quinta-feira, 22 de agosto de 2024

O Padrão das Sãs Palavras

 

Sermão nº 79

Ministrado na manhã de domingo, 11 de maio de 1856, pelo

Rev. C. H. Spurgeon

Na Capela da New Park Street, Southwark, Inglaterra

Mantém o padrão das sãs palavras que de mim ouviste com fé e com o amor que está em Cristo Jesus. (2 Timóteo 1.13)


Minha grande inquietação neste momento, caros amados em Cristo, é que, antes de mais nada, eu seja capaz de lhes ensinar o que é a verdade de Deus. E, então, confiando que eu tenha lhes ensinado da melhor forma possível o que creio ser o mais puro evangelho de Deus, o meu profundo desejo é que vocês “mantenham o padrão das sãs palavras”, a fim de que, aconteça o que acontecer, seja a morte do seu pastor ou a tentação ameaçadora de abraçar uma doutrina herética, que cada um de vocês se mantenha firme e inabalável como uma rocha, e forte como uma montanha, permanecendo na “fé que uma vez por todas foi entregue aos santos” (Judas 1.3), a qual vocês ouviram e que lhes temos proclamado. Se o evangelho vale a pena ser ouvido, e se é o verdadeiro evangelho, vale a pena mantê-lo, nosso ardente desejo é que vocês estejam tão firmes na fé que possam “guardar firme a confissão da esperança, sem vacilar, pois quem fez a promessa é fiel.” (Hebreus 10.23).

O apóstolo admoestou sinceramente Timóteo a “manter o padrão das sãs palavras que dele ouviu com fé e com o amor que está em Cristo Jesus”. Não creio que fosse intenção de Paulo dar a Timóteo uma lista de doutrinas ou um resumo sobre o ser de Deus, subscritos por ele, como artigos de fé para a igreja onde Timóteo havia sido designado pastor. Se assim fosse, sem dúvida, o documento teria sido preservado e arrolado no cânon das Escrituras como um dos escritos de um homem inspirado. Não posso imaginar que tal credo possa ter sido perdido, enquanto outros foram preservados e chegaram até nós. Imagino que o apóstolo queria dizer o seguinte: “Timóteo, quando preguei o evangelho a você, você ouviu de mim um grande compêndio da verdade; ouviu sobre os fundamentos da fé em Jesus Cristo. Em meus escritos e discursos públicos, você sempre me ouviu falar de um certo padrão ou forma de fé; agora eu lhe peço, meu amado filho no evangelho, “mantém o padrão das sãs palavras que de mim ouviste com fé e com o amor que está em Cristo Jesus”.

Portanto, nesta manhã, em primeiro lugar, vou tentar lhes dizer o que compreendo ser o “padrão das sãs palavras”, o qual devemos manter. A seguir, vou tentar exortá-los sobre a profunda necessidade de manter esse padrão. Depois, vou adverti-los sobre os perigos a que estarão expostos, os quais poderão tentá-los a abandonar o padrão das sãs palavras. E, por último, vou mencionar os dois grandes alicerces, a fé e o amor em Cristo, sobre os quais poderão “manter o padrão das sãs palavras”.

I. Qual é, então, o “PADRÃO DAS SÃS PALAVRAS”? Milhares de pessoas têm discutido sobre isso e cada uma dirá uma coisa. Uns dirão: “meu credo é um padrão de sãs palavras”, outros também dirão que seu credo é sólido, se não infalível. Não entraremos, portanto, nas minúcias que distinguem os credos uns dos outros, mas diremos simplesmente que nenhum sistema pode ser um padrão de sãs palavras a menos que esteja totalmente de acordo com a Escritura. Não aceitamos doutrina que seja doutrina de homens. Qualquer autoridade que venha até nós que não seja a autoridade do Espírito Santo, e inspirada por Deus, de forma alguma é autoridade para nós. Rejeitamos todo e qualquer dogmatismo de homens; não importa o que digam, por mais fortes que sejam suas opiniões e por mais eloquentes que sejam suas declarações, nós os desprezamos e descartamos. Para nós é pecado “aceitar doutrinas e preceitos de homens” (Col. 2.22); não damos atenção à tradição de homens. Não entramos em discussão com quem se opõe a nós sem citar texto ou versículo da Escritura. Ela é a única arma que reconhecemos.

Entretanto, como sabemos que os textos bíblicos podem provar quase tudo, devemos observar que um padrão de sãs palavras deve ser um que glorifique a Deus e humilhe o homem. Não ousamos pensar, sequer por momento, que sã doutrina não coloque uma coroa na cabeça de Jesus e não glorifique o Todo-Poderoso. Se nos deparamos com uma doutrina que enaltece a criatura, não podemos levar em consideração qualquer argumento apresentado em sua defesa. Sabemos que uma doutrina é falsa quando ela não coloca a criatura no próprio pó da humilhação e não glorifica o Criador. Se não for assim, ela não passa de uma doutrina corroída pelo orgulho; que pode nos deslumbrar como o fogo-fátuo emergindo de um pântano fétido, mas nunca lançará uma luz verdadeira e saudável sobre a alma. A doutrina é podre, inadequada para ser formulada sobre o evangelho, a menos que glorifique a Yahweh, Pai, Filho e Espírito Santo.

Pensamos, também, que podemos julgar a solidez de uma doutrina pela sua tendência. Não é possível considerar uma doutrina como sã quando ela claramente demonstra tendência a levar o homem ao pecado. A menos que a doutrina esteja de acordo com os valores cristãos, não podemos concebê-la como doutrina de Deus. A menos que seus fiéis creiam, honesta e verdadeiramente, que ela os leva a ter uma vida piedosa e que a própria doutrina tenha tendência natural a promover neles o amor por aquilo que é certo, à primeira vista ela é motivo de suspeita e, se examinada mais a fundo, veremos que é uma doutrina licenciosa, que pode ter o brilho e o glamour das novidades, mas que deve ser rejeitada como doutrina cristã, pois não promove a santidade da alma.

Talvez nos perguntem o que realmente consideramos como padrão de sãs palavras e quais doutrinas são bíblicas, promovendo a saúde do espírito e, ao mesmo tempo, glorificando a Deus. Nossa resposta é que acreditamos que um padrão de sãs palavras deve abranger, antes de mais nada, a doutrina do ser de Deus e Sua Natureza, exaltando a Trindade na Unidade, e a Unidade na Trindade. Qualquer doutrina que não tenha o Pai, o Filho e o Espírito Santo como pessoas iguais, de essência indivisível, é doentia e deve ser rejeitada, pois temos certeza de que é depreciativa à glória de Deus; e isso é o suficiente para nós. Se alguém despreza o Pai, o Filho ou o Espírito Santo, nós o desprezamos, e a seus ensinamentos, e não podemos sequer dizer-lhe: “Boa sorte.”.

Ora, nós cremos que o padrão das sãs palavras precisa considerar tanto o homem quanto Deus da forma correta; esse padrão deve ensinar que o homem é totalmente caído, é pecador e está condenado por seu próprio pecado e, em si mesmo, totalmente sem esperança de salvação. Se uma doutrina exalta o homem, dando-lhe um caráter que não é verdadeiro, e o reveste com um manto espúrio de justiça, tecido por seus próprios dedos, nós não a aceitamos e a descartamos completamente.

Também pensamos que a sã doutrina deve ter a visão correta sobre a salvação, como sendo do Senhor somente. A menos que encontremos nessa doutrina um amor eterno e imutável, que resulta na salvação de um povo “que não era povo”, mas foi feito povo pela graça especial de Deus; a menos que encontremos nela um amor distintivo — e que outros digam o que quiserem — não podemos considerá-la como um padrão de sãs palavras. A menos que a misericórdia redentora, a perseverança final dos santos e todas as grandes e gloriosas verdades que são os próprios baluartes da nossa religião sejam aberta e corajosamente ensinadas, outras pessoas podem aceitar tal doutrina como um padrão de sãs palavras, mas nós não podemos, e nem ousamos. Nós amamos o antigo sistema de nossos antepassados, amamos as antigas verdades da Escritura, não porque sejam antigas, mas porque não podemos considerar como verdade aquilo que não tenha a visão bíblica da salvação. Creio que o próprio Paulo, neste mesmo capítulo, nos dá o padrão das sãs palavras quando diz: “Deus, que nos salvou e nos chamou com santa vocação; não segundo as nossas obras, mas conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus, antes dos tempos eternos” (2Tm 1.9).

Não preciso me deter para lhes provar aquilo que brevemente apontei como um padrão de sãs palavras, pois sei que acreditam nisso, e acreditam de fato. Não vou insistir para que o aceitem, pois sei que já o aceitaram, mas o que tenho a lhes dizer é o seguinte: “mantenham”, eu suplico, “o padrão das sãs palavras que de mim ouviste com fé e com o amor que está em Cristo Jesus”.

II. Agora, preciso lhes mostrar A NECESSIDADE DE MANTER ESTE PADRÃO DE SÃS PALAVRAS, E RETÊ-LO, PARA O SEU PRÓPRIO BEM, PELO BEM DA IGREJA E PELO BEM DO MUNDO.

1) Em primeiro lugar, mantenham-no para o seu próprio bem, pois, graças a ele, vocês receberão bênçãos incontáveis; e terão paz de consciência. Juro, diante de Deus, que, toda vez que duvido das maravilhas recebidas do Senhor, no mesmo instante sinto um vazio tão grande que o mundo jamais poderá preencher, e que eu mesmo nunca poderei suprir até admitir novamente a verdadeira doutrina e crer nela de todo coração. Quando estou abatido e desanimado, sempre encontro conforto na leitura de livros fortes nas doutrinas da fé. Quando leio aqueles que tratam do amor eterno de Deus, revelado a seu povo escolhido na pessoa de Cristo, e relembro algumas das grandes e preciosas promessas feitas aos eleitos em seu representante federal na aliança da graça, minha fé imediatamente é fortalecida, e minha alma, com asas sublimes, se eleva em direção a Deus. Se nunca provaram tais coisas, meus amados, vocês não podem dizer o quão doce é a paz que as doutrinas da graça trazem à alma; não há nada como elas. Elas são:

“Um bálsamo soberano para cada ferida

Um lenitivo para todos os nossos medos”

Elas são a doce canção de ninar de Deus, com a qual Ele embala Seus filhos para dormir mesmo durante as tempestades. Elas são as âncoras de Deus, lançadas ao mar para manter nossos barquinhos firmes no meio da tormenta. Há uma “paz que excede todo entendimento” que recai sobre todo verdadeiro crente; mas sabemos que a tendência da moda é abandonar antigas referências para adotar novas, e confessar qualquer coisa ao invés da boa e velha teologia. Bem, amigos, se algum de vocês gosta de novas doutrinas, atentem para o que eu digo: se você é filho de Deus, logo ficará farto dessas novidades, do ensino dessas ideias modernas. Pode ser que, na primeira semana, você se satisfaça com sua originalidade; pode ser que fique maravilhado com sua espiritualidade transcendental, ou coisa parecida; mas não vai demorar a dizer: “Ah! Peguei nas mãos as belas maçãs de Sodoma; mas quando coloquei na boca tinham gosto de cinza.”. Se quiser ter paz, apegue-se à verdade e mantenha o padrão das sãs palavras, só assim “sua paz será como um rio e sua justiça como as ondas do mar”. 

Repito: “mantenham o padrão das sãs palavras”, pois ele será muito importante para o seu crescimento. Quem mantém a verdade cresce muito mais rápido do que quem está sempre mudando de doutrina. O mundo atualmente tem muitos “maria vai com as outras” espirituais. Há quem, pela manhã, ouça um pregador calvinista e diga: “Maravilhoso!”. E, à noite, ouça um arminiano, e diga: “Excelente! Os dois são muito bons, e são sinceros, apesar de contradizerem um ao outro.”. A incrível tolerância de nossos dias é tanta que as pessoas acham que a mentira é tão boa quanto a verdade. A mentira e a verdade se encontraram, e se beijaram. Quem diz a verdade é chamado de intolerante, e a verdade deixou de ser honrosa para as pessoas! Ah! meus amados, sabemos que não podemos ter uma tolerância tão grande, mas totalmente falsa. A verdade é que devemos “manter o padrão das sãs palavras” que nos foi dado, pois só assim poderemos crescer. Pessoas inconstantes não crescem. Se plantamos uma árvore em determinado lugar, e amanhã a mudamos para outro, e depois outro, como ela estará em seis meses? Provavelmente estará morta ou não terá crescido muito, estará bem mirrada. Assim é com algumas pessoas: hoje elas estão aqui; amanhã se convencem de que não era bem isso o que queriam, vão embora e se estabelecem em outro lugar. Ora, muitas pessoas não se fixam em lugar nenhum; ficam pulando de galho em galho, de uma denominação para outra, sem saber o que são. Em nossa opinião, elas não acreditam em nada, e não prestam para nada, e qualquer um pode lhes dizer o que quiser. Só acreditamos que alguém possa ter algum valor se tiver princípios estabelecidos e “mantiver o padrão das sãs palavras”. Não se pode crescer sem esse padrão. Como poderei conhecer melhor os preceitos da minha fé se, em dez anos, permitir que ela tenha dez padrões diferentes? Meu conhecimento sobre cada um deles será apenas superficial, sem profundidade. No entanto, quem tem apenas uma regra de fé, e sabe que sua fé vem de Deus, mantendo-se firme nela, não se tornará muito mais forte? Os ventos e tempestades fortalecerão sua fé, da mesma forma que os ventos fortalecem as raízes dos carvalhos, mantendo-os firmes no lugar. Contudo, se fico mudando e pulando de um lado para outro, não fico melhor, fico pior. Por isso, pelo bem da sua paz, e pelo bem do seu crescimento, “mantenha o padrão das sãs palavras”.

Além disso, meus amados, peço-lhes que mantenham o padrão das sãs palavras, para o seu próprio bem, como um lembrete dos grandes males que poderão advir caso não o mantenham. Prestem atenção ao que vou dizer. 

Em primeiro lugar, todo desvio da verdade é pecado. Pecado não é simplesmente fazer algo errado, mas é também acreditar na doutrina errada. Ultimamente, nossos ministros têm dito que não precisamos ser tão críticos para obedecer a Deus. Muitos dizem, sem qualquer rodeio, em seus gabinetes, e alguns até no púlpito, que, no dia do juízo, não teremos de dar conta da nossa fé. Dizem que seremos responsabilizados pelos nossos atos, mas não pela nossa fé ou coisa parecida. Dizem abertamente que o Deus que nos criou, embora tenha autoridade sobre nossas mãos, nossos pés, nossos olhos e nossos lábios, não interfere em nosso julgamento. Dizem que não é pecado ter uma teologia que não seja tão boa, desde que vivamos uma vida correta. Mas, será que isso é verdade? É claro que não, pois o homem deve servir a Deus integralmente, e se Ele nos dá discernimento, esse discernimento deve ser empregado a Seu serviço. Se, devido a esse discernimento, aceitamos aquilo que não é verdade, aceitamos bens roubados, e pecamos tanto quanto se nós mesmos os tivéssemos roubado. 

O pecado pode ser gradativo. Mesmo se for um pecado por ignorância, ainda é pecado, mas não é tão hediondo quanto um pecado de negligência, que é o pecado de muita gente. Por exemplo, se eu lhes digo que o batismo não é por imersão, mas batizo dessa forma, cometo pecado toda vez que o faço; e, se digo que é por imersão, meu irmão peca por não batizar dessa forma. Se a eleição é verdadeira, peco se não acreditar nela; se a perseverança dos santos é verdadeira, peco diante do Todo-Poderoso se não a aceito, e se não é verdadeira, peco por aceitar aquilo que não é bíblico. Errar em doutrina é tão pecado quanto errar na prática. Em todas as coisas devemos servir a Deus com toda nossa força, exercendo a capacidade de fé e julgamento que Ele nos dá. 

Alerto a todos os cristãos: não pensem que é fácil manter a fé com mãos frouxas; é pecado toda vez que realizamos algo que nos faça vacilar na fé em Jesus Cristo. Lembrem-se de que o erro doutrinário não é apenas um pecado, mas um pecado que tende a aumentar. É incrível que, quando alguém acredita em alguma coisa errada, logo em seguida acaba acreditando em outra e mais outra. Uma vez aberta a porta à falsa doutrina — Satanás diz que é só uma coisinha de nada — sim, mas é como se ele colocasse um pequeno calço para introduzir coisas maiores, e ele sempre dirá que só vai abrir mais um pouquinho e mais um pouquinho. Os hereges mais detestáveis que já perverteram a fé em Deus não cometeram graves erros logo de início; aqueles que mais se afastaram da verdade, começaram a se desviar aos poucos. De onde vieram todas as abominações da Igreja de Roma? Ora, de pequenos desvios. A princípio, não tinha nada de abominável. Ela não se tornou, da noite para o dia, a “mãe das meretrizes” (Ap. 17.5), mas primeiro ela se enfeitou com alguns adornos, depois com outros e, aos poucos, começou a se prostituir com os reis da terra. Ela foi caindo, caindo e, da mesma forma, foi se afastando cada vez mais da verdade. Durante séculos foi uma igreja de Cristo, e é difícil dizer, olhando para a história, quando foi exatamente que ela parou de ser contada entre as igrejas cristãs. Cuidado, cristãos, se cometerem um erro, não dá pra dizer quantos mais virão a seguir.

“Mantenham o padrão das sãs palavras”, porque é quase inevitável que a doutrina equivocada leve à prática equivocada. Quando alguém crê de forma errônea, logo começará a agir da mesma forma. A fé tem grande influência sobre a nossa conduta. Uma pessoa é tal qual a sua fé. Quando começamos a aceitar erros doutrinários, logo eles irão afetar aquilo que fazemos. Guarde os fundamentos da fé de nossos pais. Se não o fizer, o inimigo fará grandes estragos em você. “Mantenha o padrão das sãs palavras que lhe foram entregues.”.

2) Em segundo lugar, quero que todos “mantenham o padrão das sãs palavras” pelo bem da própria igreja. Querem ver a igreja crescer? Querem vê-la ter paz? Então, “mantenham o padrão das sãs palavras”. Qual é a causa das divisões, cismas, disputas e contendas que há entre nós? Não é devido à verdade; é devido aos erros. A igreja teria mais paz, genuína e constante, se tivesse mais pureza, genuína e constante. 

Indo de navio para Sheerness1 na última sexta-feira, alguém a bordo me contou que, durante o último vendaval, diversos navios que estavam lá tiveram a corrente de suas âncoras rebentadas e foram de encontro a outros navios, causando grandes estragos. Ora, se as âncoras tivessem se mantido firmes, não haveria dano algum. Se me perguntarem por que as diferentes denominações têm causado tanto dano às nossas igrejas, eu lhes digo que é porque suas âncoras não se mantiveram firmes. Se elas tivessem guardado a verdade, não haveria controvérsias, pois as controvérsias vêm dos erros. Se houver uma impressão ruim, ela não provém da verdade — provém do erro. Se a igreja tivesse se mantido firme na fé e continuasse ligada às grandes doutrinas da verdade, não haveria controvérsias. Mantenha-se firme naquilo que acredita e não haverá discórdias na igreja.

Digo mais uma vez, mantenham-se firmes na fé pelo bem da igreja, pois só assim ela será forte. Quando ia de Chatham para Sheerness, vi uma porção de navios que, para mim, pareciam apenas cascos velhos, e pensei em como não fazia sentido o governo mantê-los ali ao invés de usá-los como lenha ou coisa parecida. No entanto, alguém me disse que logo estariam em condições de uso; pareciam velhos agora, mas só precisavam de um pouco de tinta e, quando o almirantado os requisitasse, estariam prontos para serem usados e colocados em serviço. 

Da mesma forma, ouvimos as pessoas dizendo: “Bem, temos aquelas doutrinas antigas — para que servem?”. Espere! Não existe doutrina na Bíblia que não tenha utilidade. Aqueles navios pareciam não ter mais serventia, mas ainda são úteis. O mesmo acontece com as doutrinas da Bíblia. Ninguém pode dizer: “Acabem com elas, não precisamos mais disso.”. Não é verdade, precisamos, sim. Alguns me perguntam: “Por que você ainda prega contra os arminianos? Não temos medo deles.” Só que eu gosto de treinar os membros da minha igreja para quando tiverem de agir. Não vamos queimar nossos navios; eles logo serão úteis. E, quando sairmos do porto, as pessoas dirão: “De onde saíram esses velhos navios?”. E nós responderemos: “Ora, essas são justamente aquelas doutrinas que todos diziam não servir para mais nada. Elas estão aqui e faremos bom uso delas.”. 

Hoje em dia temos cada vez mais hinários modernos e atraentes, mas cheios de disparates. Temos também novas ideias e teorias, e há quem diga: “Por que ser tão rigoroso? Não importa como nossos irmãos cristãos veem esses pontos”. Mas de uma coisa tenho certeza, um dia eles vão precisar das nossas antigas embarcações para ir à batalha. Talvez eles se saiam muito bem em tempos de paz, mas não em tempos de guerra. Nosso apoio será útil para manter a fé do evangelho, mesmo que agora zombem de nós. Para que a igreja seja forte, meus irmãos, eu lhes digo: “mantenham o padrão das sãs palavras”.

Contudo, alguém poderia dizer: “Acho que devemos defender a verdade com firmeza, mas não vejo necessidade de manter um padrão; podemos aparar algumas arestas aqui e ali e nossas doutrinas seriam melhor recebidas.”. Suponham, meus amigos, que tivéssemos um ovo valioso e alguém dissesse: “Ora, a casca não serve para nada; dela nunca nascerá um passarinho, por que não quebrá-la?”. Eu simplesmente daria um sorriso e diria: “Caro amigo, a casca protege o que está no interior. Sei que o mais importante é o que está dentro, mas quero que a casca o proteja.”. Aí você diz: “Você pode manter aquilo que é essencial, sem ser tão exigente quanto ao padrão. Você é um puritano das antigas e quer ser rigoroso demais. Podemos alterar algumas coisinhas e torná-las um pouco mais palatáveis.” Amigos, não quebrem a casca; o estrago será muito maior do que pensam. Admitimos de bom grado que o padrão nada mais é do que um critério, mas quando atacam esse padrão, qual é o objetivo? É atacar a essência, não o padrão. Portanto, mantenham a essência e mantenham também o padrão. Não é só manter as mesmas doutrinas, mas mantê-las no mesmo padrão — inflexível, rigoroso e austero como sempre foi, pois, se não for assim, e o padrão for mudado, será difícil manter a essência. “Mantém o padrão das sãs palavras que de mim ouviste com fé e com o amor que está em Cristo Jesus.”. 

3) Além disso, “mantenham o padrão das sãs palavras” pelo bem do mundo. Perdoem-me quando digo, falando como homem, que na minha opinião o progresso do evangelho é obstruído pelo erro de muitos pregadores. Não me admira ver um judeu que não crê no cristianismo, pois ele raramente vê a sua beleza. Durante séculos, o que os judeus têm pensado acerca do cristianismo? Ora, que é pura idolatria. Quando veem um católico romano ajoelhando-se diante de pedaços de madeira e de pedra; quando o veem se prostrar diante da virgem Maria e de todos os santos, eles dizem: “Nosso lema é: ‘Ouve, ó Israel, o Senhor teu Deus é o nosso Senhor’. Não posso ser cristão, pois adorar um único Deus é essencial à minha religião!”. Da mesma forma, quando os pagãos veem um cristianismo adulterado, eles dizem: “O quê? Isso é cristianismo?”. E não o aceitam. No entanto, creio que quando o evangelho é expurgado de toda forma de rudimentos do mundo (Cl. 2.8), é purificado de toda impureza e é apresentado em toda a sua simplicidade, ele não será rejeitado. E, digo mais uma vez, falando como homem, o evangelho poderia ter uma repercussão muito maior se fosse pregado com simplicidade, e não com o padrão diluído e distorcido como tem sido proclamado. Se quiserem ver pecadores salvos, se quiserem ver os eleitos de Deus reunidos: “Mantenham o padrão das sãs palavras que de mim ouviste com fé e com o amor que está em Cristo Jesus.”.

III. E agora, brevemente, em terceiro lugar, QUERO ADVERTI-LOS SOBRE DOIS PERIGOS.

O primeiro é que você será tentado, de todas as formas, a abandonar o padrão das sãs palavras que defende por conta da oposição que irá enfrentar. Não vou fazer suposições quanto a perseguições pessoais, embora saiba que algumas pessoas aqui têm de suportar esse tipo de coisa de seus cônjuges incrédulos, ou algo do gênero. No entanto, de certa forma, todos aqueles que defendem a verdade, sofrerão algum tipo de perseguição verbal. Vocês serão motivo de chacota, a doutrina que defendem será ridicularizada e exibida de forma grotesca. Zombarão da sua fé e, muitas vezes, vocês serão tentados a dizer: “mas não acredito nisso”, embora acredite. Ou se não disserem abertamente, às vezes, acabarão mudando de assunto, pois não será fácil aguentar a zombaria e o escárnio da sabedoria mundana. Ah, meus amados, permitam-me preveni-los contra esse tipo de perseguição. “Mantenham o padrão das sãs palavras” mesmo em meio à zombaria. 

Contudo, seu maior obstáculo será uma espécie de tentativa sutil e astuta de perverter sua fé, fazendo-os pensar que sua doutrina é igual àquela a que vocês se opõem. O inimigo tentará persuadi-los a acreditar que aquilo que ele diz é totalmente inofensivo, mesmo sendo o oposto do que vocês defendem, e lhes dirá: “Você não quer gerar controvérsia com sua opinião, mas podemos arranjar um meio de nos entender. Você sabe como gostamos de ser considerados liberais! O maior orgulho do mundo é ser chamado de liberal, e alguns de nós preferiria morrer a ser chamado de intolerante ou antinomiano”. Por isso, eu lhes digo, não caiam na conversa dessa gente que está pronta a subverter sua fé, não com um ataque direto, mas minando insidiosamente cada doutrina, dizendo o que significa ou não, enquanto tentam derrubar os castelos e fortalezas com os quais Deus tem guardado a Sua verdade e a Sua igreja.

IV. E, por último, quero lhes falar sobre OS GRANDES ALICERCES SOBRE OS QUAIS DEVEM MANTER A VERDADE DO EVANGELHO.

Se me permitem mencionar uma ou duas coisas antes de prosseguir, devo lhes dizer que, em primeiro lugar, se quiserem manter a verdade, procurem compreendê-la. Ninguém pode defender uma coisa que não compreenda bem. Nunca tive a intenção de que vocês tivessem a fé daquele trabalhador a quem perguntaram no que ele acreditava, e ele respondeu que acreditava no mesmo que a igreja acreditava. “Bem”, disseram, “e no que é que a igreja acredita?”. Ele respondeu que a igreja acreditava na mesma coisa que ele acreditava e que ele acreditava na mesma coisa que a igreja acreditava, e aí por diante, num círculo sem fim. Não queremos que vocês tenham esse tipo de fé. Talvez essa seja uma fé persistente, obstinada, mas é uma fé sem sentido. Queremos que vocês entendam as coisas, que tenham verdadeiro conhecimento sobre elas. A razão pela qual muitas pessoas trocam a verdade pelo erro é porque elas realmente não entendem a verdade. Nove em cada dez casos é porque não aceitam a verdade com mente esclarecida. 

Pais, gostaria de exortá-los a dar a seus filhos, na medida do possível, instruções sólidas sobre as grandes doutrinas do evangelho de Cristo. Creio que aquilo que Irving disse certa vez seja uma grande verdade. Ele disse: “Nesta época, muitos se gabam e se vangloriam, achando que estão em condição nobre e elevada, só porque têm escola dominical, escola britânica e todo tipo de escola para jovens. Mas vou lhes dizer uma coisa”, disse ele, “por mais filantrópicas e maravilhosas que sejam, elas são um emblema da sua desgraça, pois mostram que a sua pátria não é uma pátria onde os pais instruem os filhos em casa. Elas mostram que há carência de instrução paterna; e, apesar de serem abençoadas, as escolas dominicais são indício de que alguma coisa está errada, pois, se todos nós ensinássemos nossos filhos, não haveria necessidade de estranhos dizerem a eles: “Conheçam o Senhor.”.

Espero que vocês nunca abandonem aquele excelente hábito puritano de ensinar o catecismo a seus filhos em casa. Qualquer pai ou mãe que entregue seus filhos inteiramente ao ensino de outra pessoa comete um grande erro. Não há professor que possa isentar os pais daquilo que eles mesmos devem fazer. O papel do professor é de um assistente, nunca de um substituto. Ensinem seus filhos, tragam de volta os velhos catecismos, pois, no final das contas, eles são meios abençoados de instrução, e a próxima geração será muito melhor que a anterior, pois esta é a razão pela qual muitos de vocês são fracos na fé: quando jovens, não foram ensinados sobre as grandes verdades do evangelho de Cristo. Se tivessem sido, seriam tão instruídos, fundamentados e firmes na fé, que nada poderia demovê-los dela. Por isso, eu lhes suplico, compreendam a verdade, e vocês estarão muito mais aptos a se manterem firmes nela.

E, também, acima de outras coisas, se quiserem manter a verdade, orem por isso. A forma correta de compreender uma doutrina é orar até compreendê-la. Um antigo teólogo dizia: “Não me lembro de muitas coisas que aprendi na casa de Deus, mas nunca me esqueço das coisas que aprendi em meu quarto.”. Aquilo que alguém aprende quando está de joelhos, com a Bíblia aberta, jamais esquecerá. Ora, você já dobrou os joelhos e disse: “Desvenda os meus olhos, para que eu contemple as maravilhas da tua lei.” (Sl. 119.18)? Se já viu tais maravilhas, você nunca as esquecerá. Aquele que ora para chegar à verdade, nunca será assaltado pelo diabo, mesmo que ele se disfarce em anjo de luz (2Co 11.14). Ore para chegar à verdade.

Entretanto, temos aqui os dois alicerces que recebemos: a fé e o amor. Se querem manter a verdade, coloquem sua fé em Jesus Cristo e tenham ardente amor por Ele.

Creia na verdade. Não finja crer, creia mesmo. E, aquele que crê, e coloca sua fé primeiramente em Jesus Cristo, e em tudo o que Cristo diz, provavelmente nunca a deixará. Ora, a maioria de nós não tem uma fé inabalável. Fingimos ter, mas nossa fé não é realmente aquela de todo coração e de toda alma, com todo poder e toda força — não é aquela “fé que está em Cristo Jesus”, pois se fosse, poderiam vir tormentas e tribulações, e, como Lutero, não iríamos vacilar diante da perseguição, iríamos permanecer firmes no dia mau, tendo nossa fé firmada na rocha.

O segundo alicerce é o amor. Ame a Cristo, e ame a verdade de Cristo, porque é a verdade de Cristo, e pelo amor de Cristo. E, se você ama a verdade, você nunca a deixará. É muito difícil alguém ser afastado da verdade que ama. Ele diz: “Não vou discutir sobre isso, não vou abandonar aquilo em que acredito, faz parte da minha vida, faz parte de mim, está na minha própria natureza; e, mesmo que me digam que o pão não é pão, e eu não possa provar quer seja, mesmo assim digo que é, pois é para mim, e mata a minha fome. Se me disserem que a água daquele rio não é pura; e eu não possa provar que seja, ainda assim vou e bebo dela, e descubro que é o rio da água da vida para minha alma.”. Alguém pode me dizer que o meu evangelho não é verdadeiro: só que ele me consola e me ajuda nas minhas tribulações, me ajuda a vencer o pecado e a refrear as minhas paixões, e me leva para mais perto de Deus. E, se o meu evangelho não é verdadeiro, eu me pergunto que tipo de coisa é a verdade. O meu evangelho é verdadeiro, e não posso imaginar que outro evangelho possa produzir efeitos melhores. O melhor a fazer é crer na Palavra, crer de tal forma que o inimigo não possa afastá-lo dela. Ele poderá tentar, mas você dirá:

Em meio à tentação aguda e persistente

Minha alma sempre voa para o mesmo abrigo

A fé é minha âncora, firme e resistente

Quando a tempestade sopra e no mar há perigo.

Portanto, cristão, agarre-se “à fé e ao amor que estão em Cristo Jesus” — dois alicerces benditos para compreendermos a verdade.

Agora, meus irmãos e irmãs, oro para que meu Mestre os faça ver a importância daquilo que eu disse. Talvez neste momento vocês não achem isso importante, principalmente os mais jovens; mas aqueles que são pais poderão lhes dizer que, quanto mais velhos e mais vividos, melhor compreenderão o valor da verdade. Talvez, em sua juventude, eles não tenham sido tão radicais a esse respeito, mas agora são muito conservadores. Passamos a ser conservadores tão logo passamos a crer na verdade, retendo-a, sem deixá-la escapar. Creio que o principal problema de nossos dias seja que, tentando ser liberais, acabamos deixando a verdade de lado. 

Há algum tempo deparei-me com o caso de um eminente ministro do evangelho, um irmão a quem respeito e estimo, que pregou um sermão com base no texto “julgai todas as coisas” (1Ts 5.21). No entanto, a forma como o texto foi tratado fez com que um jovem cristão que ali estava, e que era declaradamente professo, fosse para casa e adquirisse alguns livros não cristãos. O resultado foi que aquele jovem abandonou completamente sua fé, seus valores cristãos e tudo aquilo que antes acreditava ser verdade. Por isso, jovens cristãos, lancem a âncora agora mesmo e, aconteça o que acontecer, agarrem-se à verdade; pois só assim vocês poderão “julgar todas as coisas”. Mas, lembrem-se, quando fizerem isso, não se esqueçam de “reter aquilo que é bom”. Não “julguem todas as coisas”, deixando de lado o que é bom.

E, para aqueles que não conhecem o Senhor: se um dia forem salvos, provavelmente o serão sob um ministério puro do evangelho. Portanto, há uma lição para vocês também. Frequentem um lugar onde o evangelho é realmente pregado.

Portanto, eu insisto: a forma mais plausível de receber a graça de Deus é crendo nas Suas verdades. Nunca se oponha às doutrinas de Deus, aceite-as.Tenho uma coisa a dizer-te, pecador: se em teu coração puderes dizer “creio que o evangelho de Deus é um evangelho glorioso”, não estás longe de outras coisas mais. Se puderes dizer: "Eu me submeto a todas as Suas exigências, e creio que Deus é justo em me destruir, e, se Ele me salvar, será exclusivamente por Sua misericórdia soberana", então, pecador, há grande esperança para ti; avançaste na caminhada para o céu. E se puderes fazer só mais uma coisa e dizer: "Ainda que eu morra, confio nEle"; se puderes chegar à cruz de Cristo, e dizer: "Jesus, eu amo o Teu evangelho e amo a Tua verdade; se perecer, perecerei crendo em toda a Tua verdade, perecerei segurando a Tua cruz; se morrer, morrerei reconhecendo que Tu és um Deus justo e gracioso, e mesmo no meu pobre caminhar, mantenho firme o padrão das sãs palavras", eu te digo que Deus jamais te condenará. Se realmente crês em Jesus Cristo e te apegas firmemente às Suas palavras, Ele olhará para ti com amor e dirá: "Pobre alma! Mesmo não sabendo que estas verdades são suas, ele as considera preciosas; mesmo não ousando esperar que lhe pertençam, ele lutará por elas; mesmo não sabendo que é realmente um soldado da cruz, escolhido por mim antes do início dos tempos, vejam o quanto se esforça por mim". E, então, Ele te dirá: "Tu amas as coisas que pensas não serem tuas — farei com que, pela minha graça, te regozijes nelas como verdadeiramente tuas. Tu amas a eleição, embora penses que não és eleito — esta é uma evidência de que és meu". "Crê no Senhor Jesus Cristo, sê batizado e serás salvo."

E, assim, meus irmãos, eu lhes peço que permaneçam firmes. Se minhas lágrimas, meus joelhos dobrados, meus gritos, sim, se meu próprio sangue pudesse persuadi-los a colocar em seu coração o que eu disse nesta manhã, aqui haveria lágrimas, gritos e sangue; se, pelo menos, eu pudesse fazer com que todos vocês se mantivessem firmes nestes tempos maus e perigosos. Mantenham-se firmes, com a tenacidade da mão moribunda do marinheiro que está afundando — "Mantenham", eu imploro, "o padrão das sãs palavras que ouviste de mim, na fé e no amor que há em Cristo Jesus."


Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza


(1) Sheerness, pequena vila portuária na Ilha de Sheppey, Inglaterra


quarta-feira, 24 de julho de 2024

A Alma Desfalecida Revivida

                                                     Sermão nº 3510

Publicado na quinta-feira, 4 de maio de 1916

Ministrado por C. H. Spurgeon

no Tabernáculo Metropolitano, Newington, Londres, Inglaterra


“Quando, dentro de mim, desfalecia a minha alma, eu me lembrei do Senhor.” — Jonas 2.7

Quando o homem foi criado, não havia o temor de que ele se esquecesse de Deus, pois seu maior prazer e privilégio era ter comunhão com seu Criador. “O Senhor Deus andava no jardim pela viração do dia” (Gn 3.8) e Adão tinha a regalia de manter comunhão com Ele, talvez até mais íntima do que a que tinham os anjos no céu. Mas o encanto dessa harmonia sagrada foi rudemente quebrado pela desobediência do homem e sua terrível queda. Desde que nossos primeiros pais provaram do fruto proibido, o qual trouxe a morte e toda sorte de calamidades ao mundo, sua raça mortal está naturalmente inclinada a se esquecer de Deus. As tendências malignas da carne e do sangue tornaram impossível persuadir o homem a se lembrar do seu Criador. A queixa de Deus contra os judeus é uma verdadeira acusação contra toda a família humana: “Ouvi, ó céus, e dá ouvidos, ó terra, porque o Senhor é quem fala: Criei filhos e os engrandeci, mas eles estão revoltados contra mim. O boi conhece o seu possuidor, e o jumento, o dono da sua manjedoura; mas Israel não tem conhecimento, o meu povo não entende.” (Isaías 1.2-3). O homem é insensato: ele foge do bem maior. O homem é perverso: ele dá as costas para a santidade suprema. O homem é mundano: ele se esquece do reino de Deus e do mundo por vir. O homem é obstinado: ele segue as suas próprias imaginações vãs e, com rebeldia obstinada, opõe-se a seu Deus, para que possa seguir seu próprio caminho e satisfazer suas paixões desenfreadas.

Para convencer um homem de seus erros, refreá-lo das suas atividades pecaminosas e reconduzi-lo às veredas da justiça — quase sempre é preciso que surjam problemas terríveis e profunda aflição. É bem verdade que algumas pessoas são conduzidas a Deus por meios mais brandos; elas são atraídas por laços delicados, mas poderosos. Mesmo assim, ainda resta uma classe bem maior de pessoas, sobre as quais cordões de seda não exerceriam nenhuma influência. Elas precisam ser tratadas com muita severidade, não com brandura. Seus corações não podem ser abertos com uma chave qualquer; será preciso um pé-de-cabra ou até mesmo um aríete para dar um golpe poderoso. Alguns corações jamais serão atraídos para Deus, e para a verdade, a não ser pela tormenta. De espada em punho, a lei de Deus precisa escalar as muralhas. Com um brado estrondoso, Sua Palavra precisa derribar os muros da sua autoconfiança e abrir brecha após brecha nos bastiões do seu orgulho e, mesmo então, eles lutarão e não cederão, até que, levados a um extremo impressionante, percebam que precisam se render de uma vez por todas, ou estarão perdidos para sempre. É com essas pessoas que eu gostaria de tratar neste momento. Há quem tenha se esquecido de Deus depois de tê-lo conhecido, e é provável que só volte a Ele depois de enfrentar grandes problemas. Há também quem nunca O conheceu, e que nunca irá buscá-lo, a menos que seja levado ao extremo pela calamidade, tal como aconteceu com o filho pródigo, que foi obrigado a voltar à casa do pai devido à fome assoladora na região onde habitava. Assim sendo, em primeiro lugar, vou lidar com — 

I. OS DESVIADOS

Entretanto, antes de começar, permitam-me descrever em mais detalhes as pessoas às quais quero me dirigir. Não é necessário citar nomes. Será suficiente retratarmos seu caráter e descrevermos sua conduta. Há algumas pessoas que, anos atrás, frequentavam igrejas cristãs, mas, aos poucos, foram se afastando e, por isso, sua carreira foi definhando, e é incrível que ainda não tenham perecido completamente em seu pecado. No início, parecia que vocês corriam bem e, durante algum tempo, continuaram no caminho; mas agora, onde estão? Bem, acontece que neste instante vocês estão na casa de Deus, e eu creio que o momento de Deus chegou, quando Ele o encontrará e o trará de volta. O que falaremos sobre Jonas, peço que apliquem a vocês mesmos. Se a carapuça servir, usem-na, mesmo que seja uma carapuça de tolo: usem-na até que sintam vergonha de si mesmos e sejam levados a confessar sua loucura diante do Deus que pode removê-la, e torná-los sábios para a salvação.

 Observem, caros amigos, que, embora Jonas tenha se lembrado do Senhor, ele não o fez até estar dentro do ventre da baleia, e até sua alma estar desfalecida dentro dele. Ele não se lembrou do Senhor enquanto descia para Jope para encontrar um navio, nem quando estava a bordo desse navio. Seu Mestre tinha dito a ele: “Jonas, vá até Nínive“, mas Jonas era um cara muito cabeçudo e determinado. Embora fosse um verdadeiro servo de Deus, e profeta, ainda assim ele fugiu da presença do Senhor. Ele resolveu consigo mesmo: para Nínive é que eu não vou. Ele podia prever que não teria nenhuma honra pessoal nessa jornada, sua reputação continuaria a mesma, não haveria deferência especial à sua pessoa por parte daqueles orgulhosos assírios, por isso, desafiando francamente a ordem divina, ele desceu para Jope, para tomar um navio e fugir da presença de Deus. Ele pagou a passagem, embarcou e foi navegando rumo a Társis, tudo isso sem sequer pensar em Deus. 

É provável que hoje tenhamos aqui alguma mulher que era membro de uma igreja cristã, mas se casou com um descrente. Depois disso, ela acabou se afastando e deixando a membresia da igreja. As lojas estavam abertas aos domingos, havia festa em sua casa ou, então, uma viagem para o interior. Tudo lhe parecia muito agradável. A inquietação sentida a princípio logo cedeu a hábitos familiares, até que, depois de alguns anos, essa mulher, que parecia uma verdadeira crente em Cristo, agora leva uma vida totalmente descuidada e indiferente, para não dizer profana, raramente pensando em Deus. Talvez ela não tenha deixado de orar e, com certeza, não se tornou inimiga de Cristo ou deixou de amar Seu povo. Contudo, Deus foi esquecido. Enquanto seus negócios prosperavam, seu marido gozava de boa saúde e o mundo parecia sorrir para ela, Deus não fez parte dos seus pensamentos. 

Será que estou errado em supor que haja também algum homem que, em sua juventude, foi um grande orador, excelente professor de Escola Dominical e companheiro dos que temem o Senhor? No entanto, depois de algum tempo, pareceu-lhe haver uma forma mais rápida de ganhar dinheiro do que os meios comuns de trabalho honesto ou simples comércio. Assim, ele se meteu em especulações que logo consumiram as partes essenciais da sua vida religiosa. Seus novos projetos lhe trouxeram novas companhias, as quais o fizeram reprimir suas antigas convicções; e, como não queria ser hipócrita, acabou abandonando por completo a sua fé. Talvez tenham se passado meses desde que ele veio a um culto pela última vez e, mesmo agora, ele prefere não ser reconhecido, pois veio apenas porque um amigo do interior disse que gostaria de conhecer o local e ouvir o pregador. 

Ah, meus caros, não é estranho que, se vocês são filhos de Deus, tenham andado de forma tão contrária a Ele? O mesmo aconteceu com Jonas. Posso, então, expor o caso dele para encorajá-los? Além disso, espero que vocês apliquem esta amarga repreensão à sua própria alma e sejam levados a fazer o que Jonas fez. 

Enquanto o navio navegava calmamente sobre o mar, Jonas se esqueceu do seu Deus. Ele poderia ser confundido com qualquer pagão a bordo. Era tão ímpio quanto eles. No entanto, havia uma centelha de fogo entre as brasas, a qual, no devido tempo, Deus transformou em chama. Fico feliz por vocês, se a melhor parte da experiência de Jonas coincidir com as suas.

    Tamanho foi o esquecimento de Jonas que ele parece não ter pensado em seu Deus em momento algum enquanto o temporal se alastrava, os vagalhões rolavam e o navio era açoitado pela tempestade. Os pobres marinheiros pagãos estavam todos de joelhos, clamando por misericórdia, mas Jonas estava dormindo. Até mesmo o supersticioso capitão ficou espantado com a sua apatia: “Que se passa contigo, dorminhoco? Não te importas que todos pereçamos?”. Ele foi ao porão e deu uma bronca em Jonas, perguntando-lhe como ele podia estar dormindo enquanto os passageiros e a tripulação estavam clamando. “Levanta-te”, disse ele, “e invoca o teu deus”. Até para atentar para o perigo e cumprir sua obrigação, Jonas teve que levar uma chamada de um pagão! 

Ora, talvez haja aqui também alguém que esteja com uma porção de problemas. Seu marido morreu? Você é uma mulher sozinha que sustenta sua família? Ou é um viúvo que olha para os filhos com piedade, quando antes os olhava com orgulho? É possível, ainda, que suas tribulações sejam de outra natureza. Seus negócios vão mal. Ao invés de grandes lucros, você tem tido perdas constantes; e até seu pequeno capital já foi dissipado. Mesmo assim, durante todo esse tempo, você não tem pensado em Deus. Talvez tenha perdido alguns filhos, mas ainda não se lembra de Deus. Será assim mesmo, que o Senhor o ama e, porque o ama, Ele o castiga? Ouça o que lhe digo, você continuará sofrendo uma perda atrás da outra, até perder tudo o que tem e tudo o que lhe é mais caro, e pode até ser levado às portas da morte, mas, no final, Deus o salvará. Se você já foi Dele, Ele jamais o deixará mergulhar no inferno; contudo, sua jornada para o céu não será fácil. Você será salvo, mas como que através do fogo (1Co 3.15). Será salvo como que por um triz — por um fio, e será terrivelmente doloroso. Ó, amigo, desejo que você se volte para Deus enquanto Ele ainda o está fustigando com brandura, pois saiba que se não for com a vara, será com o chicote, e se o chicote não servir, será com a faca, e se a faca não funcionar, será com a espada, e aí você sentirá, pois, tão certo quanto Deus é Deus, Ele nunca perderá um de Seus filhos, e Ele o fará em pedaços, por assim dizer, mas salvará sua alma. Ele enfraquecerá o seu corpo com doenças e o fará se jogar no leito da angústia, mas Ele o trará de volta. Queira Deus que a graça o faça voltar por meios mais brandos, antes que as provações se tornem piores.

E, assim, Jonas não pensa em seu Deus durante todo esse tempo. Por fim, o barco começa a ranger e parece a ponto de se despedaçar. Os marinheiros lançam sortes e ela recai sobre Jonas. Ele vai ser lançado ao mar. Nesse momento, um par de mandíbulas enormes se abre, se fecha e o engole. “Onde será que estou?”, diz Jonas, enquanto é levado para as profundezas pelo peixe monstruoso, as algas marinhas começam a se enrolar em sua cabeça e sua vida só é preservada por um milagre. Então, e só então, Jonas se lembra do seu Deus. “Quando, dentro de mim, desfalecia a minha alma”. Ora, por que sua alma desfalecia dentro dele? Não foi porque ele pensou: “Que situação! Nunca vou sair dessa. Como é que não me afoguei? Como essas mandíbulas enormes não me despedaçaram? Que coisa horrível! Logo, logo, vou morrer nesta horrível prisão.”? Ouso dizer que ele pensou que nunca alguém estivera em tal situação; que nunca alguém continuara vivo dentro de um peixe. E como era horrível sentir apenas um frio intenso à sua volta. Ao invés de roupas, ele tinha algas marinhas envoltas na cabeça. Seu coração palpitava e sua cabeça doía. Sem ânimo, sem luz; sem uma voz amiga; sem socorro, sem ajuda; longe da terra seca, no meio das profundezas, sem ninguém que se compadecesse de uma situação tão esquisita como aquela.

Ora, quando um filho de Deus se desvia do caminho, não é raro que Deus o leve a uma situação como essa, em condições em que ele não pode ajudar a si mesmo; desamparado e sem amigos, sem alguém para consolá-lo e aliviar seu sofrimento. Entretanto, um pensamento sombrio sempre irá assombrá-lo: “A culpa é toda minha. Não fui eu mesmo quem causou tudo isso?”. Que frutos pode esperar uma mulher que deixa sua família, abandona seu lar e trai seu gentil e terno marido? Quando estiver a ponto de morrer de fome, o vento estiver soprando por entre suas roupas rasgadas, seu rosto estiver inchado de tanto chorar e sua alma cheia de angústia, ela só terá a si mesma para culpar e dizer: “A culpa é toda minha; quem me dera nunca tivesse deixado meu lar, por mais humilde que fosse; quem me dera nunca tivesse abandonado meu marido, que me amava e me protegia, mesmo que às vezes pudesse ser rude! Ah, se eu tivesse sido mais atenciosa e menos insatisfeita!”. A reflexão tardia sobre o pecado — creio que chamam a isso de remorso. Quando a vergonha por seus pecados tomou conta de Jonas foi que ele pensou em seu Deus.

Ah! Como o Senhor Deus é misericordioso em permitir que pensemos nEle e nos voltemos para Ele quando estamos em condição tão miserável! Certa vez um comerciante disse a um freguês que não era muito grato pelas condições especiais que ele lhe oferecia: “Sei porque está aqui. Você rodou a cidade toda atrás do que queria, mas não encontrou. Agora está de volta, mas não lhe dei nenhum motivo para ter ido embora; por isso, não vou lhe atender.” Não é assim que o Senhor fala conosco. Ele não Se ressente da nossa ingratidão. “Meu filho”, diz Ele, “você foi embora e gastou todo o seu dinheiro; você se alimentou da comida dos porcos; está todo sujo, malcheiroso e maltrapilho, mas ainda é meu filho, e eu o amo”. Sem palavras de recriminação ou olhar de desdém, assim que o pobre pecador volta para casa, o Pai o abraça e lhe dá um beijo de perdão. “Lembro-me bem de ti”, diz Ele, “encobri teus pecados como uma nuvem, e como uma nuvem espessa as tuas iniquidades”. Ora, se há alguém aqui que tenha se desviado do caminho — e sei que há vários — só posso esperar que Deus o leve à mesma situação aflitiva de Jonas. Não sentirei pena de você se Ele o fizer; prefiro ser grato a Ele por tê-lo afligido, pois só assim saberei que Ele ainda o ama. No entanto, quando estiver em situação desesperadora, faça como Jonas — pense no seu Deus. 

Alguém aqui faz alguma objeção? Você acha que pensar em Deus o torna uma pessoa pior? Pense bem, então. Pense que um dia você foi Seu filho, você se desviou, mas Ele o descobriu e sabe onde está. Jonas sentiu que Deus sabia onde ele estava, pois enviou o peixe. Deus sabe por onde você anda, amigo pecador; Ele conhece a situação em que se encontra. Lembre-se de que você ainda está vivo! É maravilhoso que Ele ainda lhe permita ouvir Sua voz dizendo: “Volte, pecador, volte!”. Deus é imutável, Ele não pode mudar. Sua aliança é segura, Ele não irá alterá-la. Se Ele o amou uma vez, Ele ainda o ama. “Se o comprei, Eu o terei.”. Volte para Ele, então. Ele ainda é seu pai — volte! Volte! No entanto, caro ouvinte, talvez você não queira ser Seu filho! Talvez tenha sido hipócrita e feito sua profissão de fé só para se sentir bem. Você se afastou da companhia daqueles que temem ao Senhor porque nunca foi realmente convertido. Se for assim, que a misericórdia do Senhor para com os pecadores o leve a clamar a Ele. E que o martelo da Sua Palavra o faça em pedaços. E que Ele o salve e seja extremamente honrado na sua salvação.

    Muito embora eu tenha tentado atingir os afastados, é mais provável que não tenha conseguido, por melhor que tenha sido minha intenção. Parece horrível que alguns aqui, que conhecem o caminho da esperança, possam perecer em seus pecados! Alguns foram acalentados por joelhos piedosos. Se aqueles que estão no céu agora, olhando para vocês, pudessem chorar, vocês veriam suas lágrimas caindo sobre suas testas. Vocês sabem que houve um tempo em que a esperança de um mundo melhor lhes proporcionava algum tipo de conforto e alegria. De qualquer forma, não creio que naquela época, vocês fossem fingidos; vocês realmente se consideravam pecadores. Pela compaixão do Altíssimo, pelo amor de Deus, rogo-lhes que parem e pensem! Não bebam o cálice dos demônios depois de terem bebido o cálice do Senhor. Não entreguem à condenação a alma que antes parecia oferecer oferta suave por sua salvação. A vida eterna é um prêmio muito valioso para se brincar com ele. Que o Espírito de Deus faça o que eu não posso fazer. Que Ele envie esta mensagem às pessoas a quem ela se destina. 

E, agora, em segundo lugar, temos que lidar com os negligentes, os imprudentes, os dissolutos:

II. AQUELES QUE NUNCA FORAM DESPERTOS — na avaliação moral ou imoral do mundo. Jonas não se lembrou do seu Deus até sua alma estar desfalecida dentro dele; e o pecador negligente, via de regra, nunca se lembra de Deus até estar sob a opressão da lei, ou a aflição da dor e da punição; até sua alma estar prestes a desfalecer dentro dele. Agora, espero que alguns de vocês sejam levados a ter esse sentimento.

Que tipo de desfalecimento geralmente sentem as pessoas que estão sob a disciplina salvadora do Espírito de Deus?

Há o desfalecimento causado pelo horror da sua presente condição. Imagine uma pessoa que se deita à beira de um penhasco e acaba pegando no sono. De repente ela desperta e percebe que se movimentou durante o sono e está a um palmo do precipício; quando olha lá para baixo, vê as rochas escarpadas e o mar agitado. Como será que ficam seus nervos quando ela percebe onde está e o risco que corre? Da mesma forma, muitos pecadores abrem os olhos para a situação perigosa em que se encontram. De repente, eles acordam e descobrem que estão no limiar da ira eterna, diante de um Deus irado que está brandindo uma espada terrível, determinado a cravá-la em seu coração. Cada pessoa não convertida neste recinto está sobre uma prancha que paira sobre a boca do inferno; a prancha está podre; está dependurada apenas por uma corda sobre as mandíbulas da perdição, e os fios da corda podem se romper a qualquer instante. Se alguém reconhece a realidade da sua situação, não é de admirar que desfaleça.

Além disso, o desfalecimento pode surgir do pavor de horrores iminentes. Será possível imaginar o desespero dos pobres passageiros a bordo daquele navio que recentemente naufragou em mar aberto, ante a perspectiva de serem tragados vivos, sem saber para onde iriam? Não deve ter sido fácil manter o ânimo quando sua condenação parecia tão próxima. Assim, quando Deus desperta a alma com o som de uma tempestade, a alma olha para fora e vê o oceano da ira divina prestes a engoli-la. Os gritos das almas perdidas a apavora e ela diz para si mesma: “Logo vou me misturar a elas, minha voz se juntará à sua dolorosa companhia; em poucas horas uma espada flamejante estará em meu calcanhar e serei expulsa da presença de Deus”. Então, a alma alarmada desfalece ante a ideia do julgamento que está por vir.

A alma do pecador desfalece, ainda, devido à sensação de fraqueza. Parece que a ideia que toma conta da pessoa é: “não tenho como evitar essa tragédia”. Sobre o pecador desperto surge tal sensação. Quando um pecador não conhece a si mesmo, pensa que ser salvo é a coisa mais fácil do mundo. Ele supõe que ter a paz de Cristo é tão fácil quanto um estalar de dedos. No entanto, quando Deus começa a trabalhar na sua vida, ele diz: “Eu queria acreditar, mas não posso.”, e então clama: “Ó, Deus, creio que é tão impossível ter fé quanto guardar a Tua lei, a menos que Tu me ajudes!”. Antes, ele achava que poderia reformar a si mesmo e se tornar tão santo quanto um anjo; mas, agora, ele sabe que não pode fazer nada, por isso, clama em sua fraqueza: “Ó, Deus, que criatura pobre, inútil e impotente eu sou!”.

Às vezes, o desfalecimento virá de tal forma que posso dizer que será uma sensação horrível. Lembro-me bem de quando tive essa sensação. Pensei em desistir de orar, pois me parecia uma coisa inútil; mas eu não podia deixar de orar; eu precisava orar, mas para mim era como se não tivesse orado. Achei que nunca mais ia querer ouvir o evangelho; no entanto, havia um fascínio em sua pregação que me fazia querer ouvi-lo. Eu ouvia dizer que Cristo era gracioso para com os pecadores, mas não conseguia acreditar que fosse gracioso para comigo. Pouco importava se eu ouvisse uma promessa ou uma ameaça. Eu gostava mais das ameaças. As ameaças pareciam ser exatamente o que eu merecia e me provocavam algum tipo de reação. No entanto, quando ouvia uma promessa, eu estremecia com a sensação sombria de que não era útil para mim; eu já me sentia condenado. As dores do inferno tomavam conta de mim, tão torturada ficava minha alma com os presságios de uma condenação sem fim. Outro dia, ouvi falar de um jovem ministro que abandonou sua igreja, e orei por ele. Qual, vocês acham, foi minha petição? Pedi para que Deus o fizesse sentir o peso da Sua mão, pois não posso imaginar que alguém que já sentiu o peso da mão de Deus possa, depois disso, duvidar do Seu ser, da Sua soberania ou do Seu poder. Creiam-me, irmãos, a fim de que algumas pessoas abandonem seu amor pelo pecado, sejam purificadas da sua própria justiça e sejam levadas a depender somente Dele, Deus as leva a sentir uma angústia tão indescritível, que elas não poderiam tolerá-la por muito tempo sem se sentir absolutamente insanas. Alguns não podem ser atraídos de outra forma. Posso estar me dirigindo a tais pessoas neste momento. Sinceramente, espero que sim. Vocês podem sentir a mão de Deus. Sentem todo o seu peso e, sob ele, são esmagados como uma mariposa é esmagada pelos dedos de uma pessoa. Assim sendo, tenho uma mensagem de Deus para vocês. Quando Jonas estava na mesma situação, ele se lembrou de seu Deus. Diga-me, pobre coração, “O que dizes — o que dizes para te lembrares do teu Deus?”. 

O caso que vou descrever agora não é exatamente o de John Newton1, mas é da sua experiência que tiro minha ilustração. Havia um rapaz que tinha um pai muito bom, um verdadeiro crente. Quando ficou mais velho, ele não gostava da sua profissão, por isso, disse ao pai: “Embora esteja sob sua autoridade, pretendo seguir meu próprio caminho; outras pessoas se divertem e eu também quero me divertir, mas não posso fazer isso enquanto estiver debaixo do seu teto. Vou seguir meus sonhos.”. Ele se tornou marinheiro. Quando estava no mar, ele descobriu que nem tudo era como ele queria que fosse; o trabalho que tinha a fazer era muito diferente do que estava acostumado; mesmo assim, ele não desistiu. Quando chegaram ao primeiro porto, ele deu vazão às suas paixões. “Ah!”, disse ele, “Isso é que é vida! É muito melhor do que ficar na casa do meu pai e viver sob as rédeas da minha mãe. Cara, esse é o tipo de vida que eu quero!”. Ele embarcou novamente e, onde quer que o navio atracasse, o porto se tornava um escoadouro para seus vícios. Ele era um rapaz que raramente praguejava ou bebia e, quando voltava à Inglaterra, em geral, não falava mal da religião, nem dos escrúpulos de consciência do seu pai. Acontece que, certo dia, ele teve de enfrentar uma grande tormenta. Ele passou horas bombeando a água do navio e, quando parecia que ia terminar, começava tudo de novo, pois o navio estava prestes a naufragar, e todo mundo precisava dar duro durante muitas horas. As rajadas de vento eram fortes e a tempestade era tremenda. Por fim, eles entenderam que nada podia salvá-los; havia rochedos na costa e o navio ia dar contra eles! Ele se amarrou no mastro e flutuou a noite toda, e na seguinte, e na outra, quase sem esperança de se salvar. Durante esse tempo, ele teve alguns lampejos de consciência e não conseguiu deixar de pensar na sua mãe e no seu pai. Mas ele não se deixaria abater por tão pouco. Ele tinha o coração endurecido, e não ia desistir. Ele foi dar na praia, no meio de um povo selvagem. Eles cuidaram dele e lhe deram comida, embora sua refeição fosse bastante escassa. Então, começou a trabalhar como escravo. Seu senhor era muito duro com ele, e sua esposa era especialmente cruel. Ele comia muito pouco e era espancado com frequência. Mesmo assim, ele aguentava firme e esperava por dias melhores. No entanto, exausto e faminto, sua saúde física e mental começou a ficar cada vez mais fraca. Não era de admirar que a febre o tenha assaltado. Quem ele tinha para cuidar dele? Quem ele tinha para se importar com ele? Aquelas pessoas o tratavam como um cão e ninguém ligava para ele. Ele mal conseguia se mexer ou se mover. No meio da noite, em vão ele desejou um gole d’água; parecia que ia morrer de sede. Ele ergueu a voz, mas ninguém o atendeu. Não houve resposta ao seu apelo. Assim, ele pensou: “Ó, Deus, se eu pudesse voltar para a casa de meu pai!”. E foi assim que, quando chegou ao seu limite, é que ele pensou na sua casa.

    Ora, o que aconteceu com John Newton vai acontecer, e acontece, com muitos pecadores. Ele nunca voltaria para Deus; mas, no final, sentiu que não havia outro lugar para ir. Ele foi levado ao completo desespero. Nesse dilema, seu coração disse: “Ah! Que eu possa encontrar o Senhor!”. 

Vou lhes contar uma história. Uma porção de marinheiros ia para o mar. Quando estavam prestes a zarpar, o proprietário do navio lhes disse: “Esperem! Comprei um barco salva-vidas2. Ponham-no a bordo.”. Eles responderam: “Pra quê? Não precisamos disso. A gente não acredita nessas coisas. É só uma tranqueira moderna. Não sabemos como funciona e nunca vamos usá-lo.”. “Coloquem-no a bordo e deixem-no lá.”, disse o capitão. “Ora, capitão”, disse o contramestre, “é só um barco de nada, não é? Não consigo imaginar o que o proprietário quer colocando uma coisa dessas a bordo.”. E os velhos marujos, enquanto caminhavam pelo convés do navio, diziam: “Nunca vimos uma coisa dessas na vida! Imagina o velho Ben Bolt levando um treco desses a bordo! Não acredite em tais geringonças!”. Logo depois, uma brisa forte começou a soprar e se transformou num vendaval — num furacão — num perfeito tornado! Hora de descer o barco salva-vidas, capitão. “Não, não, bobagem!” Desça o barco salva-vidas! “Não, outros barcos saíram e, um após o outro, se romperam e emborcaram.”. Então, eles trouxeram mais um, e ele também não conseguiu enfrentar a tempestade. Lá foi ele, bem na crista das ondas — não aguentou e virou de ponta-cabeça. Para eles, estava tudo acabado! “O que faremos, capitão?”. “Contramestre, tente o barco salva-vidas”. 

Só então; quando todos os recursos se foram, quando todos os outros barcos foram lançados ao mar e quando o navio estava prestes a afundar, eles pegaram o barco salva-vidas. Que assim seja. Que o Senhor atire todos os barcos no mar. Que Deus Se agrade de destruir o seu navio; que Ele faça estremecer cada viga desse navio e faça você embarcar no barco salva-vidas. Receio que alguns aqui só aceitem este conselho quando estiverem no fundo do poço. Que haja, então, uma tormenta tal que os leve a aceitar a Cristo. Isso feito, não haverá mais tormentas a temer. Isso feito, por mais forte que seja o bramido da tempestade, você estará a salvo, pois Cristo estará no barco com você. 

Só mais duas ou três palavrinhas e eu termino. Deus Se agradou de dar o Seu Filho amado, o Seu único Filho, para morrer uma morte terrível, não por justos, mas por pecadores. Jesus Cristo veio ao mundo buscar e salvar aquele que estava perdido. Se você é um pecador, você é o tipo de pessoa que Cristo veio salvar. Se você é um perdido, você é o tipo de pessoa que Cristo veio buscar. Que a sua tristeza lhe sirva de conforto, pois é indicação de que você é o tipo de pessoa que Cristo veio abençoar. Que o seu desespero o livre do desespero, pois quando você se desespera é que há esperança para você. Quando você não puder fazer mais nada, Deus fará tudo. Quando estiver vazio de seus próprios conceitos, haverá lugar para Cristo entrar em seu coração. Quando estiver despido, as vestes de Cristo lhe serão fornecidas. Quando estiver faminto, o pão que desce do céu lhe será dado. Quando estiver com sede, a água da vida será sua. Que esse desespero, esse terror, esse alerta, esse desfalecimento, essa fraqueza, simplesmente o levem a dizer: “Sou aquele a quem Cristo chama para Si. Irei a Ele e, se perecer, perecerei somente ali.”. E, se você crer em Cristo, jamais perecerá, nem será arrebatado da Sua mão. Que você creia nEle, aqui e agora. Amém. 


Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza


NOTAS DO TRADUTOR:

1.  John Newton (1725-1807), pastor anglicano, autor do Hino Amazing Grace, o qual, antes de sua conversão, foi traficante de escravos. Sua história é contada por Brian Edwards no livro De Traficante de Escravos a Pregador, lançado no Brasil pela Editora Fiel.


2. O bote salva-vidas a que Spurgeon se refere foi criado por Maria Beasley (1836-1913). 

"Pouco se sabe sobre a inventora Maria Beasley, apenas que queria criar um bote salva-vidas mais resistente, à prova de fogo e compacto. Sua versão, lançada em 1884 em uma exposição de Nova Orleans, era mais fácil de dobrar e armazenar: até 1870, o bote era basicamente uma tábua de madeira."


(fonte: https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/noticia/2017/03/11-invencoes-importantes-que-foram-criadas-por-mulheres.html)