quinta-feira, 13 de maio de 2021

Uma Lei Inalterável

 Sermão nº 3418

Publicado na terça-feira, 06 de agosto de 1914

Ministrado por C. H. Spurgeon

No Tabernáculo Metropolitano, Newington


“Sem derramamento de sangue, não há remissão”. — Hebreus 9:22


Em qualquer lugar sob a antiga dispensação figurativa, o sangue era algo bem visível. O sangue era a coisa mais importante da economia judaica e raramente uma cerimônia era realizada sem ele. Ninguém podia entrar no tabernáculo, mas era possível ver vestígios de sangue por toda parte. Às vezes, recipientes com sangue eram derramados aos pés do altar. O lugar era tão parecido com um matadouro que visitá-lo estava longe de ser uma coisa agradável; por isso, para gostar daquele lugar, era preciso ter uma fé viva e entendimento espiritual. A matança de animais era a forma de adoração; o derramamento de sangue era o ritual designado e o sangue espalhado pelo chão, pelas cortinas e pelas vestes dos sacerdotes era um memorial constante. Quando Paulo diz que, quase todas as coisas, sob o regime da lei, eram purificadas com sangue, ele está se referindo a umas poucas coisas que não eram. Assim sendo, encontraremos diversas passagens onde as pessoas eram exortadas a lavar suas vestes, e aqueles que estavam impuros devido a causas físicas tinham de lavar suas vestes com água. As roupas usadas pelos homens geralmente eram lavadas com água. Após a derrota dos midianitas, conforme registrado no livro de Números, os despojos, que estavam contaminados, tiveram de ser purificados antes de serem reivindicados pelos israelitas vitoriosos (Números 31). De acordo com as ordenanças da lei que o Senhor dera a Moisés, alguns bens, como roupas e artigos feitos de pele ou pelo de cabra, deveriam ser purificados com água, enquanto as coisas feitas de metal, que podiam suportar o fogo, eram purificadas com fogo. Mesmo assim, o apóstolo se refere a um fato literal quando diz que quase todas as coisas, sendo as vestes a única exceção, eram purificadas, sob o regime da lei, com sangue. Portanto, ele está se referindo a uma verdade conhecida por todos, a de que, sob a antiga dispensação legal, não havia perdão de pecados, exceto pelo derramamento de sangue. Havia uma única exceção aparente e, até mesmo ela, prova a universalidade da regra, pois a razão para tal é bem esclarecida. A oferta pela culpa, apresentada como alternativa em Levítico 5.11, poderia, em casos de extrema pobreza, ser uma oferta sem sangue. Se alguém fosse pobre demais para levar uma oferta de gado, poderia levar duas rolas ou dois pombinhos; no entanto, se a pessoa fosse pobre demais até para isso, poderia oferecer a décima parte de um efa da flor de farinha como oferta pelo pecado, sem azeite ou incenso, a qual seria lançada no fogo. Esta é a única exceção entre todos os exemplos. Em todos os lugares, em todas as vezes e em todos os casos em que houvesse pecado a ser removido, o sangue deveria fluir, a vida tinha que ser tirada. A única exceção registrada apenas ressalta o fato de que “sem derramamento de sangue, não há remissão”. Sob o evangelho, no entanto, não há exceção, não há um único caso sequer, como havia sob o regime da lei; não, nem mesmo para os paupérrimos. E tais somos nós espiritualmente. Visto que não há nenhum de nós para levar a oferta, e não mais que uma oferta para oferecer, todos temos que tomar a oferta já apresentada e aceitar o sacrifício feito por Jesus Cristo, de Si mesmo, em nosso lugar — agora não há motivo ou fundamento para exceção, para qualquer homem ou mulher vivo, nem haverá, seja neste mundo ou no porvir — “Sem derramamento de sangue, não há remissão”. Então, com grande simplicidade, no que diz respeito à nossa salvação, peço a atenção de cada um de vocês para este assunto tão grandioso, o qual está intimamente ligado aos nossos interesses eternos. Por isso, em primeiro lugar, deduzo do texto o seguinte fato encorajador:

I. HÁ REMISSÃO — ou seja, remissão de pecados. “Sem derramamento de sangue, não há remissão”. Sangue foi derramado, portanto, há esperança com relação a isso. Remissão, não obstante os rigores da lei, não é ser entregue ao puro desespero. A palavra remissão significa quitar dívidas. Assim como o pecado pode ser considerado uma dívida contraída com Deus, essa dívida pode ser apagada, cancelada e removida. O pecador, em débito com Deus, pode deixar de ser devedor, por compensação ou por absolvição total, e pode ficar livre em virtude dessa remissão. Isso é possível. Glória a Deus, a remissão de todos os pecados, dos quais é possível se arrepender, pode ser obtida. Seja qual for a transgressão de alguém, seu perdão será possível se o seu arrependimento for possível. Pecado sem arrependimento é pecado imperdoável. Se o pecado for confessado e abandonado, a pessoa encontrará misericórdia. Deus disse isso e Ele não será infiel à Sua Palavra. “Mas”, alguém diz, “não há um pecado que é para a morte”? Sim, na verdade há, mas eu não sei qual é, nem creio que quem quer que estude o assunto seja capaz de descobrir que pecado é esse; parece muito claro que o pecado é praticamente imperdoável porque nunca houve arrependimento. Quem comete um pecado que é para a morte, para todos os efeitos e propósitos, torna-se morto em pecado no sentido mais profundo e permanente até mesmo que a raça humana como um todo, e é abandonado como um caso inveterado — de consciência cauterizada, por assim dizer, com ferro em brasa — e daí por diante ele não buscará misericórdia. Mas todo tipo de pecado e blasfêmia será perdoado aos homens. Seja para a luxúria, roubo ou adultério — sim, até mesmo para o assassinato, há o perdão de Deus, para que Ele seja temido. Ele é o Senhor Deus, gracioso e misericordioso, que Se esquece da transgressão, da iniquidade e do pecado.

E esse perdão que é possível é também, de acordo com as Escrituras, completo; isto é, quando Deus perdoa o pecado de alguém, Ele o faz de uma vez por todas. Ele apaga a dívida sem qualquer cálculo retroativo. Ele não tira uma parte do pecado da pessoa e a responsabiliza pelo resto; mas, no momento em que o pecado de alguém é perdoado, é como se sua iniquidade nunca tivesse sido cometida; ele é recebido na casa do Pai e abraçado com o amor do Pai como se nunca tivesse errado; ele é aceito na presença de Deus como se nunca tivesse cometido qualquer transgressão. Bendito seja Deus, crente, pois não há pecado contra ti no Livro de Deus. Se tu crês, estás perdoado — não parcialmente, mas totalmente perdoado. A escrita que era contra ti foi cancelada, encravada na cruz de Cristo (Cl 2.14), e jamais poderá ser pleiteada novamente contra ti. O perdão é completo.

Além do mais, esse perdão é agora. Na imaginação de algumas pessoas (para vergonha do evangelho), o perdão não é concedido até a hora da morte e, talvez, só então, de alguma forma misteriosa, nos últimos minutos de vida, a pessoa possa ser absolvida. Nós, porém, pregamos, em nome de Jesus, o perdão presente e imediato de todas as transgressões — um perdão dado em um instante — o momento em que o pecador crê em Jesus. Não como se fosse a cura gradual de uma doença, que precisasse de meses ou anos de tratamento. É verdade que a corrupção da nossa natureza é uma dessas doenças, e o pecado que habita em nós deve ser diariamente, e continuamente, mortificado; no entanto, quanto à culpa pelas nossas transgressões diante de Deus, e quanto à dívida contraída com a Sua justiça, a remissão não é uma coisa progressiva ou gradual. O perdão de um pecador é concedido imediatamente; e ele será dado a qualquer um que o aceite hoje mesmo — sim, e dado de tal forma que você nunca o perderá. Uma vez perdoado, perdoado para sempre, e nenhuma das consequências do pecado o afligirá. Você será absolvido irrestrita e eternamente, de modo que, quando os céus estiverem em chamas e o grande trono branco for erguido, e a última grande assembleia for realizada, você possa se apresentar com ousadia diante do tribunal, sem temer qualquer acusação, pois o perdão que o próprio Deus concede jamais será revogado.

Vou acrescentar ainda outra observação. Quem recebe o perdão, sabe que o recebeu. Se alguém simplesmente tivesse a esperança de ter recebido o perdão, essa esperança muitas vezes poderia lutar contra o medo. Se a pessoa só achasse que foi perdoada, seus escrúpulos poderiam assustá-la. No entanto, saber que o perdão foi concedido é fundamento seguro de paz para o coração. Glória a Deus que os privilégios da aliança da graça não são questões de esperança e suposição, mas de fé, convicção e segurança. Não é presunção crer na Palavra de Deus. A própria Palavra diz: “Quem crê em Jesus Cristo não é condenado”. Se creio em Cristo, então, não sou condenado. Que direito tenho de achar que sou? Se Deus diz que não, seria presunção da minha parte achar que sim. Não pode ser presunção entender a Palavra de Deus exatamente como ela é dita a mim. No entanto, alguém pode dizer: “Que felicidade se esse fosse o meu caso!” Disseste bem, pois “Bem-aventurado aquele cuja iniquidade é perdoada, cujo pecado é coberto. Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não atribui iniquidade” (Salmo 32:1-2).  E outra pessoa diz: “Nunca pensei que uma coisa tão maravilhosa fosse possível a alguém como eu”. Tu raciocinas à maneira dos filhos dos homens. Saiba, então, que assim como os céus são mais altos do que a terra, assim os caminhos de Deus são mais altos que os nossos, e seus pensamentos mais altos do que os nossos. (Is  55.9). Errar é do homem, perdoar é de Deus. Nós erramos como homens, mas Deus não perdoa como o homem, Ele perdoa como Deus, para que exultemos de alegria e cantemos: “Quem, ó Deus, é semelhante a ti, que perdoas a iniquidade e te esqueces da transgressão, da iniquidade e do pecado”? (Mq 7.18). Quando fazemos alguma coisa, é apenas um pequeno esforço feito de acordo com nossas habilidades; nosso Deus, no entanto, fez os céus. Quando perdoamos, perdoamos segundo a nossa natureza e nossas condições, mas quando Deus perdoa, Ele mostra as riquezas da Sua graça numa escala tão grande que nossa mente finita jamais poderia compreender. Milhares de pecados horrendos, pecados infernais, Ele remove num só instante, pois Ele Se deleita na Sua misericórdia; e o julgamento é sua obra estranha (Is 28.21). “Porque não tenho prazer na morte de ninguém, diz o Senhor Deus. Portanto, convertei-vos e vivei” (Ezequiel 18:32). Essa é uma observação maravilhosa fornecida pelo nosso texto. Não há remissão, exceto pelo sangue. Contudo, há remissão, pois sangue foi derramado.

Examinando o texto mais de perto, temos que insistir em sua grande lição:

II. EMBORA HAJA PERDÃO DO PECADO, ISSO JAMAIS SERÁ SEM SANGUE

Esta é uma sentença arrebatadora, pois algumas pessoas confiam no seu arrependimento para perdão dos seus pecados. Sem dúvida, arrepender-se dos pecados é um dever. Se você desobedece a Deus, deve lamentar por isso. Abandonar o pecado é simplesmente um dever da criatura, caso contrário, o pecado não seria violação da santa lei de Deus. Mas saiba que todo o arrependimento do mundo não pode apagar nem o menor dos pecados. Se você tiver um único pensamento pecaminoso passando pela sua cabeça, e sofrer por causa disso todos os dias da sua vida, ainda assim a mancha desse pecado não poderá ser removida, nem mesmo pela angústia que isso lhe causa. Onde o arrependimento é obra do Espírito Santo, ele é um dom precioso e um sinal da graça de Deus; mas não existe poder expiatório no arrependimento. Nem mesmo um mar repleto de lágrimas penitenciais tem poder ou virtude para lavar uma única mancha dessa hedionda impureza. Sem derramamento de sangue, não há remissão. Outras pessoas, no entanto, supõe que, de qualquer forma, a transformação decorrente do arrependimento é suficiente. O que aconteceria se a embriaguez fosse abandonada e a sobriedade se tornasse a regra? E se a licenciosidade fosse deixada por completo e a castidade se tornasse o adorno do caráter? E se a conduta desonesta fosse posta de lado e a integridade fosse escrupulosamente mantida em todos os negócios? Digo que tudo isso é muito bom; queira Deus que essas mudanças possam ocorrer em todos os lugares — no entanto, não contrair mais dívidas não paga as dívidas anteriores, e bom comportamento no futuro não perdoa os delitos passados. Por isso, o pecado não é remido com mudanças. Mesmo que um dia pudéssemos ser tão imaculados quanto os anjos (não que tal coisa seja possível a nós, pois um etíope não pode mudar a cor da sua pele, nem o leopardo as suas manchas), nossas mudanças não poderiam fazer expiação pelos pecados cometidos nos dias em que transgredimos contra Deus. Mas alguém diz: “O que posso fazer, então?” Há quem pense que suas orações e sua humildade de alma talvez possam fazer alguma coisa por eles. Suas orações talvez, se forem sinceros, mas preferiria que fossem expressão de uma vida espiritual. Contudo, caro ouvinte, a oração não tem efeito de apagar pecados. Vou dizer com mais ênfase. Todas as orações, de todos os santos na terra e, se fosse possível, junto com as orações de todos os santos nos céus, todas elas não poderiam apagar, por sua eficácia natural, o pecado de uma única palavra maligna. Não, não há poder de dissuasão na oração. Deus nunca a estabeleceu como meio de purificação. Ela tem seus usos, e usos valiosos. É um dos privilégios de quem ora que sua oração seja aceitável, mas a própria oração em si jamais poderá apagar o pecado sem o sangue. “Sem derramamento de sangue não há remissão”; ore como quiser.

Há quem pense que a negação de si mesmo e as mortificações em formas extraordinárias podem livrá-lo da culpa. Não é comum encontrarmos tais pessoas em nosso meio, mas há aqueles que, para purificarem a si mesmos do pecado, flagelam seu corpo, observam jejuns prolongados, vestem pano de saco e roupas de pelo coladas à pele, e alguns já chegaram ao ponto de imaginar que abster-se de banho e deixar o corpo sujo fosse o meio mais rápido de purificar a alma. Uma estranha obsessão, com certeza! Ainda hoje, no Industão, pode-se encontrar um faquir fazendo seu corpo passar por tremendos sofrimentos e distorções na esperança de se livrar do seu pecado. Qual é o propósito disso tudo, afinal? Parece-me que ouço o Senhor dizendo: “O que é para mim que inclines a cabeça como junco, vistas pano de saco, comas cinza com teu pão e mistures absinto em tua bebida? Tu violaste a minha lei; tais coisas não podem repará-la; ofendeste a minha honra com teu pecado; mas, onde está a justiça que dá honra ao meu nome?” O clamor dos antigos era: “Com que nos apresentaremos diante de Deus?”, e diziam: “Darei o meu primogênito pela minha transgressão, o fruto do meu corpo, pelo pecado da minha alma?” (Miquéias 6:7). Ah! Era tudo em vão. Eis aqui a sentença. E deve permanecer para sempre: “Sem derramamento de sangue não há remissão”. É a vida que Deus exige como a penalidade devida pelo pecado, e nada além da vida indicada no derramamento de sangue jamais poderá satisfazê-lO.

Observem mais uma vez como este texto envolvente tira toda a confiança nas cerimônias, mesmo aquelas que fazem parte das ordenanças de Deus. Há quem pense que o pecado possa ser lavado no batismo. Ah! Quanta tolice! A expressão usada na Escritura não tem essa implicação (At 22.16) — não tem o significado que alguns atribuem a ela, uma vez que o próprio apóstolo que disse isso se gloriava por não ter batizado muitas pessoas, a fim de que não pensassem que havia alguma eficácia na administração do rito (1Co 1.13-16). O batismo é uma ordenança admirável, na qual o crente mantém comunhão com Cristo na Sua morte (Cl 2.12). Ele é um símbolo; nada mais que isso. Milhões de pessoas são batizadas e morrem em seus pecados. Ou que proveito há no sacrifício incruento da missa, como ensina o anticristo (NT: o papa)? A quem disser que é um “sacrifício incruento” e, ao mesmo tempo, o oferecer como propiciação pelo pecado — nós jogamos este texto na cara: “Sem derramamento de sangue não há remissão”. Eles respondem que o sangue está no corpo de Cristo? Nós replicamos que, mesmo que estivesse, este não é o caso, pois é sem derramamento de sangue — sem sangue derramado; sangue, como distinto da carne, sem o derramamento de sangue não há remissão do pecado.

Aqui preciso seguir adiante e fazer um esclarecimento ainda mais profundo. O próprio Jesus Cristo, sem Seu sangue, não pode nos salvar. Essa é uma suposição que só os loucos já fizeram, mas que refutamos até mesmo como hipótese, quando se afirma que o exemplo de Cristo pode remover o pecado humano, que a vida santa de Jesus colocou a raça humana em tal compasso com Deus que agora Ele pode perdoar suas faltas e transgressões. Não é assim; não é a santidade de Jesus, não é a vida de Jesus, não é a morte de Jesus, é somente o sangue de Jesus, pois “sem derramamento de sangue não há remissão”.

Além disso, conheço algumas pessoas que pensam tanto na segunda vinda de Cristo que parecem ter firmado sua fé somente no Cristo em glória. Creio que isso se deva ao irvingismo (NT: movimento surgido na Escócia com o pastor Edward Irving — 1792-1834) — que fixa os olhos do pecador no Cristo entronizado — pois, embora Cristo em Seu trono deva ser sempre amado e honrado, ainda precisamos ver Cristo na cruz, ou nunca poderemos ser salvos. Tua fé não pode ser colocada simplesmente no Cristo glorificado, mas no Cristo crucificado. “Mas longe esteja de mim gloriar-me, senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo” (Gálatas 6:14). “Mas nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios” (1 Coríntios 1:23). Lembro-me de uma pessoa que fazia parte dessa igreja (a querida irmã talvez esteja aqui hoje), a qual era professa há alguns anos mas ainda não desfrutava da paz com Deus, nem produzia qualquer fruto do Espírito. Ela disse: “Frequentei uma igreja onde fui ensinada a descansar no Cristo glorificado e, assim, coloquei minha fé nEle de tal forma que, do Cristo glorificado, eu não tinha qualquer senso de pecado ou de perdão! Eu não conseguia entender e, até ter visto Cristo como aquele que derramou Seu sangue e fez propiciação pelo meu pecado, não pude descansar”. Sim, vou dizer outra vez, pois o texto é de vital importância: “Sem derramamento de sangue, não há remissão”, nem mesmo com o próprio Cristo. É pelo sacrifício que Ele ofereceu por nós que nos livramos do nosso pecado — só isso e nada mais. Sigamos adiante com a mesma verdade.

III. ESSA REMISSÃO DO PECADO DEVE SER ENCONTRADA AO PÉ DA CRUZ

A remissão deve ser obtida por meio de Jesus Cristo, cujo sangue foi derramado. O hino que cantamos no início do culto nos deu a essência da doutrina. A punição pelo pecado é a nossa dívida para com Deus. Essa dívida era devida ou não? Se a lei estava certa, a pena devia ser aplicada. Se a pena era severa demais, e a lei inadequada, então Deus teria cometido um erro. No entanto, é uma blasfêmia supor tal coisa. Portanto, se a lei é justa, e a pena é justa, será que Deus faria algo injusto? Injusto seria Ele não executar a pena. Gostaria que Ele fosse injusto?  Ele declarou que a alma que pecar deve morrer (Ez 18.4); gostaria que Ele fosse mentiroso? Será que Ele tem de engolir Suas palavras para salvar Suas criaturas? “Seja Deus verdadeiro, e mentiroso, todo homem” (Rm 3.4). A sentença da lei devia ser cumprida. Era inevitável que, para manter a prerrogativa da Sua santidade, Deus tivesse de punir os pecados cometidos pelos homens. Como, então, Ele deveria nos salvar? Veja o plano! Seu querido Filho, o Senhor da glória, assume em Si mesmo a forma humana, recebe a todos quantos o Pai Lhe deu, toma o seu lugar, e quando a sentença judicial é promulgada e a espada da vingança salta da bainha, eis que o glorioso Substituto desnuda o braço e diz: “Golpeia, espada, mas golpeia a Mim, e deixa Meu povo ir”. A espada da lei traspassou a própria alma de Jesus e Seu sangue foi derramado, o sangue, não de quem era apenas homem, mas dAquele que, por ser um Espírito eterno, foi capaz de oferecer a Si mesmo sem mácula a Deus, de uma forma que deu eficácia infinita a Seus sofrimentos. Está escrito que Ele, por meio do Espírito eterno, ofereceu a Si mesmo sem mácula a Deus (Hb 9.14). Sendo, em Sua própria natureza, infinitamente mais que a natureza do homem, compreendendo em Si mesmo, por assim dizer, todas as naturezas do homem, em razão da majestade da Sua pessoa, Ele foi capaz de oferecer a Deus uma expiação de infinita, ilimitada e inconcebível suficiência.

O que Jesus sofreu, nenhum de nós pode dizer. No entanto, de um coisa estou certo: não posso desprezar ou subestimar Seus sofrimentos — as torturas físicas que Ele suportou — mas estou igualmente certo de que ninguém pode exagerar ou supervalorizar os sofrimentos de uma alma como a Dele; eles estão muito além do que podemos conceber. Ele foi tão puro, tão perfeito, tão extraordinariamente sensível e tão imaculadamente santo que, ser contado com os transgressores, ser ferido pelo Pai, morrer (como direi?) a morte dos incircuncisos pelas mãos de estrangeiros, foi a própria essência da amargura, a consumação da angústia. “Todavia, ao Senhor agradou moê-lo, fazendo-o enfermar” (Isaías 53:10). Suas próprias angústias foram aquilo que a liturgia grega chama, com muita propriedade, de “sofrimentos desconhecidos, dores extraordinárias”. Por conseguinte, sua eficácia é também infinita, ilimitada. Agora, então, Deus pode perdoar o pecado. Ele puniu o pecado em Cristo; é uma questão de justiça, assim como de misericórdia, que Deus cancele as dívidas que já foram pagas. Seria injusto, digo isso com reverência, mas com santa ousadia — seria injusto da parte da infinita Majestade culpar-me de um único pecado que foi imputado ao meu Substituto. Se meu Fiador pagou meu pecado, Ele me libertou, e estou livre. Quem ressuscitará o julgamento contra mim quando já fui condenado na pessoa do meu Salvador? Quem me entregará às chamas do inferno, quando Cristo, meu Substituto, já sofreu o equivalente ao inferno por mim? Quem intentará acusação contra mim, quando Cristo assumiu a culpa por todos os meus crimes, respondeu por eles, expiou-os e recebeu o recibo de quitação, uma vez que Ele ressuscitou dos mortos para poder reivindicar abertamente essa justificação na qual pela graça sou chamado e tenho o privilégio de participar? Resumindo, é tudo muito simples, mas será que todos nós o recebemos, que todos o aceitamos? Oh! Caros ouvintes, o texto está repleto de advertências para alguns de vocês. Talvez você tenha uma boa disposição, um caráter excelente, uma atitude séria, mas ainda tem receio de aceitar a Cristo; você tropeça na pedra de tropeço; você se despedaça na rocha. Como posso explicar um caso tão infeliz? Não vou discutir com você. Evito entrar em qualquer discussão. Apenas vou lhe fazer uma pergunta. Você acredita que a Bíblia seja inspirada por Deus? Veja então esta passagem: “Sem derramamento de sangue, não há remissão”. O que você me diz? Ela não é absolutamente conclusiva? Permita-me fazer uma inferência. Se você não tem interesse no derramamento de sangue, o qual tentei brevemente descrever, será que existe remissão para você? Pode haver? Seus pecados estão sob sua total responsabilidade agora. Quando o grandioso Juiz voltar, eles serão requeridos das suas mãos. Você pode trabalhar, se esforçar, ser sincero em suas convicções, ter a consciência tranquila ou ser cheio de escrúpulos; no entanto, tão certo quanto vive o Senhor, não há perdão para você, a não ser pelo derramamento de sangue. Você o rejeita? O perigo jaz sobre sua cabeça. Deus falou. Não se pode dizer que sua ruína foi designada por Ele quando o próprio remédio para ela é revelado por Ele.

Deus ordena que você siga o caminho designado por Ele e, se você o rejeitar, deve morrer. Sua morte é suicídio, seja deliberado, acidental ou por erro de julgamento. Seu sangue está sobre sua própria cabeça. Você está avisado.

Por outro lado, que grande consolação o texto nos dá! “Sem derramamento de sangue, não há remissão”. Mas onde há sangue derramado, há remissão. Se vieres a Cristo, serás salvo. Se puderes dizer, de todo coração:

Minha fé sua mão estende

Colocando-a sobre a Tua cabeça

Aqui estou como um penitente

Que seus pecados confessa


Então, o pecado se foi. Onde está aquele jovem? E aquela jovem? Onde estão aqueles corações ansiosos que dizem: “Será que agora seremos perdoados”? Ah, olhem, olhem, olhem, olhem para o Salvador crucificado, e sejam perdoados. Podem seguir seu caminho, pois vocês aceitaram a expiação de Deus. Filha, tende bom ânimo, teus pecados, que são tantos, te foram perdoados. Filho, regozija-te, pois tuas transgressões foram apagadas.

Minha última palavra será esta. Quem ensina outras pessoas e tenta fazê-lo da maneira correta, apegue-se a esta doutrina. Que ela seja a frente, o centro, a essência e o cerne de tudo o que você tem a dizer. Costumo pregar com frequência sobre isso, e não há domingo em que eu vá para cama tão satisfeito em meu íntimo quanto aquele em que prego sobre o sacrifício substitutivo de Cristo. Só então eu sinto que “se os pecadores estão perdidos, seu sangue não está sobre mim”. Esta é a doutrina da salvação da alma, compreenda-a e terá conquistado a vida eterna; rejeite-a e sua rejeição será para sua vergonha. Ah! Guardem isso. Martinho Lutero costumava dizer que todo sermão devia incluir a doutrina da justificação pela fé. Verdade; mas incluindo também a doutrina da expiação. Ele dizia que não conseguia enfiar a doutrina da justificação pela fé na cabeça dos cidadãos de Wurtemberg e se sentia meio inclinado a pegar o livro do púlpito e atirar na cabeça deles, para que a entendessem. Receio que, mesmo que ele tivesse tentando, não teria tido muito sucesso. Ah, como eu gostaria de insistir neste ponto mais e mais vezes, “a vida está no sangue”. “Quando eu vir o sangue, passarei por vós” (Êxodo 12:13).

Cristo deu Sua vida ao derramar Seu sangue — e é isso que dá perdão e paz a cada um de vocês, se olharem somente para Ele — perdão agora, perdão completo, perdão para sempre. Não confie em mais nada; confie somente nos sofrimentos e na morte do Deus encarnado, que subiu ao céu e hoje vive para suplicar por nós diante do trono do Pai; pelo mérito do sangue que, no Calvário, Ele derramou pelos pecadores. Assim como os encontrarei naquele grande dia, quando o Crucificado vier como Rei e Senhor de todos, dia esse que se apressa, assim como eu os encontrarei então, oro para que vocês testemunhem que me esforço para lhes dizer com toda simplicidade qual é o caminho da salvação. Se vocês o rejeitarem, façam-me este favor: digam que pelo menos eu lhes ofereci, em nome do Senhor Deus, o Seu evangelho, e insisti honestamente para que o aceitassem, a fim de poderem ser salvos. Contudo, eu preferiria, pela graça de Deus, encontrá-los lá, todos cobertos pela única expiação, revestidos da única justiça e aceitos no único Salvador, para juntos cantarmos: “Digno é o Cordeiro que foi morto de receber o poder, e riqueza, e sabedoria, e força, e honra, e glória, e louvor” (Apocalipse 5:12). Amém.

Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza

sexta-feira, 5 de março de 2021

O povo de Cristo — Imitadores de Cristo


Sermão nº 21

Ministrado na manhã de domingo, 29 de abril de 1855

Pelo Rev. C. H. Spurgeon

Em Exeter Hall, Strand, Londres, Inglaterra



Então eles, vendo a ousadia de Pedro e João, e informados de que eram homens sem letras e indoutos, maravilharam-se e reconheceram que eles haviam estado com Jesus. — Atos 4:13, ACF


Vejam! Que mudança a graça divina provoca numa pessoa, e em quão pouco tempo! Esse mesmo Pedro, que pouco antes seguia seu Mestre à distância e, com juramentos e maldições, negava conhecê-lO, agora está lado a lado com o amado João, declarando ousadamente que não há salvação em nenhum outro nome senão no de Cristo, e pregando a ressurreição dos mortos por meio do agonizante sacrifício do Senhor. Os escribas e fariseus logo descobrem a razão de sua intrepidez. Acertadamente eles supõem que não é devido aos estudos ou talentos de Pedro e João, pois nem um nem outro tinha instrução; eles tinham sido treinados como pescadores; sua educação era o conhecimento do mar — no ofício de pescadores, nada mais que isso; sua ousadia, portanto, não podia vir da autossuficiência do conhecimento, mas do Espírito do Deus vivo. Sua coragem também não vinha de sua posição, pois posição pessoal confere às pessoas certa dignidade, fazendo-as falar com suposta autoridade, mesmo que elas não tenham talento ou genialidade; mas estes homens eram, como diz o texto original, idiotai, homens simples, sem cargo oficial, homens sem patente ou posição. Quando veem a ousadia de Pedro e João, e percebem que eles são iletrados e incultos, as autoridades do povo e os escribas ficam maravilhados, chegando acertadamente à conclusão da origem do seu poder — eles tinham estado com Jesus. Suas conversas com o Príncipe de luz e glória, sustentadas, como também deviam saber, pela influência do Espírito Santo, sem a qual até mesmo esse importante exemplo santo teria sido em vão, tornaram-nos ousados pela causa do seu Mestre. Ah, queridos irmãos, como seria bom se essa condenação, irrompida dos lábios dos inimigos, pudesse também ser forçada pelo nosso próprio exemplo. Se vivêssemos como Pedro e João; se nossas vidas fossem “epístolas vivas de Deus, conhecidas e lidas por todos os homens” (2 Coríntios 3:2); se, sempre que fôssemos vistos, as pessoas soubessem que estivemos com Jesus, seria uma ótima coisa para este mundo, e uma bênção para nós. É sobre isso que quero lhes falar nesta manhã; e, pela graça que me for concedida por Deus, vou me esforçar para estimular suas lembranças e exortá-los a imitar Jesus Cristo, nosso modelo celestial, para que as pessoas percebam que vocês são discípulos do Santo Filho de Deus.

Portanto, em primeiro lugar vou falar sobre o que o cristão deve ser; depois, quando é que ele deve ser assim; a seguir, por que ele deve ser assim e, por último, como ele pode ser assim.

1. Com a ajuda de Deus, então, primeiramente vamos falar sobre o QUE O CRENTE DEVE SER. O cristão deve ter uma incrível semelhança com Jesus Cristo. Lemos sobre aquilo que Cristo fez, tudo escrito com beleza e eloquência, e ficamos admirados com o talento das pessoas que escreveram tão bem Sua história; mas a melhor parte da história de Cristo é a Sua biografia viva, escrita nas palavras e atitudes do Seu povo. Se nós, queridos irmãos, fôssemos o que professamos ser; se o Espírito do Senhor estivesse no coração de todos os Seus filhos, como desejamos; e se, ao invés de termos tantos crentes professos por mera formalidade, todos fôssemos possuidores daquela graça vital, vou lhes dizer não só o que deveríamos ser, mas o que seríamos: seríamos retratos de Cristo, sim, com tal semelhança com Ele que o mundo não teria como nos resistir por uma hora sequer, dizendo: “Bem, parece que há alguma semelhança”, mas, quando nos visse, exclamaria: “Ele esteve com Jesus, foi ensinado por Ele, e é como Ele; ele sabe exatamente quem é o Santo de Nazaré; e age como Ele no seu dia a dia”.

Para discorrer sobre este ponto será necessário pressupor que, quando afirmamos que as pessoas devem ser tal e tal coisa, estamos nos referindo ao povo de Deus. Não queremos falar de forma legalista. Não estamos debaixo da lei e sim da graça. Os cristãos creem que devem guardar todos os preceitos de Deus não porque a lei os obrigue a isso, mas porque são constrangidos pelo evangelho; eles acreditam que, tendo sido redimidos pelo sangue divino, tendo sido comprados por Jesus Cristo, eles têm mais razões para guardar Seus mandamentos do que se estivessem sob a lei; eles se consideram milhares de vezes mais devedores a Deus do que se estivessem sob a dispensação mosaica. Não pela força, não pela obrigação, não pelo medo do chicote ou pela escravidão da lei, mas pelo amor puro e desinteressado e pela gratidão a Deus eles se dispõem a servi-lO, procurando ser realmente israelitas em quem não há dolo. Falo isso para ninguém pensar que estou pregando as obras como meio de salvação; jamais cederei nesse ponto; sempre vou sustentar que — pela graça somos salvos, não por nós mesmos. No entanto, devo igualmente testificar que, onde está a graça de Deus, ela produzirá boas obras. Sempre vou exortá-los a isso, ao passo que a prática de boas obras geralmente é esperada entre cristãos. Além disso, quando digo que um crente deve ter uma semelhança notável com Jesus, não creio que ele vá exibir perfeitamente todas as características de nosso Senhor e Salvador. Entretanto, meus irmãos, apesar da perfeição estar fora do nosso alcance, isso não deve diminuir o ardor do nosso anseio por ela. O artista, quando pinta, sabe muito bem que não será capaz de superar Apelles (NT: renomado pintor da Grécia antiga), mas isso não o desanima. Ele usa o pincel com todo empenho, a fim de poder, de alguma forma, se assemelhar ao grande mestre. Da mesma forma o escultor, mesmo sabendo que nunca será como Praxíteles (NT: o mais renomado escultor grego do século IV aC), irá esculpir o mármore procurando deixá-lo o mais parecido possível com o modelo. O cristão, igualmente, não obstante saber que nunca estará à altura da completa excelência e perceba que, na terra, nunca será a imagem exata de Cristo, ainda a tem diante de si e mede suas próprias deficiências pela distância entre si mesmo e Jesus. Ele o fará esquecendo-se de tudo o que ficou para trás (Fp 3.12), avançando e gritando: Excelsior! (NT: palavra latina que significa mais alto, mais elevado, supremo) Subindo e desejando cada vez mais ser conformado à imagem de Cristo Jesus.

Assim sendo, em primeiro lugar, o cristão deve ser como Cristo em sua ousadia. Esta é uma virtude que hoje chamamos de atrevimento, mas a graça é igualmente valiosa seja qual for o nome dado a ela. Suponho que, se os escribas tivessem dado uma definição para Pedro e João, eles os chamariam de atrevidos.

Jesus Cristo e seus discípulos foram notáveis por sua coragem. “Então eles, vendo a ousadia de Pedro e João, reconheceram que eles haviam estado com Jesus”. Jesus Cristo nunca bajulou os ricos; Ele nunca se dobrou diante dos nobres e poderosos; Ele sempre ficou de cabeça erguida, um homem diante dos homens — o profeta do povo; falando ousada e livremente o que pensava. Você não se admira daquele feito poderoso de Jesus, quando Ele foi à cidade onde tinha vivido e sido criado? Sabendo que um profeta não tinha honra na sua própria terra, ao receber o volume sagrado (Seu ministério mal tinha começado), sem tremor Ele o desenrolou, e qual texto escolheu para ler? A maioria das pessoas, indo à sua própria terra, teria escolhido um assunto mais palatável, a fim de ganhar fama. No entanto, qual foi a doutrina pregada por Jesus naquela manhã? A mesma que em nossa época é desprezada e odiada — a doutrina da eleição. Ele abriu as Escrituras e começou a ler: “Na verdade vos digo que muitas viúvas havia em Israel no tempo de Elias, quando o céu se fechou por três anos e seis meses, reinando grande fome em toda a terra; e a nenhuma delas foi Elias enviado, senão a uma viúva de Sarepta de Sidom. Havia também muitos leprosos em Israel nos dias do profeta Eliseu, e nenhum deles foi purificado, senão Naamã, o siro” (Lucas 4:25-27). E, então, Ele começou a lhes dizer como Deus salva a quem Lhe agrada e redime a quem quer. Ah! Eles rangeram os dentes, expulsaram-nO da cidade e O levaram ao cimo do monte para O lançarem de lá (Lucas 8.28-29). Você não fica maravilhado com a Sua intrepidez? Ele viu os dentes deles rangendo; sabia que seus corações ardiam de hostilidade, enquanto suas bocas destilavam vingança e malícia; mas ainda assim ficou como o anjo que fecha a boca de leões; Ele não os temeu; fielmente proclamou o que sabia ser a verdade de Deus e continuou lendo, a despeito de todos eles. Seus discursos eram assim. Se visse um escriba ou fariseu na congregação, Ele não escondia o jogo, apontava o dedo e dizia: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas” (Mateus 23:29), e quando um doutor da lei Lhe disse: “Mestre, dizendo estas coisas, também nos ofendes a nós outros! (Lucas 11:45), Ele replicou: “Ai de vós também, intérpretes da Lei! Porque sobrecarregais os homens com fardos superiores às suas forças, mas vós mesmos nem com um dedo os tocais” (Lucas 11:46). O que Ele dizia era a mais pura verdade; Ele não conhecia o temor do homem; Ele não tremia diante de ninguém; Ele Se destacava como o escolhido de Deus, ungido acima de Seus pares, sem se importar com a opinião das pessoas. Meus amigos, sejam como Cristo. Não sigam essas religiões da moda, religiões exibidas apenas nas salas de visita dos crentes, que só florescem em ambiente de estufa, e só podem ser percebidas em boa companhia. Não, se vocês são servos de Deus, sejam como Jesus Cristo, ousados pelo seu Mestre; nunca se envergonhem da sua própria religião; sua profissão de fé nunca os envergonhará; cuidem também para nunca envergonhá-la. Seu amor por Cristo nunca será uma desonra para vocês; pode ser que traga algum menosprezo passageiro por parte de seus amigos, ou alguma difamação por parte dos inimigos; mas continuem firmes e logo se esquecerão das calúnias. Resistam e estarão entre os glorificados, honrados até mesmo por aqueles que os desprezaram, quando Jesus vier para ser glorificado pelos anjos e admirado por aqueles que O amam. Sejam como Jesus, valentes pelo seu Deus, a fim de que quando as outras pessoas virem sua ousadia, digam: “ele esteve com Jesus”.

No entanto, um único traço não nos dará o retrato de uma pessoa; da mesma forma, somente a ousadia nunca o fará semelhante a Cristo. Algumas pessoas são muito nobres, mas levam sua coragem ao extremo, por isso, são caricaturas de Cristo, não retratos dEle. Precisamos unir nossa ousadia com a beleza do espírito de Jesus. Que a coragem seja o bronze e o amor, o ouro. Que os dois sejam misturados a fim de produzir o rico metal coríntio, próprio para a fabricação do belo portão do templo. Que o seu amor e a sua coragem andem de mãos dadas. Quem é ousado pode, de fato, realizar maravilhas. John Knox fez muita coisa, mas se tivesse tido um pouquinho de amor, talvez tivesse feito muito mais. Lutero foi um conquistador — paz às suas cinzas e honra ao seu nome! Apesar de o vermos de longe, pense que, se às vezes ele tivesse usado um pouco de brandura — se, embora fosse fortiter in re, também tivesse sido suaviter in modo (NT: firme na ação, mas suave na maneira), e falado com um pouco mais de gentileza, poderia ter feito um bem ainda maior. Portanto, irmãos, mesmo sendo ousados, também devemos imitar o amor de Jesus. Uma criança se achega a Ele e Ele a toma nos braços: “Deixai os pequeninos, não os embaraceis de vir a mim” (Mateus 19:14). Uma viúva acaba de perder o único filho, Ele se compadece diante do esquife e, com uma palavra, restaura a vida ao morto (Lc 7.12-15). Ele vê um paralítico, um leproso ou um homem confinado à sua cama; Ele fala, eles se levantam e são curados. Ele viveu para os outros, não para Si mesmo. Seus constantes labores foram sem qualquer motivação, exceto o bem daqueles que viviam no mundo. E, acima de tudo, vocês conhecem o grande sacrifício que Ele fez, quando consentiu em dar a própria vida pelo homem — quando no madeiro, tremendo em agonia, lutando com um sofrimento extremo, Ele Se submeteu à morte pelo nosso bem, para que pudéssemos ser salvos. Eis em Cristo o amor consolidado! Ele foi um poderoso pilar de benevolência. Assim como Deus é amor, Cristo também é amor. Ó cristãos, sejam também cheios de amor. Que seu amor e sua caridade sejam dispensados a todas as pessoas. Não digam: “aquecei-vos e fartai-vos” (Tg 2.16), mas “repartam com sete e ainda com oito” (Eclesiastes 11:2). Se não é possível imitá-lO e destrancar as portas da prisão — se não é possível suportar a dor e o sofrimento, cada um, dentro da sua esfera de atuação, fale palavras bondosas e aja com gentileza; faça Cristo reviver na bondade da sua vida. Se há uma coisa elogiável no cristão é a virtude da amabilidade; é amar o povo de Deus, a igreja, as pessoas do mundo, a todos. No entanto, há muitos cristãos amargos em nossas igrejas, os quais têm dentro de si tanto vinagre e fel misturados que mal conseguem falar uma palavra amável: eles acham que é impossível defender sua religião sem altercações apaixonadas; não conseguem falar em nome de seu desonrado Mestre sem ficar com raiva de seus oponentes; e, se alguma coisa está errada, seja em casa, na igreja ou em qualquer outro lugar, eles acham que é seu dever fechar a cara e desafiar quem quer que seja. Eles são como icebergs isolados, ninguém quer chegar perto deles. Eles flutuam no mar do esquecimento até que, finalmente, derretem e somem. Embora sejam boas almas, ficaremos satisfeitos se só as encontrarmos no céu; ficamos bem felizes em nos livrar delas aqui na terra. Elas são tão indigestas que, para nós, seria melhor passar a eternidade com elas no céu a ficar cinco minutos em sua companhia na terra. Portanto, não sejam assim meus irmãos. Imitem a Cristo na força do seu amor; falem com gentileza, ajam com gentileza e façam tudo com gentileza, para que todos possam dizer de vocês: “Eles estiveram com Jesus”.

Outra característica excelente na vida de Cristo foi sua profunda e sincera humildade; nisto também devemos imitá-lO. Embora não devamos nos retrair ou nos curvar (longe disso, pois somos pessoas livres, libertos pela verdade, e andamos neste mundo iguais a todos, sem sermos inferiores a ninguém), ainda assim devemos nos esforçar para sermos como Cristo, sempre humildes. Ó cristão orgulhoso (pois mesmo sendo um paradoxo, creio que deva haver alguns, pois eu não seria tão intransigente a ponto de dizer que não há), se és realmente cristão, digo-te para levares em consideração as atitudes do Teu Mestre, conversando com as crianças, sujeitando a majestade da Sua divindade para falar à humanidade, tabernaculando com os camponeses da Galileia, e então — ó profundidade da condescendência incomparável — lavando os pés dos discípulos e secando-os com a toalha após a ceia. Este é o teu Mestre, a quem professas adorar; este é o teu Senhor, a quem adoras. Mas alguns de vós, que vos considerais cristãos, sequer falais com quem não se veste da mesma forma, ou que não ganha a mesma quantia anual. É bem verdade que na Inglaterra um soberano (NT: moeda equivalente a 20 xelins) nunca falará com um xelim, e um xelim nunca notará um seis pence, e um seis pence zombará de uma moedinha de um pêni. No entanto, não deve ser assim com os cristãos. Devemos esquecer a classe social, a condição e a posição quando estamos na igreja de Cristo. Lembra-te, cristão, de como foi o teu Mestre — um homem dos pobres. Ele viveu com eles, e comeu com eles. E vós andareis de nariz empinado, empertigados, olhando com insuportável desprezo para os miseráveis vermezinhos? Quem sois vós? Os mais desprezíveis de todos, pois vossos adornos e artifícios vos deixam orgulhosos. Almas lamentáveis e desprezíveis que sois! Como pareceis pequenos aos olhos de Deus! Cristo foi humilde, Ele Se humilhou para poder servir aos outros. Ele não teve orgulho; Ele foi um homem humilde, um amigo de publicanos e pecadores, que viveu e andou com eles. Portanto, cristão, sê como teu Mestre — alguém que pode se humilhar; sim, sê tu aquele que não pensa em se humilhar, mas considera os outros superiores a si mesmo (Fp 2.3), que considera uma honra sentar-se ao lado dos pobres do povo de Cristo, e diz: “Se meu nome for escrito na parte mais obscura do livro da vida, isso é suficiente para mim, tão indigno sou de ser por Ele notado”! Seja como Cristo em Sua humildade.

E assim, eu poderia continuar, queridos irmãos, falando de várias outras características de Cristo Jesus; mas como vocês podem se lembrar delas tão bem quanto eu, não vou falar mais. É muito fácil se sentar e descrever Jesus Cristo, pois Ele está delineado em Sua Palavra. Creio que me faltaria tempo para lhes dar uma imagem completa dEle; mas, deixem-me dizer o seguinte: imitem-nO em Sua santidade. Ele era zeloso pelo Seu Senhor? Sejam vocês também. Andem por aí fazendo o bem. Não percam tempo. Ele é precioso demais. Jesus negava a Si mesmo, jamais buscando Seu próprio interesse? Façam o mesmo. Ele era piedoso? Sejam fervorosos em suas orações. Ele Se submetia à vontade do Pai? Da mesma forma, submetam-se a Ele. Ele era paciente? Aprendam a ser tolerantes. E acima de tudo, como a característica mais sublime de Jesus, tentem perdoar seus inimigos como Ele perdoou; e que as magníficas palavras do Mestre: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lucas 23:34), ressoem sempre em seus ouvidos. Quando estiverem prestes a se vingar, quando a raiva aflorar, puxem as rédeas imediatamente e cuidem para não perder o controle. Lembrem-se, raiva é insanidade temporária. Perdoem como esperam ser perdoados. Amontoem brasas vivas sobre a cabeça de seu inimigo sendo bondosos para com ele (Rm 12.20). Pagar o mal com o bem, lembrem-se, é ser semelhante a Cristo. Sejam semelhantes, então. Portanto, de todas as formas, e por todos os meios, vivam de tal maneira que seus inimigos possam dizer: “Ele esteve com Jesus”.

2. Agora, QUANDO É QUE OS CRISTÃOS DEVEM SER ASSIM? Digo isso porque existe uma ideia no mundo de que as pessoas devem ser muito religiosas no domingo, mas não importa o que serão na segunda-feira. Quantos pregadores são religiosos no domingo, mas totalmente ímpios durante o resto da semana! Quantos há que vão à casa de Deus com semblante solene, cantam junto com os outros e fingem orar, mesmo sem sentir nada, mas que estão “em fel de amargura e laço de iniquidade”! (Atos 8:23). Isso se aplica a algumas pessoas aqui presentes. Quando, então, um cristão deve ser como Jesus Cristo? Será que há um momento em que ele pode tirar seu uniforme — quando o guerreiro pode tirar sua armadura — e ser como as outras pessoas? Não mesmo! Que em todo o tempo e em todos os lugares, o cristão seja aquilo que professa ser! Lembro-me de ter conversado há algum tempo com uma pessoa que disse: “Não gosto das visitas que vêm à minha casa e começam a falar sobre religião; acho que devemos ser religiosos somente nos domingos, quando vamos à casa de Deus, mas não na sala de estar de casa”. Eu lhe disse que haveria muito trabalho para os estofadores se só houvesse religião na casa de Deus. “Como assim?”, ele perguntou. “Ora”, respondi, “deveríamos ter camas adequadas em todos os locais de culto, pois certamente precisamos da religião para morrer e, consequentemente, todos gostariam de morrer lá”. Sim, no final todos nós precisamos das consolações de Deus, mas, como podemos esperar gozá-las se não obedecermos os preceitos da religião durante a vida? Irmãos, deixem-me dizer: sejam como Cristo em todos os momentos. Imitem-nO em público. A maioria de nós vive em algum tipo de comunidade; muito são chamados a trabalhar diante de seus semelhantes todos os dias. Somos observados; nossas palavras são ouvidas, nossa vida é examinada — esmiuçada. O mundo, com seus olhos de águia, não deixa passar nada, observa tudo o que fazemos, e somos alvo de críticas acirradas. Vivamos a vida de Cristo em público. Cuidemos para que nosso Mestre seja visto, não nós mesmos — a fim de podermos dizer: “já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim” (Gálatas 2:20). Cuidem para levar isso para a igreja também, vocês que já são membros. Sejam como Cristo na igreja. Quantos aqui não são como Diótrefes, buscando preeminência? (3Jo 1.9). Quantos não estão tentando ter notoriedade e poder sobre seus irmãos ao invés de se lembrar que a regra fundamental em nossas igrejas é que todos são iguais — iguais como irmãos, iguais para serem recebidos como tais. Portanto, tenham também o espírito de Cristo em suas igrejas, onde quer que estejam. Que seus irmãos digam de vocês: “Ele esteve com Jesus”.

E, o mais importante, cuidem para que haja cristianismo em suas casas. Uma casa religiosa é a melhor prova da verdadeira piedade. Não é a igreja, é a minha casa — não é o meu ministro, é o meu companheiro no lar — que podem melhor avaliar quem sou — é o empregado, o filho, a esposa, o amigo, que podem falar sobre o meu verdadeiro caráter. Uma boa pessoa tornará sua casa melhor. Certa vez Rowland Hill (NT: 1744-1833, popular pregador britânico) disse que ele não acreditava que uma pessoa pudesse ser um verdadeiro cristão se seu cônjuge, seus filhos, seus empregados, e até mesmo seu gato e seu cachorro, não fossem exemplares. Isso é ser crente. Se a sua casa não é a melhor por causa do seu cristianismo — se as outras pessoas não puderem dizer: “Esta é uma casa melhor que as outras”, não se engane — você não tem nada da graça de Deus. Que o seu empregado, ao deixar o emprego, não diga: “Bem, a religiosidade dessa família é meio esquisita; ninguém orava pela manhã, eu começava o dia com meu trabalho enfadonho, ninguém orava à noite e, aos domingos, eu tinha que ficar em casa. Uma vez a cada quinze dias, às vezes eu podia sair à tarde, quando não havia para onde ir e ouvir um sermão sobre o evangelho. Meu senhor e minha senhora iam, é claro, a um lugar onde ouviam o bendito evangelho de Deus — isso era muito importante para eles; quanto a mim, porém, tinha de ficar com as sobras de algum pároco sobrecarregado depois do almoço”. Com certeza, quem é cristão não age assim. Não! Pratique sua piedade em sua família. Que todos digam que você vive sua religião na prática. Que isso fique claro na sua casa e no mundo inteiro. Cuide de seu caráter lá, pois quem somos em casa é quem realmente somos. Nossa vida longe de casa, com frequência, é uma parte emprestada, a parte de um ator em uma grande cena; em casa, no entanto, o encanto é removido e as pessoas são o que são. Cuide de seus deveres domésticos.

Outra vez, irmãos, antes que eu deixe este ponto, imitem Jesus em secreto. Quando ninguém mais estiver vendo, somente Deus, quando as trevas o encobrirem, quando estiverem longe da observação dos mortais, sejam como Jesus Cristo. Lembre-se do fervor de Jesus, da Sua devoção secreta, quando, depois de pregar o dia inteiro, Ele Se esgueirou nas sombras da noite para suplicar a ajuda de Deus. Lembre-se de como Sua vida toda foi constantemente sustentada pela doce influência do Espírito Santo, derivada da oração. Cuidem da sua vida secreta, a fim de que, quando ela for lida naquele último grande dia, vocês não fiquem envergonhados. Sua vida íntima está escrita no livro de Deus, o qual um dia será aberto diante de vocês. Se a vida inteira de algumas pessoas fosse conhecida, de forma alguma seria vida; seria morte. Sim, mesmo de alguns cristãos verdadeiros é possível dizer que quase não há vida. Uma existência empurrada com a barriga — uma rápida oração diária — um suspiro, o suficiente para manter sua alma viva, nada mais. Ó, irmãos, lutem para ser como Jesus Cristo. Queremos mais orações secretas neste momento. Tive muito medo durante toda esta semana. Não sei se é verdade ou não, mas quando sinto algo assim gosto de compartilhar com os irmãos da minha própria congregação. Estremeço só de pensar que, estando longe do nosso próprio lugar (NT: a capela da New Park Street estava passando por reformas e a congregação estava temporariamente se reunindo no Exeter Hall, um salão de festas alugado), vocês deixem de orar com tanto fervor quanto antes. Lembro-me de seus gemidos e de suas súplicas fervorosas — de como lotavam a casa de oração e suplicavam a ajuda de Deus para o Seu servo. Neste momento não podemos nos reunir daquela forma, mas vocês ainda oram em particular? Será que me esqueceram? Deixaram de clamar a Deus? Oh! Meus amigos, eu lhes suplico com todas as minhas forças. Lembrem-se de quem eu sou, e o que eu sou — apenas uma criança, com pouca educação, pouco conhecimento, habilidade ou talento, e aqui sou chamado, semana após semana, para pregar a tanta gente. Amados, ainda orais por mim? Será que Deus não Se agrada de ouvir as vossas orações um milhão de vezes? Cessareis agora, quando um poderoso avivamento está ocorrendo em tantas igrejas? Parareis justamente agora com vossas petições? Não! Não! Ide para vossas casas e dobrai os joelhos, suplicai a Deus para que ainda possais levantar as mãos como Moisés no cimo do outeiro, a fim de que Josué, lá embaixo, pudesse lutar contra os amalequitas e vencer (Ex 17.10-13). Esta é a hora da vitória, vamos perdê-la? Esta é a maré alta que nos fará flutuar sobre os recifes; agora, vamos remar, vamos orar com fervor, clamando ao Espírito de Deus que encha as velas da nossa embarcação! Vós que amais a Deus, de todos os lugares e de todas as denominações, lutai por vossos ministros; orai por eles; por que Deus não derramaria o Seu Espírito mesmo agora? Qual a razão pela qual nos seriam negadas épocas iguais à do Pentecoste? Por que não nos prostramos como uma poderosa multidão diante dEle, neste mesmo instante, e rogamos, por amor do Seu Filho, que Ele reavive Sua igreja decadente? E, então, todos veriam que somos verdadeiramente discípulos de Jesus Cristo.

3. E, agora, em terceiro lugar, POR QUE OS CRISTÃOS DEVEM IMITAR A CRISTO? A resposta é fácil e natural: em primeiro lugar, os cristãos devem ser como Cristo pelo seu próprio bem. Pelo bem da sua honestidade e da sua reputação, que não sejam considerados mentirosos diante de Deus e dos homens. Pela sua própria saúde, se quiserem ser protegidos do pecado e impedidos de se desviar, que imitem o Senhor Jesus. Pela sua própria felicidade, se quiserem beber vinho bem clarificado (Isaías 25.6); se quiserem gozar da santa e doce comunhão com Jesus; se quiserem ficar acima dos cuidados e tribulações deste mundo, que imitem Jesus Cristo. Ó, caros irmãos, não existe nada tão proveitoso, que lhes dê tanta prosperidade, tanta ajuda, que os faça caminhar tão depressa para o céu, mantenha suas cabeças erguidas e seus olhos radiantes de glória, como a semelhança com Jesus Cristo. É quando, pelo poder do Espírito Santo, vocês são capazes de andar com Jesus nas Suas próprias pegadas, trilhando nos Seus caminhos, são mais felizes e mais reconhecidos como filhos de Deus. Pelo seu próprio bem, irmãos, eu lhes digo: sejam como Cristo.

A seguir, por amor à sua religião, empenhem-se em imitar Jesus. Ah! Pobre religião, tens sido fortemente atacada por cruéis inimigos, mas nem a metade do que tens sido ferida por próprios teus amigos. Ninguém te fere tanto, ó cristianismo, quanto aqueles que professam ser teus seguidores. Quem é que fere a bela mão da piedade? É o professo que não vive à altura da sua profissão de fé; aquele que sob pretexto entra no aprisco, nada mais sendo do que lobo em pele de cordeiro. Tais pessoas, senhores, prejudicam o evangelho mais que quaisquer outras. Mais que o infiel escarnecedor, mais que o crítico mordaz, elas prejudicam a nossa causa, a qual professam amar, mas suas ações desmentem o seu amor. Cristão, amas esta causa? O nome do amado Redentor é precioso para ti? Queres ver os reinos do mundo se tornarem os reinos de nosso Senhor e Seu Cristo? Desejas ver o soberbo humilhado e o poderoso abatido? Anseias pela alma do pecador perdido e queres ganhá-la e salvá-la do fogo eterno? Desejas impedir que ela caia nas regiões dos condenados ao inferno? É teu desejo que Cristo veja a luta da sua alma e fique muito satisfeito? Será que teu coração anseia pela alma imortal de teus companheiros? Desejas vê-los perdoados? Sê, então, coerente com a tua religião. Anda na presença do Senhor, na terra dos viventes (Salmos 116:9). Comporta-te como um eleito de Deus. Lembra-te de como as pessoas devem ser em santo procedimento e piedade (2 Pedro 3:11). Esta é a melhor forma de converter o mundo; sim, tal conduta faria mais até mesmo que os trabalhos missionários, por mais excelentes que sejam. Que todos vejam que a nossa conduta é superior à dos demais; só então poderão acreditar que há alguma coisa em nossa religião. Contudo, se nos veem de modo totalmente contrário àquilo que declaramos, o que irão dizer? “Esses crentes não são melhores que os outros! Por que deveríamos andar no meio deles”? E eles estarão totalmente certos. Isso é apenas bom senso. Ah! Meus amigos, se amais a religião, por amor a ela, sede coerentes e andai no amor de Deus. Segui a Cristo Jesus.

E então, colocando da forma mais enfática possível, deixem-me dizer: por amor a Cristo, esforcem-se para ser como Ele. Ah! Se eu pudesse trazer o agonizante Senhor Jesus aqui e deixá-lO falar com vocês! Minha própria língua está presa nesta manhã, mas eu faria Seu sangue, Suas cicatrizes e Suas feridas falarem. Pobres bocas emudecidas, peço a cada uma delas que fale em Seu nome. Jesus estaria aqui nesta manhã e lhes mostraria Suas mãos! “Meus amigos”, Ele diria, “olhai para mim! Estas mãos foram cravadas por vós. E vede o meu lado, ele foi aberto como fonte da vossa salvação. Vede meus pés; ali entraram os cravos cruéis. Cada um destes ossos foi deslocado por amor de vós. Estes olhos jorraram torrentes de lágrimas. Esta cabeça foi coroada de espinhos. Este rosto foi esbofeteado; este cabelo, puxado; meu corpo se tornou fonte de dor e agonia. Estremeço pendurado no sol ardente, e tudo isso por vós, meu povo. Não Me amareis agora? Rogo que sejais como eu. Porventura existe pecado em mim? Não. Credes que sou mais justo que milhares de justos e tenho mais amor que milhares de amores? Acaso vos tenho prejudicado? Pelo contrário, não fiz tudo pela vossa salvação? Não estou agora mesmo assentado ao lado do trono de Meu Pai intercedendo por vós? Se me amas, cristão, ouve esta palavra; que as doces sílabas ecoem para sempre em teus ouvidos, como o som ressonante de sinos prateados — “se Me amas, se Me amas, guarda os Meus mandamentos”. Ó, cristão, que esse “se” fique contigo nesta manhã. “Se me amas”. Glorioso Redentor! É mesmo um “se”? Precioso Cordeiro crucificado, pode haver um “se”? O quê? Quando vejo Teu sangue derramado, é um “se”? Sim, choro ao dizer que é um “se”. Muitas vezes, meus pensamentos o tornam um “se”, e minhas palavras, com frequência, querem dizer “se”. Mas, ainda assim, creio que minha alma sente que não é um “se”

Nem aos meus olhos a luz é tão querida

Nem a amizade tão doce.

“Sim, eu Te amo, sei que Te amo. Senhor, Tu sabes todas as coisas, Tu sabes que eu Te amo”, pode dizer o cristão. “Bem, então”, diz Jesus, olhando para baixo com afetuosa aprovação, “já que tu me amas, guarda os meus mandamentos”. Ó amado, existe razão mais forte que esta? É o argumento do amor e da afeição. Sê como Cristo, uma vez que a gratidão requer obediência; assim o mundo saberá que estiveste com Jesus.

4.  Ah! Então choras, e percebo que sentes a força da piedade, e alguns estão se perguntando: “COMO POSSO IMITÁ-LO?” Assim, é minha tarefa, antes que saiam daqui, dizer-lhes como podem ser transformados à imagem de Cristo. 

Por isso, em primeiro lugar, queridos amigos, em resposta à sua pergunta, deixem-me lhes dizer que vocês devem conhecer Cristo como seu Redentor antes de segui-lO como seu Exemplo. Muito se fala sobre o exemplo de Jesus, e é difícil encontrar alguém que não acredite que nosso Senhor tenha sido um homem santo e extraordinário, que deve ser admirado. No entanto, por melhor que tenha sido Seu exemplo, seria impossível imitá-lo se Ele também não tivesse sido nosso sacrifício. Sabeis que Seu sangue foi derramado por vós? Podeis juntar-vos comigo nestes versos?

Ó, doces maravilhas daquela cruz,

Onde Deus, o Salvador, amou e morreu

Sua nobreza meu espírito seduz

Pelo precioso sangue que Ele verteu. 

Nesse caso, vocês estão no caminho certo para imitar a Cristo. Mas não procurem imitá-lo enquanto não forem banhados na fonte do sangue vertido de Suas veias. E isso não pode ser feito por vocês mesmos; suas paixões são fortes e corrompidas demais, e vocês estarão construindo sem alicerce, sem estrutura, o que fará a construção ser tão instável quanto um sonho. Vocês não podem modelar sua vida de acordo com o molde de Cristo enquanto não possuírem o Seu espírito, enquanto não forem revestidos da Sua justiça. “Bem”, dizem alguns, “já chegamos até aí, o que fazemos agora? Conhecemos nosso interesse por Ele, mas temos consciência das nossas múltiplas deficiências”. Por isso, agora quero lhes pedir que estudem o caráter de Cristo. A Bíblia tem se tornado quase obsoleta, mesmo entre os cristãos. Existem tantas revistas, periódicos e publicações efêmeras, que corremos o risco de deixar o exame das Escrituras. Cristão, queres conhecer teu Mestre? Olha para Ele. Há um poder tremendo no caráter de Cristo, pois quanto mais você o estuda, mais se conforma a Ele. Vejo meu reflexo no vidro, vou embora e me esqueço de como eu era. Olho para Cristo e me torno semelhante a Ele. Portanto, olhem para Ele, estudem-nO nos evangelhos, examinem cuidadosamente o Seu caráter. Mas aí vocês dizem, “já fizemos tudo isso, mas não progredimos muito”. Por isso, em seguida, corrijam sua pobre cópia todos os dias. À noite, tentem relembrar todas as suas ações durante as vinte e quatro horas do dia, examinando-as escrupulosamente. Quando recebo as provas de qualquer um dos meus textos, tenho de anotar as correções à margem. Eu poderia ler cada um deles mais de cinquenta vezes, mas, se não anotasse as correções, quando fossem impressos, eles sairiam com os mesmos erros. Vocês devem fazer a mesma coisa; se, à noite, encontrarem alguma falha, façam uma anotação à margem, para que saibam onde está o problema e, na manhã seguinte, possam corrigi-lo. Façam isso todos os dias, observando continuamente suas falhas, uma a uma, para que cada vez mais consigam evitá-las. Uma máxima dos antigos filósofos dizia que, três vezes ao dia, deveríamos repassar nossas ações. Portanto, vamos fazê-lo; não nos esqueçamos disso; examinemos a nós mesmos todas as noites e vejamos onde temos falhado, para que possamos reformar a nossa vida.

Por último, o melhor conselho que posso lhes dar é que busquem mais do Espírito de Deus, pois esta é a maneira de se tornarem parecidos com Cristo. São vãs todas as tentativas de sermos como Ele se não buscarmos o Seu Espírito. Peguem um pedaço de ferro frio e, se puderem, tentem entortá-lo. Que esforço inútil! Coloquem-no na bigorna, peguem um martelo de ferreiro e batam com toda a força, sem parar, e também não conseguirão nada. Agitem-no, virem-no, usem tudo o que estiver à mão, e ainda assim não conseguirão dar a ele a forma que desejam. No entanto, coloquem-no no fogo, deixem que amoleça e fique maleável, depois coloquem-no na bigorna, e cada martelada terá um efeito poderoso para fazerem a forma que quiserem. Do mesmo modo, peguem seu coração, frio e duro por natureza, e coloquem-no na fornalha; ali ele será amolecido, e depois poderá ser transformado como cera e moldado à imagem de Jesus Cristo.

Ah, irmãos, o que mais posso dizer para reforçar nosso texto senão que, se sois como Cristo na terra, sereis como Ele no céu? Se pelo poder do Espírito vos tornardes seguidores de Jesus, vós entrareis na glória. Pois, no portão do céu está assentado um anjo que não admite ninguém que não tenha as mesmas características de nosso adorável Senhor. Eis que chega um homem com uma coroa na cabeça. “Pois não?” — diz o anjo — “Você tem uma coroa, é verdade, mas aqui elas não são meios de acesso”. Outro se aproxima, de manto e trajes acadêmicos. “Pois não?” — diz o anjo — “Ser culto e educado é uma coisa boa, mas togas e erudição não são as marcas que o admitirão aqui”. Outro dá um passo à frente, bem vestido, belo e atraente. “Pois não?” — diz o anjo — “Beleza pode ser agradável na terra, mas aqui não tem importância”. E, então, surge mais um, prenunciado pela fama e aclamado pela humanidade, mas o anjo diz: “Você está muito bem, mas não tem o direito de entrar aqui”. Em seguida, aparece um outro — talvez tenha sido pobre, sem instrução — mas o anjo, ao olhar para ele, sorri e diz: — “É Cristo outra vez; eis uma segunda edição de Cristo. Entra, entra. Terás a glória eterna. Tu és como Cristo; no céu te assentarás, pois tu és como Ele”. Ser como Cristo é entrar no céu; mas ser diferente dEle é descer ao inferno. No final, os semelhantes serão reunidos, joio com joio, trigo com trigo. Se pecastes com Adão e morrestes, estareis com os espiritualmente mortos para sempre, a menos que ressusciteis em Cristo para uma nova vida; então, viveremos com Ele por toda a eternidade. Trigo com trigo, joio com joio. “Não vos enganeis: de Deus não se zomba; pois aquilo que o homem semear, isso também ceifará” (Gálatas 6.7). Vão para casa com este único pensamento, meus irmãos, para que possam provar a si mesmos por Cristo. Se vocês são como Cristo, são de Cristo e estarão com Cristo. Se forem diferentes dEle, não terão parte na grande herança. Que o meu pobre discurso os ajude a limpar o chão e exibir a palha; sim, que ele possa levar muitos de vocês a buscarem ser participantes da herança dos santos na luz (Cl 1.12), para o louvor da Sua graça. A Ele seja toda a honra! Amém.

Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza