sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Um Coração Dividido


Sermão nº 276

Ministrado na manhã de domingo, 25 de setembro de 1859, pelo

Rev. Charles H. Spurgeon

No Music Hall, Royal Surrey Gardens, Londres, Inglaterra


“O seu coração está dividido; por isso, serão culpados”. ━ Oseias 10:2 (ARC)

Esta passagem pode ser interpretada como se referindo ao povo de Israel enquanto nação, mas não é menos aplicável à igreja de Deus. Este é um dos maiores e mais graves erros da igreja de Cristo na atualidade, a qual não só está dividida em suas crenças, e na prática dos mandamentos, mas também, ai de nós, no seu coração. Quando as diferenças são de natureza tal que, como povo de Deus, ainda nos amamos e ainda somos unidos na luta comum contra o mal e no objetivo comum de edificar a igreja, há pouca coisa errada. No entanto, quando nossas divisões doutrinárias crescem a ponto de deixarmos de cooperar uns com os outros; quando nossas opiniões sobre meros costumes se tornam tão ácidas a ponto de não podermos mais estender a destra de comunhão a quem diverge de nós, então, realmente, a igreja de Deus é culpada. “Se uma casa estiver dividida contra si mesma, tal casa não poderá subsistir” (Marcos 3:25). Até mesmo Belzebu, com toda a sua astúcia, não pode subsistir quando seus demônios estão divididos. Se Belzebu estiver dividido contra si mesmo, ele vai cair e, com certeza, o mesmo ocorrerá com quem não tem a habilidade para superar a desunião. Ah, meus irmãos, nada pode tirar tão depressa o poder e a influência da igreja, minar suas glórias e diminuir suas chances de sucesso quanto às divisões no coração do povo de Deus. Se quisermos entristecer o Espírito Santo e fazer com que Ele Se vá, se quisermos provocar a ira do Altíssimo e trazer juízo sobre a igreja, só precisamos ter um coração dividido, e tudo isso ocorrerá. Se quisermos que cada frasco despeje o seu mal e cada vaso deixe de derramar o seu azeite, só precisamos acalentar nossas discussões até virarem hostilidade; e acariciar nossos ressentimentos até virarem ódio; e então o serviço estará completo. E se isso é verdade em relação à igreja em geral, quanto mais em relação aos diversos segmentos daquelas assim chamadas igrejas apostólicas. Ah, irmãos, a menor igreja do mundo sempre será poderosa se tiver um só coração e uma só alma; se pastor, presbíteros, diáconos e membros forem unidos pelo cordão de três dobras que não se arrebenta. Só assim eles poderão se defender de qualquer ataque. No entanto, por maior que sejam em número, por maior que seja sua riqueza, por mais esplêndidos que sejam seus dons, eles serão sempre impotentes quando estiverem divididos entre si. União é força. Bendito seja o exército do Deus vivo quando sai para a batalha com uma só mente, quando o tropel dos soldados é como o de um só homem, em marcha unida, indo direto para o ataque. Entretanto, uma maldição aguarda a igreja que, correndo de lá para cá dividida em si mesma, perde o sustentáculo da força com a qual deveria destruir o inimigo. A divisão corta a corda do nosso arco, quebra nossa lança, faz nosso cavalo escoicear e queima nossas carruagens no fogo. No momento em que o vínculo de amor é quebrado, estamos perdidos. Quando o vínculo perfeito é dividido em dois e nós caímos, a nossa força se vai. Pela união nós vivemos; pela desunião, expiramos.

Nesta manhã, no entanto, pretendo abordar este texto especialmente com relação à nossa condição individual. Vamos considerar o coração distinto, individual, de cada pessoa. Se as divisões no grande corpo maior — se a separação entre as diferentes partes desse corpo pode provocar desastres, muito mais desastrosa será a divisão naquele reino especial — o coração do homem. Se houver um tumulto civil na cidade de Alma-humana[1], mesmo sem um ataque do inimigo aos seus muros, sua posição se torna bastante vulnerável. Se a ilha de Man[2] for governada por dois reis, ficará desorganizada e logo será destruída. Portanto, hoje eu me dirijo àqueles de quem se pode dizer: “O seu coração está dividido; por isso, serão culpados”. E assim, vou lhes pedir, em primeiro lugar, para observar a terrível doença; em segundo, seus principais sintomas; em terceiro, seus tristes efeitos; e, em quarto, suas futuras consequências.

            1. Observe, então, que o nosso texto descreve uma DOENÇA ASSUSTADORA. O coração deles está dividido. Digo que é assustadora, e isso logo se tornará evidente, porque a primeira coisa a ser observada é a sua sede, onde ela está alojada. Ela afeta uma região vital. Não é apenas um ferimento na mão, que pode ser tratado com um curativo; não é uma dor no pé, que pode ser amenizada com uma imobilização; não é um simples problema no olho, que só precisa de um tapa-olho para protegê-lo da luz. É uma doença numa região vital — o coração; uma região tão importante que afeta a pessoa toda. Até as extremidades sofrem quando o coração está infectado, principalmente quando está infectado a ponto de ficar dividido. Não há força, nem paixão, nem motivação, nem princípios que não sejam afetados quando o coração está doente. É por isso que Satanás, cuja astúcia é incessante, se esforça para atacá-lo. Ele lhe dará uma mão, se você deixar; e você poderá ser uma pessoa honesta. Ele lhe dará um olho, se deixar; e, exteriormente, você será cheio de virtudes. Ele lhe dará um pé, se deixar; e você parecerá percorrer o caminho da retidão[3]. Mas, se deixá-lo se apossar do seu coração, se deixá-lo governar na cidadela, ele ficará bem contente em abrir mão de todas as outras coisas. John Bunyan descreve isso como uma das cláusulas manifestas pelo velho Diabolus ao Rei Shaddai: “Oh!”, disse ele, “abrirei mão de tudo na cidade de Alma-humana, se me deixares viver na cidadela do teu coração”. Certamente havia bem pouco em seus termos e condições. Ah, mas mesmo abrindo mão de todas as outras coisas, se retiveres o coração, reterás tudo, ó demônio! Porque do coração procedem as fontes da vida (Provérbios 4:23).

            Portanto, a doença do nosso texto é uma coisa que atinge uma região vital, um órgão que, uma vez afetado, tende a infectar o corpo todo. No entanto, você verá que ela não só atinge essa região vital, mas a atinge da pior forma possível. O texto não diz simplesmente que o coração está palpitando; nem fala que o fluxo de vida que brota dele se tornou mais fraco e mais lento; o texto declara uma coisa muito pior, ou seja, que o coração foi cortado em dois e está totalmente dividido. Um coração de pedra pode ser mudado em carne, mas mudar um coração dividido seja no que for, se está dividido, não tem mais jeito. Nada pode dar certo quando o que deveria ser um único órgão se transforma em dois; quando uma única fonte de energia começa a mandar seu fluxo por dois canais diferentes, gerando, assim, conflito interno e guerra. Um coração íntegro é a vida de uma pessoa, mas se for cortado em dois, no sentido mais extremo, profundo e espiritual, ele morre. Essa doença não só afeta uma região vital, ela a afeta de forma letal.

No entanto, é preciso observar mais uma coisa sobre este coração dividido: a sua própria divisão é repugnante. Pessoas com um coração assim não se sentem impuras; na verdade, elas convivem com todos na sociedade, se arriscam a ir à igreja, se submetem a receber sua comunhão e a fazer parte do seu rol de membros; depois vão e se misturam com o mundo; e não sentem que se tornaram infiéis. Elas acham que se adaptam tanto aos cidadãos decentes do mundo quanto aos verdadeiros cristãos. Se alguém tivesse uma mancha no rosto ou alguma doença que todo mundo ficasse encarando, com certeza, iria se afastar do convívio das pessoas e tentar se manter recluso. Mas não é assim com quem tem o coração dividido. A pessoa anda por toda parte, totalmente insensível à natureza repulsiva da sua doença. Posso mostrar como é? Pegue uma lente, dê uma olhada no coração dessa pessoa e verá como ele é nojento, pois Satanás e o pecado estão reinando ali. Embora a pessoa ande por aí e saiba o suficiente sobre o certo e o errado para ficar incomodada com seu pecado, ainda tem um amor tão grande por toda sorte de iniquidade que permite aos horríveis demônios entrar e habitar no seu coração. Contudo, sua condição abjeta é ainda pior, pois durante todo o tempo em que vive em pecado, ela é terrivelmente hipócrita, fingindo também ser uma filha de Deus. De todas as coisas fedorentas que incomodam uma pessoa sincera, a hipocrisia é a pior de todas. Se tu és mundano, sejas mundano. Se és servo de Satanás, serve-o. Se Baal for deus, serve-o, mas não mascara o servir a ti mesmo e ao pecado com um pretenso servir a Deus. Mostra-te como és, arranca tua máscara. A igreja não foi concebida para ser um baile de máscaras. Aparece em tuas verdadeiras cores. Se preferes servir no santuário de Satanás, que todos saibam disso, mas se desejas servir a Deus, serve-O, e faze-o de coração, sabendo que Ele é Deus zeloso e prova o mais íntimo do coração dos filhos dos homens (Jr. 11:20). Um coração dividido é uma doença terrivelmente repugnante. Se alguém fosse reconhecido só por causa dela, até o pior dos perversos não iria querer ter nada com ele. Às vezes, conheço gente assim. Certo homem fingia ser religioso e frequentava regularmente o lugar de culto, mas um dia foi visto entrando em um salão de má reputação. Assim que caiu na farra, com as piores intenções, imediatamente começou a ser observado. Até o senso de certo e errado dos ímpios é despertado. “Sumam com esse cara daqui!” é o veredito unânime, e ele recebe o que merece. Quando alguém tem o coração dividido — tenta fazer o certo e o errado — servir a Deus e ao diabo — ao mesmo tempo; por isso, digo que sua doença é tão sórdida e degradante que até as pessoas do mundo, cuja lepra está na testa, o desprezam e odeiam, e se afastam dele.

            Além disso, precisamos observar que essa doença não é apenas repulsiva, ela é também muito difícil de ser curada, porque é crônica. Não é uma doença aguda, que causa dor, sofrimento e tristeza, mas é crônica, pois está arraigada na própria natureza humana. Um coração dividido, como lidar com ele? Se fosse uma doença em qualquer outra parte do corpo, um bisturi poderia removê-la, ou um remédio poderia curá-la. Mas, que médico pode juntar um coração dividido? Qual cirurgião, por mais hábil que seja, pode juntar os membros destroçados de uma alma dividida entre Deus e Mamom (Mt. 6:24)? Esta é uma doença que penetra a própria natureza e continuará no sangue mesmo com a administração dos melhores remédios. Na verdade, é uma doença que nada, exceto a graça Onipotente, pode resolver. No entanto, aquele cujo coração está dividido entre Deus e Mamom não possui graça. Ele é inimigo de Deus, prejudicial à igreja, avesso à Palavra, um feixe pronto para a colheita do fogo eterno. Sua doença está profundamente enraizada dentro dele e, sem interferência, chegará a um fim terrível — sua destruição é certa.

            Preciso fazer mais uma observação, depois deixarei este ponto. Essa doença, de acordo com o texto hebraico, é muito difícil de ser tratada, pois é uma doença aduladora. O texto pode ser interpretado desta forma: “O seu coração os adula; por isso, serão culpados”. Existem muitos aduladores astutos neste mundo, mas o mais perspicaz é o próprio coração do homem. O coração humano adorna até mesmo os seus pecados. Se a pessoa é um sovina miserável — seu coração lhe dirá que esse é o seu jeito de fazer negócios. Se, por outro lado, ela for extravagante e esbanjar os dons de Deus com suas vis paixões; seu coração, então, lhe dirá que ela é uma alma liberal. O coração “põe o amargo por doce e o doce, por amargo” (Is. 5:20). É mais “enganoso que todas as coisas”, e tão “desesperadamente corrupto” (Jr. 17:9), que tem o descaramento de “fazer da escuridade luz e da luz, escuridade” (Is. 5:20). Ora, quando alguém tem o coração dividido, normalmente louva a si mesmo. “Bem”, ele diz, “é verdade que bebo um pouco demais, mas nunca deixo de fazer doações para caridade”. “É verdade”, reconhece, “com certeza não sou a pessoa mais decente do mundo, mas veja como frequento regulamente minha igreja”. “É verdade”, admite, “às vezes, faço uma tramoia ou outra nos negócios, mas estou sempre pronto a ajudar os pobres”. E, assim, ele imagina que pode apagar as marcas do mal no seu caráter com algumas coisas boas, por isso, adula o seu coração. Vejam como ele se sente satisfeito e contente consigo mesmo. O filho de Deus prova seu próprio coração com a mais profunda angústia; mas essa pessoa não conhece tal coisa. Ela tem sempre certeza de estar certa. O verdadeiro crente se senta e examina suas contas todos os dias para ver se está realmente no caminho do céu ou se cometeu algum erro e está enganado. Essa pessoa, no entanto, está satisfeita consigo mesma, venda os próprios olhos e anda deliberadamente, cantando pelo caminho, direto para sua própria destruição. Vejo aqui algumas pessoas assim. Mas não será suficiente eu simplesmente afirmar como ela é se o Espírito Santo de Deus não abrir seus olhos. Elas não conseguirão reconhecer a própria imagem; e mesmo se eu fizer um retrato fiel e pintar cada detalhe e cada traço do seu caráter, elas ainda dirão: “Mas ele não pode estar se referindo a mim. Sou uma boa pessoa e sou muito crente; as coisas que ele disse nada têm a ver comigo”. Sabe aquele tipo de pessoa que está sempre de cara fechada, com o olhar muito sério, que fala com uma espécie de sotaque meio pastoso, dando ênfase a cada palavra? Cuidado com ela! Quando alguém tem a religião estampada no rosto, normalmente não tem quase nada no coração. Comerciantes que colocam grandes cartazes na vitrine, geralmente têm pouco a oferecer. O mesmo acontece com as pessoas que se dizem crente; ninguém saberia que são religiosas, por isso, elas rotulam a si mesmas para ninguém desconfiar. Até poderíamos pensar que são pessoas do mundo, não fosse sua aparência de santarrões. Contudo, fingindo ser quem não são, elas acham que podem sair pelo mundo cheias de confiança. Só espero que não pensem que podem ser aceitas diante do tribunal de Deus e enganar o Onisciente. Ai delas! Seu coração está dividido. Esta não é uma doença rara, apesar da sua repugnância e terrível fatalidade. Ela é muito comum hoje em dia; dezenas de milhares de pessoas consideradas decentes e honradas sofrem desse mal. Sua cabeça inteira está doente e seu coração todo está fraco pelo fato de estar dividido. Essas pessoas não têm coragem de assumir que são totalmente pecadoras e não têm sinceridade suficiente para realmente se devotar a Deus.

            2. Tendo descrito a doença, passo agora a observar seus PRINCIPAIS SINTOMAS. Quando o coração de alguém está dividido, um dos sintomas mais comuns é o formalismo da sua religiosidade. Conhecemos alguns crentes que podem ser muito rigorosos quanto à certas formas de doutrina e grandes admiradores de determinadas maneiras de governar e administrar a igreja. Você verá que eles sentem profundo desprezo, aversão e ódio por quem discorda das suas preferências. Muito embora algumas diferenças sejam praticamente irrelevantes, eles se levantam e discutem por qualquer coisa, e protegem cada prego enferrujado da porta da igreja como se fosse um assunto de suma importância, achando que todas as sílabas da sua crença pessoal devem ser aceitas sem discussão. “Era assim no início, por isso tem de ser agora, e tem de ser sempre”. Vou fazer uma observação que, provavelmente, será confirmada pela sua experiência, assim como o é pela minha: a maioria dessas pessoas finca o pé tão ferozmente por causa da forma porque lhes faltar poder; por isso, a forma é tudo de que podem se vangloriar. Essas pessoas não têm fé, embora tenham um credo. Elas não possuem vida interior, por isso ocupam seu lugar com rituais externos. Será de estranhar, então, que defendam a forma com tanta intensidade? Quem sabe como é preciosa uma vida de santidade, quem entende a sua força, o seu poder profundamente entranhado e arraigado no coração, também ama a forma, mas não tanto quanto ama o Espírito. Essa pessoa aprova a letra, mas prefere a sua essência. Ela é inteligente, e talvez pense menos na forma do que deveria, pois irá se unir primeiro a um grupo de cristãos sinceros, depois aos outros, e dirá: “Se puder desfrutar da presença do meu Mestre, tanto faz onde me encontre. Se puder ver o nome de Cristo exaltado, e Seu evangelho puro anunciado, isso é tudo o que desejo”. Não é assim com quem tem o coração dividido, cuja alma não é piedosa. Ele é fanático ao extremo e — repito — talvez seja um pobre coitado, pois tudo o que tem é uma concha vazia. Será de admirar, então, que esteja pronto a lutar por ela? Você verá que muitas pessoas são extremamente formais até mesmo quanto à nossa simples forma de culto. Elas querem tudo muito certinho, não só na conduta reverente na casa de Deus, mas muito além disso; elas querem uma servidão odiosa, um medo tirânico tomando conta do coração daqueles que estão ali reunidos. Querem tudo nos mínimos detalhes e que o culto seja sempre conduzido com certo decoro tradicional. Ora, essas pessoas, quase sempre, pouco sabem sobre o poder da santidade, e só brigam pelas pequenas conchas porque não têm conteúdo. Brigam pela superfície, apesar de nunca terem descoberto “as águas das profundezas” (Dt. 33:13, NVI). Elas não conhecem o minério precioso que se encontra nas ricas minas do evangelho, por isso, a superfície, mesmo coberta de ervas daninhas e cardos, é suficiente para elas. Formalismo na religião, com frequência, é um traço do caráter de alguém cujo coração está dividido.

            Todavia, talvez esse não seja o sintoma mais importante. Outra característica do caráter de alguém cujo coração está dividido é a sua inconsistência. Você não o verá com muita frequência, se quiser ter uma boa impressão sobre ele. E deve ficar atento quando for procurá-lo. Se for num domingo, verá como ele é santo; mas se for num sábado à noite — talvez descubra o quanto ele se parece com o pior tipo de pecador. Ah, de todas as pessoas do mundo, as que mais temo, porque sei o quanto são perigosas e enganosas, são aquelas que tentam, de todas as formas, seguir a igreja e o mundo ao mesmo tempo. Numa hora estão no culto vespertino entoando os sagrados hinos de Sião; noutra, em lugares malfrequentados cantando música lasciva e profana. Num dia, estão à mesa do Senhor, noutro, à mesa dos demônios. Primeiro, parecem trabalhar na obra junto com os filhos de Deus, em seguida, juntam-se ao populacho para fazer o que não presta. Ah, irmãos, isso, na verdade, é algo terrível — um terrível sinal de uma doença assustadora: se você leva uma vida inconsistente, deve ter um coração dividido. É motivo de alegria quando um ministro pode acreditar que nenhum dos membros da sua igreja seja hipócrita; mas ouso dizer que, embora com a mais profunda tristeza, isso é mais do que espero de uma igreja tão grande quanto a qual fui chamado a pastorear. Ah, amigos, talvez alguns de vocês pratiquem certos pecados longe da vista do seu pastor. Nenhum diácono ou presbítero ainda foi atrás de vocês. Vocês são astutos na sua iniquidade. Talvez seu pecado seja de tal ordem que, de forma alguma, a disciplina da igreja possa resolver. Saibam, porém, e a sua consciência lhes dirá, que sua vida não é consistente com sua profissão de fé. E eu lhes imploro, pelo Deus vivo, quando naquele último dia vocês e eu estivermos face a face diante do tremendo tribunal do Senhor: desistam da sua confissão ou sejam fiéis a ela. Parem de ser chamados cristãos ou sejam cristãos de verdade. Busquem mais graça, a fim de poderem viver de acordo com o exemplo do seu Mestre; ou então, eu lhes rogo — e sejam sinceros; e, se me levam a sério, vou me alegrar quando o fizerem — desistam da sua membresia e abandonem a sua confissão. Vida inconsistente, eu lhes digo, é sinal evidente de um coração dividido.

            Além disso, preciso mencionar mais um sinal de um coração dividido, ou seja, a sua inconstância. Posso descrever um personagem que talvez já tenham encontrado muitas vezes. Alguém vai a uma reunião ou a um encontro religioso e é subitamente tomado de entusiasmo para fazer o bem. Ele quer ser missionário no Exterior ou dedicar seus bens à causa missionária e, durante as semanas seguintes, só falará em missões. Algum tempo depois, ele vai a um comício político e, então, não haverá nada mais importante para ele do que a reforma política. Na outra semana, ele é chamado para integrar uma comissão de saneamento, e aí não existirá nada que ele queira, a não ser o tratamento de esgoto. Religião, política, economia social, um de cada vez, e tudo o mais precisa dar lugar àquilo que chama sua atenção naquele momento. Essas pessoas vão primeiro em uma direção, depois em outra. Sua religião é espasmódica. Elas são consumidas como quem é consumido por uma febre. São sacudidas por um espasmo e logo em seguida se acalmam. Algumas vezes estão quentes e febris, outras, frias e indiferentes. Elas se devotam a uma religião, depois a abandonam. Isso só comprova que elas têm um coração dividido e, aos olhos de Deus, são pessoas doentes e repulsivas, as quais nunca verão a Sua face com alegria.

            Para concluir a lista dos sintomas: frivolidade religiosa quase sempre é sinal de um coração dividido; e aqui me dirijo diretamente àqueles da minha própria geração[4]. Um pecado muito comum entre os jovens é não levar a religião muito a sério ou com reverência. Há um tipo de seriedade muito bem-vinda, principalmente a jovens cristãos. A alegria deveria ser o alvo constante dos idosos; mas eles tendem a ser melancólicos. Talvez um pouco de seriedade e reverência devesse ser o alvo dos jovens crentes, cuja tendência é mais para a leviandade do que para o desânimo. Ah, irmãos, quando falamos de coisas religiosas com irreverência; quando citamos textos das Escrituras com zombaria; quando nos aproximamos da mesa do Senhor como se fosse uma simples refeição; quando vemos o batismo como uma observância comum, sem qualquer solenidade — então, receio que estejamos evidenciando um coração dividido. E eu sei que qualquer alma consciente da sua culpa, quando levada a conhecer realmente o amor de Cristo, sempre verá as coisas sagradas de forma diferente. Ela não participa da mesa do Senhor com coração leviano. Para ela, tudo parece muito solene. E, quanto ao batismo, quem é batizado sem ter sondado seu coração, sem ter examinado seus motivos e sem a verdadeira devoção do espírito, é batizado absolutamente em vão. Assim como o comungante em pecado come e bebe juízo para si, aquele que é indevidamente batizado recebe condenação em vez de bênção. Frivolidade espiritual com frequência é sinal de um coração dividido.

            3. Isso nos leva ao terceiro ponto: os tristes efeitos de um coração dividido. Quando o coração de alguém está dividido, tudo é ruim para ele. Com relação a si mesmo, ele é muito infeliz. Quem pode ser feliz quando tem dentro do próprio peito forças rivais? A alma precisa encontrar um refúgio para si ou não achará descanso. O pássaro que tenta se apoiar em dois galhos nunca terá paz, e a alma que se esforça para encontrar dois lugares de descanso — primeiro no mundo, depois no Salvador — nunca terá alegria ou consolo. Um coração unido é um coração feliz; por isso, Davi disse: “une o meu coração ao temor do teu nome” (Salmo 86:11b, ACR, Fiel). Aqueles que se entregam inteiramente a Deus são um povo abençoado, pois descobrem que os caminhos da religião “são caminhos deliciosos, e todas as suas veredas, paz” (Provérbios 3:17). Quem não é nem isto nem aquilo, nem uma coisa nem outra, é sempre inquieto e infeliz. O temor de ser descoberto e a consciência de estar errado conspiram juntos para agitar a alma e deixá-la cheia de males, preocupação e inquietação de espírito. Tal pessoa é, em si mesma, infeliz.

            Essa pessoa também é inútil na igreja. Qual é a sua serventia para nós? Não podemos colocá-la no púlpito para falar de um evangelho que ela não pratica. Não podemos colocá-la no diaconato, pois sua vida não seria condizente com servir à igreja. Não podemos dar-lhe a responsabilidade do presbiterato por entendemos que, não sendo uma pessoa temente a Deus, questões espirituais não devem ser confiadas a ela. Em nenhum aspecto, essa pessoa é boa para a igreja. “Prata de refugo lhes chamarão” (Jeremias 6:30). Seu nome pode estar inscrito no rol de membros, mas é melhor que seja retirado. Ela pode se sentar entre nós e nos dar sua contribuição, mas ficaríamos muito melhor sem qualquer uma das duas, mesmo que ela duplicasse seu talento e triplicasse sua oferta. Sabemos que quem não tem o coração íntegro e totalmente voltado para Cristo não pode fazer absolutamente nada na igreja de Deus.

            Todavia, não é somente isso; uma pessoa assim também é perigosa para o mundo. Ela é como um leproso que se infiltra no meio de pessoas saudáveis; ela espalha a doença. Um bêbado é um leproso que isola a si mesmo; mas, comparativamente, ele causa poucos danos, pois na sua embriaguez ele é como o leproso expulso da sociedade. Sua própria bebedice grita: “Imundo! Imundo! Imundo!” Mas o homem de coração dividido é um religioso confesso, por isso é tolerado. Ele se diz cristão, assim, é admitido em toda a sociedade, mesmo sendo cheio de podridão e falsidade em seu interior. E, embora externamente seja caiado como um sepulcro, é mais perigoso para o mundo que o pior pecador. Prenda-o! Não o deixe solto! Construa uma prisão para ele! Mas o que estou dizendo? Se fôssemos construir uma prisão para hipócritas, Londres inteira não seria suficiente para todas as prisões necessárias. Ah, meus irmãos, apesar da impossibilidade de prendê-los, digo que o cão mais danado, nos dias mais quentes, não é nem de longe tão perigoso para as pessoas quanto quem tem um coração está dividido e corre atrás dos outros com o veneno raivoso da hipocrisia nos lábios, contaminando e destruindo sua alma.

            E essa pessoa não é apenas infeliz em si mesma, inútil para a igreja e perigosa para o mundo, ela também é desprezível a quem quer que seja. Quando é desmascarada, ninguém quer saber dela. Raramente o mundo a aceita, e a igreja não terá nada para lhe dar, a não ser sua desaprovação.

            A consideração mais séria a fazer, no entanto, é que tal pessoa é reprovável aos olhos de Deus. Para os olhos da infinita pureza, ela é um dos seres mais nefastos e abjetos que existe. Seu coração está dividido. Um Deus puro e santo odeia, primeiramente, o seu pecado; depois as mentiras com as quais ela procura encobri-lo. Ah, se há um lugar onde os pecadores são mais repulsivos a Deus do que em qualquer outro, esse lugar é na Sua igreja. Cachorro no canil está no lugar apropriado; mas, na sala do trono está totalmente fora de lugar. Um pecador no mundo já é ruim o suficiente, mas, na igreja, é simplesmente abominável. Um louco no sanatório é uma criatura digna de pena, mas um louco que não se acha louco e se imiscui entre nós para obter meios de fazer o mal, não é apenas digno de pena, mas precisa ser evitado, e deve ser contido. Deus odeia o pecado seja onde for, mas quando o pecado coloca seus dedos no altar divino; quando chega e põe a mão insolente no sacrifício ali oferecido, Deus simplesmente o abomina. De todas as pessoas, as que estão no lugar mais provável de receber o raio mais potente, o flash mais terrível de um relâmpago, são aquelas com um coração dividido, aquelas cuja confissão é servir a Deus enquanto, com a alma, estão servindo ao pecado. Acautelai-vos, pecadores, acautelai-vos, pois continuando em vosso pecado, acabareis se deparando com o castigo; não obstante, hipócritas, atentai para os vossos caminhos, pois o vosso pecado e as vossas mentiras trarão rápida e pavorosa destruição sobre as vossas cabeças carolas.

            4. Para concluir, preciso fazer algumas observações a respeito do CASTIGO RESERVADO àquele cujo coração está dividido, caso não seja resgatado por uma grande salvação.

            Esforcei-me para ser fiel nesta pregação, o mais fiel que pude, mas estou ciente de que muitos dos filhos de Deus não encontram alimento espiritual em um sermão como este, nem é esta a minha intenção. Não é possível, honestamente, misturar a peneira com o recipiente do evangelho. Não posso lhes trazer, de forma satisfatória, o trigo e a peneira. Hoje estou procurando, como ministro do evangelho, tomar a pá em minhas mãos, para limpar completamente a eira em nome daquele que será o grande “Purgador” no último dia (Mateus 3:12). Todos precisamos ser purificados, quer saibamos disso ou não. Mesmo os melhores cristãos às vezes precisam se questionar quanto a seus motivos. E quando os filhos de Deus não são alimentados, muitas vezes é melhor para eles serem levados ao autoexame do que receberem uma preciosa promessa como alimento. Caros ouvintes, em razão do grande número de pessoas aqui nesta manhã, será que é possível não haver ninguém com o coração dividido? Será que toda esta congregação é composta apenas de cristãos sinceros, verdadeiramente iluminados, chamados e salvos? Não há ninguém que tenha se enganado de lugar, colocando-se entre as ovelhas, quando deveria estar entre os bodes? Será que ninguém, sem ter cometido um erro, veio a se infiltrar descaradamente entre os sacerdotes de Deus, quando, na verdade, é adorador de Baal? Permitam-me, então, por último, a fim de poder desempenhar fielmente minha missão, descrever as horríveis condições de um hipócrita quando Deus vier para julgar a terra.

            Lá vem ele, com a maior cara de pau; ele vem no meio da congregação dos justos. Uma ordem parte do trono: “Ajuntai primeiro o joio!” Ele a ouve, mas nem fica pálido. Mesmo agora, seu descaramento continua. Ele até poderia bater na porta e dizer: “Senhor! Senhor! Abre pra mim, por favor”. O anjo separador voa. O terror se estampa no rosto dos ímpios quando o joio é atado em feixes e colocado à esquerda para ser queimado. Imagine o choque ainda maior desse indivíduo quando, estando em meio a ministros, santos e apóstolos, de repente se vê prestes a ser catado dentre eles. Com um tremendo mergulho, como uma águia descendo das alturas, o anjo da morte cai sobre ele e o arrebata, reivindicando sua posse. “Tu és”, diz o anjo negro, “tu és joio. Cresceste lado a lado com o trigo, mas isso não mudou tua natureza. O orvalho que cai sobre o trigo caiu sobre ti; o sol que brilhou sobre ele também foi deleitoso para ti; mas ainda és joio e o teu destino continua o mesmo. Serás atado junto com o resto para seres queimado”. Ah, meus ouvintes, que choque será quando a mão poderosa daquele anjo o arrancar pela raiz, para levá-lo embora; ele, que pensava ser santo, será atado no mesmo feixe de pecadores para destruição!

            E, agora, imagine como ele é recebido. Ele é trazido no meio dos perversos — os quais anteriormente, com língua farisaica, ele havia condenado. “Lá vem ele”, dizem eles, “aquele que nos dava ordens, o bom homem que nos dizia o que fazer, ei-lo aqui em pessoa; finalmente ele descobriu que não é melhor do que aqueles a quem desprezou”. Depois imagine, se tiver coragem, o calabouço íntimo, os assentos reservados da morada de fogo e os pesados grilhões de desespero — imagine, se puder, a terrível destruição, muito além de qualquer outra, que tomará conta daquele que, neste mundo, enganou a igreja e desonrou a Deus, e agora é desmascarado para a sua própria vergonha. Pecadores comuns ficam em prisão comum, mas essa pessoa será lançada numa prisão íntima e acorrentada ao tronco do desespero. Tremam, vocês que se dizem crentes, tremam, vocês que não são nem uma coisa nem outra; tremam, vocês que fingem temer a Deus, mas, como os samaritanos, adoram também aos ídolos. Oh! Tremam agora, para que o temor não recaia sobre vocês no dia em que, sem se dar conta, desejarem ardentemente uma rocha para se esconder ou uma montanha para se ocultar e não encontrarem proteção do furor da ira do Deus de toda a terra.

            Mas não posso deixá-los ir sem lhes falar, por um momento ou dois, do evangelho. Talvez alguém esteja dizendo: “Pastor, meu coração não está só dividido, ele está partido”. Ah, mas existe uma enorme diferença entre um coração dividido e um coração partido. O coração dividido está cortado em duas partes; o coração partido está quebrado, aos pedaços, mas ainda não está dividido. Em certo sentido, ele está estraçalhado, no que diz respeito à sua arrogante confiança; mas, em outro, está unido, no que diz respeito ao seu ardente desejo de poder ser salvo. Pobre coração partido, eu não estava te censurando. É teu desejo nesta manhã ter teus pecados removidos? Então, do fundo do teu pobre coração partido clama: “Senhor, guarda-me da hipocrisia. Seja eu o que for, não me deixes pensar que sou um dos teus se não sou”. Estás sussurrando esta oração para Deus? “Senhor, faz-me realmente Teu. Coloca-me entre os Teus filhos. Deixa-me Te chamar de Pai e não permitas que me afaste de Ti. Dá-me um novo coração e um espírito reto; ó, lava-me no sangue de Cristo e purifica-me. Faze de mim o que queres que eu seja e eu Te louvarei para sempre”. Lembra-te, caro ouvinte, se esse é o desejo do teu coração, tu és hoje chamado a crer que Cristo pode salvar-te, e quer salvar-te, e está esperando para ser gracioso para contigo, e mais pronto a te conceder misericórdia do que estás para recebê-la. Portanto, és ordenado a confiar nEle, pois todos os teus pecados foram punidos nEle como teu fiador e, por causa de Cristo, Deus está disposto a receber-te agora, e a abençoar-te agora. Achega-te a Ele nesta manhã; eleva os teus olhos para Aquele que morreu no madeiro. Confia nAquele que é o meu Redentor, e é também o teu Redentor; deixa o sangue que flui do Seu lado ser recebido no teu coração. Abre as tuas feridas e dize: “Mestre, cura-as para mim. Ó Jesus! Não conheço nenhum outro em quem confiar. Se me salvares, jamais conhecerei outro amor. O amor do meu coração é indivisível e ele confia somente em Ti; logo sua gratidão também será indivisível; e eu Te louvarei, a Ti somente”. Pobre coração penitente, não me enganei ao discordar de mim mesmo, dizendo: “Apesar do teu coração estar partido, ele não está dividido”. Traze-o como ele está e dize: “Senhor, recebe-me pelo sangue de Cristo e deixa-me ser Teu agora, e ser Teu para sempre, por meio de Jesus”. Amém.

Tradução: Mariza Regina de Souza





[1] As Guerras da Famosa Cidade de Alma-humana, John Bunyan

[2] Ilha que faz parte do Reino Unido situada no mar da Irlanda

[3] As três expressões usadas por Spurgeon formam um jogo de palavras com partes do corpo ━ mão, olho e pé, praticamente intraduzível de forma literal para o português.


[4] Na época deste sermão, 1859, Spurgeon contava com 25 anos de idade.