórias do céu ━ pelos horrores do inferno ━ pelo tempo ━ pela eternidade ━ por tudo o que é bom ━ por tudo o que é sagrado ━ permitam-me rogar-lhes: assim como amam a sua própria alma, busquem e descubram se estão entre os amados de Deus, a quem Ele concede o sono. Que o Senhor os abençoe.

Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza