Sermão nº 29
Ministrado na manhã de domingo, 10 de junho de 1855, pelo
Rev. C. H. Spurgeon
em New Park Street Chapel, southwark
“Disse-lhe Judas, não o Iscariotes: Donde procede, Senhor, que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?” — João 14:22
Que Mestre bendito foi Jesus! Que familiaridade Ele permitiu que Seus discípulos tivessem com Ele! Mesmo sendo o grande e poderoso Senhor da vida e da glória, além de ser o homem de Nazaré, vejam como Ele fala a Seus discípulos, pescadores pobres e iletrados, como se fossem Seus iguais! Ele não era um dos seus dignatários, que se orgulhavam da própria dignidade — nem um daqueles religiosos cheios de formalidade, que se consideravam acima dos outros, como se de fato não fossem seus semelhantes. Ele fala a Seus discípulos como um pai a seus filhos — com mais carinho até do que um professor a seus alunos. Ele permite que eles Lhe façam perguntas simples e, ao invés de censurá-los por sua liberdade, Ele consente em responder a cada uma delas. Filipe pediu-lhe uma coisa que ninguém de bom senso, e que estivesse com Ele há tanto tempo, sequer pensaria em pedir. Ele disse: “Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta.” (João 14:8). Mas que estupidez! Como se Jesus pudesse mostrar o Pai, ou seja, mostrar Deus a Filipe! No entanto, Jesus gentilmente responde: “Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me tens conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai, como dizes tu: Mostra-nos o Pai? Não crês que eu estou no Pai e que o Pai está em mim?” (João 14:9,10). E aí vem Judas (não o Iscariotes) e também faz uma pergunta muito simples — algo que ele não precisava ter perguntado; e Jesus, ao invés de repreendê-lo, simplesmente muda de assunto e, com toda sabedoria, deixa a pergunta sem resposta, porque Seu silêncio o ensinaria muito mais do que qualquer explicação.
É preciso observar também como o Espírito Santo age de modo específico para que um homem bom não seja confundido com um perverso. Ele diz, “Judas (não o Iscariotes)”. Havia dois discípulos com o mesmo nome, Judas: o que traiu nosso Senhor e o que escreveu a epístola de Judas, o qual realmente tinha de ser chamado de Judas. Algum de nós, ao ler o nome Judas, poderia dizer: “Ah! Quem fez a pergunta foi aquele traidor do Judas Iscariotes!”. No entanto, o Espírito Santo não permitiria que tal engano fosse cometido. Isto mais uma vez nos ensina que não é sem sentido desejar que nosso nome passe para a posteridade. Todos devemos desejar ter um caráter imaculado; devemos querer que a promessa seja cumprida: “A memória do justo é abençoada” (Provérbios 10:7). Eu não gostaria que meu nome fosse confundido com o de um criminoso que se enforcou. Não gostaria que meu nome fosse escrito, nem mesmo por engano, no rol da infâmia. Por mais que agora eu possa ser mal interpretado, um dia se saberá o quanto tenho me esforçado pela glória do meu Mestre, e Deus dirá: “Judas (não o Iscariotes)”. Afinal, o homem não era um impostor.
Mas vamos deixar Judas de lado e passemos a examinar nosso texto. Nele há duas coisas: primeira, um fato importante; segunda, uma pergunta interessante, “Donde procede, Senhor, que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?”. Eis um fato e uma pergunta sobre ele.
I Assim, em primeiro lugar, vem UM GRANDE FATO: Jesus Se revela a Seu povo, mas não ao mundo. O fato está implícito na pergunta. E, mesmo que a Escritura não tivesse feito essa declaração, muitos de nós têm a Escritura gravada no seu coração — a Bíblia da experiência — a qual nos ensina que isso é verdade. Pergunte a qualquer cristão se, antes de ser regenerado, ele teve alguma manifestação particular e maravilhosa de Seu Senhor e Salvador Jesus Cristo como tem agora. Leia a biografia dos grandes santos da história e você encontrará registros de como Jesus Se agradou, de forma muito especial, em falar às suas almas, desvelando as maravilhas da Sua pessoa e deixando-os vislumbrar as glórias incomparáveis da Sua obra. Sim, para que suas almas se enchessem de felicidade a ponto de se imaginarem no céu, mesmo que, embora bem perto, ainda não estivessem lá — pois quando Jesus Se manifesta a Seu povo é o início do céu na terra, é um paraíso em embrião, é o começo da bem-aventurança do glorificado; sim, e será a consumação dessa bem-aventurança quando Jesus Se revelar perfeitamente ante os olhos admirados de todo o Seu povo e eles forem como Ele, e O virem como Ele é.
Portanto, nesta manhã, vamos falar algo a respeito dessa manifestação especial que Jesus concede a Seu povo, e somente a ele. Faremos quatro observações. Em primeiro lugar, falaremos alguma coisa sobre os favorecidos — “a nós”, “não ao mundo”. Em segundo lugar, sobre as ocasiões especiais — “que estás para”. Jesus não estava manifestando a Si mesmo naquele exato momento, mas “estava para” Se manifestar. Há ocasiões especiais. Em terceiro lugar, faremos algumas observações sobre essa maravilhosa manifestação — “estás para manifestar-te a nós e não ao mundo”. E, em quarto lugar, nos deteremos um pouco mais falando sobre os efeitos que essa manifestação produzirá na nossa alma.
1. Primeiramente, então, quem são as pessoas favorecidas a quem Jesus Cristo Se manifesta? “Donde procede, Senhor, que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?”. O texto parece indicar que as pessoas a quem Jesus Cristo Se manifesta de forma tão maravilhosa não pertencem ao mundo. Nesse caso, quem são elas? Tenho certeza de que seria difícil para você ou para mim distingui-las; por isso, vou usar um exemplo fictício e pedirei a algum espírito de um mundo desconhecido para indicar tais indivíduos. “Ó espírito! Eu te dou uma missão. Há um determinado número de pessoas neste mundo que não pertence a ele: vai, descobre-as, volta e dize-me o que encontraste.” Damos tempo ao espírito; ele voa pelo mundo afora e retorna. Ele diz: “Vi uma grande multidão; todos seguiam pelo mesmo caminho, com um único objetivo; eu os vi pisoteando uns aos outros na fúria da sua perseguição; eu os vi correndo atrás de alguma coisa que cada um desejava para si; mas, no meio da multidão, vi algumas pessoas marchando em sentido oposto e, em meio a muitas cotoveladas e forte oposição, iam exatamente na direção contrária. Vi escrito na testa daqueles que seguiam com a multidão a palavra ‘eu’; contudo observei que quem ia na direção contrária tinha inscrito acima das sobrancelhas: ‘Cristo’; e eu os ouvi dizendo para si mesmos: ‘Para nós o viver é Cristo, para nós o morrer é lucro’ (Fp 1.21). Observei aquelas pessoas, vi-as persistindo em seu caminho apesar de todo desafio, indo contra toda oposição. Fiquei me perguntando para onde iam e vi que adiante delas havia um postigo, onde estavam escritas as palavras: ‘Misericórdia para o principal dos pecadores’. Eu as vi entrar ali e as observei enquanto corriam ao longo dos muros da salvação e, acompanhando-as até o seu destino, eu as vi, finalmente, cruzar os braços na morte, fechar os olhos com tranquilidade, enquanto eu ouvia anjos cantando um réquiem e uma voz gritando: ‘Benditos aqueles que morrem no Senhor’. Com certeza, essas devem ser as pessoas que não são do mundo”. “Falaste bem, ó espírito, são elas. O que viste delas, ó espírito? Elas se reuniam e se congregavam, ou se misturavam com o resto da humanidade?”. “Ora”, disse ele, “notei que, uma vez por semana, elas se reuniam em certo lugar que chamavam a Casa de Deus; eu as ouvi entoando canções de louvor e ajoelhadas reverentemente, não só naquele lugar, mas também quando estavam sozinhas; testemunhei seus lamentos, suas lutas e suas agonias; sabia que eram pessoas de oração e amavam a Deus. Eu as vi em reuniões secretas, para dizer o que o Senhor tinha feito por suas almas; reparei que não eram encontradas entre os ímpios. Percebi que não entravam em certas casas. Em uma determinada esquina ficava uma casa bem iluminada, com muitas lâmpadas, e na sua frente havia alguns sinais místicos da Cabala, marcas de males e calamidades. Ali vi gente perversa, cambaleando de um lado para outro; observei sua embriaguez. No entanto, vi como o cristão tapou os olhos com as mãos e passou por aquele lugar. Vi também outro antro do inferno, onde havia muitas coisas que não deveriam ser vistas — gritos de prazer e euforia, mas não cânticos sagrados. Olhei ao redor e não vi uma única daquelas benditas pessoas; elas não se detinham no caminho dos pecadores, não se assentavam na roda dos escarnecedores, nem andavam no conselho dos ímpios (Salmo 1). Reparei que, como frutos da mesma videira — eles encontravam seus companheiros e andavam juntos — construíam seu ninho na mesma árvore e faziam sua habitação debaixo do mesmo teto.” “Sim”, diz o espírito, “ouvi um deles exclamar: ‘o que profere mentiras não permanecerá ante os meus olhos’ (Salmos 101:7). Eu o vi expulsar o mentiroso da sua casa e dizer ao devasso para afastar-se. Eu os observei; vi que eram pessoas distintas e separadas, e disse: certamente é sobre elas que está escrito: ‘eis que é povo que habita só e não será reputado entre as nações’” (Números 23:9). Bem, espírito, tua descrição é correta. Fico me perguntando quantas delas há; pessoas a quem Deus Se revelará, e não ao mundo. Essas pessoas não são mundanas em seus princípios, suas ações, suas conversas, seus desejos, seus objetivos e finalidades. Assim são elas. Não me interessa a graça comum ou as manifestações universais; sempre que eu puder, vou proclamar a livre graça a pessoas específicas, enquanto estiver escrito: “que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo”.
2. Nossa próxima observação é sobre as ocasiões especiais. As pessoas altamente favorecidas nem sempre veem Cristo da mesma forma. Nem sempre elas mergulham na luz do Seu semblante. Há tempos especiais em que Deus Se agrada de Se revelar a Seu povo. Esses períodos, geralmente, são de dois tipos: tempos de dever e tempos de provação. Nunca vi um cristão preguiçoso ou indiferente ter uma manifestação de Jesus Cristo; nunca ouvi alguém que só se preocupa com seus negócios falar muito sobre manifestações espirituais. Pobre alma, sua religião é suficiente para salvá-lo, mas não o suficiente para fazê-lo perceber as bênçãos espirituais e especiais de um cristão. Para quem faz pouco por Cristo, Cristo também faz pouco por ele em termos de favores especiais. Aqueles que se sentam, cruzam os braços, comem, bebem e ficam satisfeitos, não são os que entram na câmara secreta do Altíssimo e desfrutam da presença do Todo-Poderoso. Os mais zelosos por seu Mestre compreendem muito melhor a Sua bondade e desfrutam as bênçãos mais ricas do Senhor. Pergunte a um cristão quando ele é mais feliz e ele lhe dirá que é quando está trabalhando. Eu sei porque é assim comigo. Ainda não tentei descansar e, sem dúvida, encontrarei algo para fazer além do descanso. Quando passo um dia sem pregar o nome do meu Mestre, sinto que não fiz o que deveria ter feito, e não me sinto satisfeito até estar novamente atrás do púlpito. Quando trabalhamos com mais afinco, sentimos que a graça é mais abundante; quando cavamos mais fundo, alcançamos água mais doce. Para quem trabalha mais o pão fica mais macio; e acredite, gotas de suor são uma bênção para amolecer o pão seco. O trabalho árduo por Cristo sempre trará felicidade genuína. Para Issacar, “jumento de fortes ossos, de repouso entre os rebanhos de ovelhas” (Gn 49:14-15) — homem que faz pouco — a promessa é: “O açoite é para o cavalo, o freio, para o jumento, e a vara, para as costas dos insensatos.” (Provérbios 26:3). O homem indolente deve ser fustigado; mas aquele que serve a Deus pode se regozijar, pois Deus o tratará com as delícias reais (Gn 49.20); Ele lhe dará a sua porção misturada com mel; Ele dirá: “Tomei o teu pão e mergulhei-o no meu próprio prato; toma-o, come-o, pois tu és aquele que trabalha na minha própria vinha”. As ocasiões especiais serão nos tempos de dever, ou, como eu disse, nos tempos de provação, pois não podemos supor que, quando um cristão é afastado das suas obrigações, ele não está fazendo nada. Não pense que sua enfermidade é um desperdício. Não é só para o seu próprio benefício, mas você realmente serve a Deus no seu sofrimento, se o suportar com paciência. Você conhece aquele texto que diz que “Nós preenchemos o que resta das aflições de Cristo em nossa carne, a favor do Seu corpo, que é a igreja”? (Cl. 1.24). O corpo místico de Cristo é composto da cabeça e de todos os membros. A cabeça já teve o seu sofrimento — já acabou; mas o corpo tem certa porção a suportar também; e, quanto mais você sofre, menos sofrimento há para outra pessoa. Há certa quantidade de provação que toda a igreja tem de suportar antes de chegar ao céu; pois, assim como Cristo foi afligido, também todo o Seu povo deve ter comunhão com Seus sofrimentos. Há um cálice cheio de mistura, e o justo deve beber dele; todos precisamos beber um gole; mas, se algum de nós puder beber um pouco mais, e fazê-lo com paciência, haverá muito menos para os outros. Portanto, não vamos nos queixar, pois é nos momentos de tribulação que aprendemos mais de Jesus. Antes de Israel guerrear contra Amaleque, Deus lhes deu água da rocha e lhes enviou o maná do céu; e, antes de Jacó se encontrar com Esaú, o anjo de Deus lutou com ele no vau do Jaboque e hostes de anjos o encontraram em Maanaim. Antes da tribulação, geralmente se espera um tempo de alegria; e, quando essa época acaba, você pode dizer: “Agora deve vir alguma aflição, pois já recebemos muitas alegrias”. Mas, quando a tribulação vier, regozije-se nela, pois nossos problemas geralmente são proporcionais às nossas alegrias, e nossas alegrias costumam ser proporcionais aos nossos problemas. Quanto mais amargo for o vaso da aflição, mais doce será o cálice da consolação; quanto mais pesada a tribulação neste mundo, mais brilhante a coroa de glória no futuro. Na verdade, no hebraico, a mesma palavra significa tanto “peso” quanto “glória”. Um peso de tribulação é uma glória para o cristão, pois é uma honra para ele; e a glória é um peso, pois muitas vezes o põe de joelhos e o faz prostrar-se aos pés do seu Mestre. Pergunto a meus irmãos e irmãs quando foi que sentiram mais a presença de Jesus — quando andavam pelo jardim das delícias ou quando sentiam o amargor do remédio na boca? Suas experiências com Jesus não foram melhores quando estavam sendo assaltados pela dor do que quando estava tudo bem? Quando o celeiro está repleto, o tonel de azeite estourando e o vinho transbordando, é aí que muitas vezes o santuário de Deus é abandonado e o gabinete da Sua benevolência quase esquecido. No entanto, quando a figueira não floresce e não há rebanhos no aprisco, então Deus Se aproxima de Seus filhos e revela mais de Si a eles.
3. A próxima consideração é a própria manifestação extraordinária. Jesus manifesta a Si mesmo. Existem muitas manifestações de Deus a Seus filhos, mas esta é a mais preciosa de todas. Há manifestações que não queremos ter novamente. Por exemplo, aquela sensação horrível da nossa pecaminosidade ao sermos regenerados: nós deixamos isso com Deus, mas não oramos para sentir de novo. Mas há uma manifestação que gostaríamos de ter todos os dias. “Eu me manifestarei a ele”. E Ele o faz de diferentes formas. Há tempos tenho experimentado uma manifestação de Seus sofrimentos no Getsêmani; há meses venho meditando sobre as Suas agonias; parece até que estou comendo as ervas amargas que crescem junto ao ribeiro do Cedrom e bebendo das suas águas escuras. Às vezes subo os degraus sozinho, coloco-me na posição em que Jesus estava e penso que poderia dividir com Ele os Seus sofrimentos. Para mim, é como se visse as gotas de sangue do Seu suor caindo no chão. É uma visão tão doce do meu Salvador em Suas agonias, que espero um dia ser capaz de segui-lo ainda mais e vêlO no Calvário, e ouvir Seu grito de morte “Eli, Eli, lamá sabactâni?” (Mateus 27:46). Sei que alguns aqui já viram Jesus com tanta clareza com os olhos da fé que foi quase como se O estivessem vendo com seus próprios olhos. Puderam ver seu Salvador pendurado na cruz. Acharam que estavam vendo a própria coroa de espinhos em Sua cabeça e as gotas de sangue escorrendo por Sua face; ouviram-nO gritar; viram Seu lado ensanguentado; viram os cravos e correram para tirá-los e envolvê-lO em linho e especiarias, carregaram Seu corpo e o lavaram com lágrimas e o ungiram com unguento precioso. Em outras ocasiões, tiveram uma manifestação de Cristo naquilo que Ele lhes deu. Viram o tremendo sacrifício que Ele ofereceu, a fumaça do braseiro subindo aos céus e todos os seus pecados sendo ali queimados; viram claramente a Sua retidão justificadora sendo-lhes imputada e, ao olharem para si mesmos, disseram:
Estranhamente, minh’alma, foste vestida
Pela gloriosa Trindade Santa
Em doce e suave harmonia
Tudo que há em mim canta
Há ocasiões, também, em que sentem grande alegria ante a exaltação de Cristo demonstrada em Seus méritos. Vocês O veem triunfante, com um pé sobre Satanás e outro sobre a morte. Podem contemplá-lO marchando para o céu à frente das resplandecentes hostes celestiais; e, no devido tempo, irão ter uma manifestação na própria alma, dAquele que se assentou no trono do Pai até seus inimigos serem postos por estrado dos Seus pés. (Hebreus 10:13). E a fé, às vezes, ultrapassa de tal forma as asas do tempo, que podemos trazer o futuro para o presente e ver aquela grande e suntuosa aparição do Rei assentado no grande trono branco, empunhando o Seu cetro (Apocalipse 20.11), quando Seus santos estarão diante dEle entoando o seu louvor. Se fosse um pouco mais além, eu seria acusado de fanatismo, e talvez eu seja mesmo fanático; mas, mesmo assim, quero acreditar que há ocasiões em que o cristão vive às portas do céu. Se não adentro um centímetro os portões de pérola, não estou aqui. Se não sinto o cheiro dos incensários dos glorificados e ouço a música de suas harpas, acho que não estou vivo. Há ocasiões, também, de alegria estática, quando escalo as montanhas mais altas e ouço sussurros vindos do trono. Você já teve esse tipo de manifestação? Se não teve, não vou condená-lo, mas creio que a maioria dos cristãos as têm e, se forem comprometidos com o trabalho do Mestre e estiverem em grande sofrimento, é certo que terão. Esse tipo de coisa não é dado a todos, só para alguns, mas quem tem sabe qual é o significado da sua fé. Há poucos dias eu estava lendo sobre o Sr. Tennant (1). Certa noite ele estava pronto para pregar, quando pensou em dar um passeio. Enquanto caminhava pelo bosque, ele sentiu uma manifestação tão poderosa da presença de Cristo que teve de se por de joelhos, e não conseguiram achá-lo no momento em que ele tinha de pregar. Ele continuou ali por horas, sem saber se estava no corpo ou fora dele e, quando o acordaram, seu rosto brilhava e ele parecia alguém que estivera com Jesus. Ele disse que nunca se esqueceria daquele dia, daquele período de comunhão, quando, embora não pudesse ver a Cristo, Ele estava lá, tendo intimidade com ele, coração com coração, da forma mais doce. Deve ter sido uma demonstração maravilhosa. Você deve conhecer algo a esse respeito. Caso contrário, não terá avançado muito na carreira espiritual. Que Deus o ensine mais e o leve ainda mais fundo! “Conheçamos e prossigamos em conhecer ao Senhor”. (Oseias 6.3)
4. Portanto, quais serão os efeitos naturais dessa manifestação espiritual? O primeiro será a humildade. Se alguém diz que “tudo o que faz é espiritual e, por isso, ele é uma boa pessoa”, é porque não há nada de espiritual nele; pois “O Senhor atenta para os humildes; os soberbos, ele os conhece de longe” (Salmo 138.6). Ele não deseja se aproximar para se relacionar com eles, e nunca lhes fará visitas de amor. O segundo será a felicidade, pois feliz é aquele que vive perto de Deus. Além disso, há também a santidade. Quem não tem santidade é porque nunca teve esse tipo de manifestação. Algumas pessoas dizem muitas coisas; mas não acredite nelas, a menos que suas ações correspondam ao que elas dizem. “Não vos enganeis: de Deus não se zomba”. (Gálatas 6.7) Ele não concederá Seus favores aos perversos; pois “Ele não rejeita ao íntegro, nem toma pela mão os malfeitores” (Jó 8.20). Portanto, haverá três efeitos da proximidade com Jesus: humildade, felicidade e santidade (2). Que Deus nos conceda todos eles!
II Agora, passemos ao segundo ponto: UMA PERGUNTA INTERESSANTE. Judas disse: “Donde procede, Senhor, que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?”. O que esta pergunta sugere e como ela foi respondida.
Primeiramente, a pergunta sugere ignorância. O pobre Judas deve ter pensado: “Como Jesus pode Se manifestar a nós e não ao mundo?. Ora, se Ele vier novamente, o mundo O verá tão bem quanto nós. Como Ele fará? Suponhamos que Ele venha numa carruagem de fogo ou numa coluna de nuvem: se nós O virmos, o mundo também O verá”. E, na sua ignorância, ele perguntou: “Como pode ser isso, Senhor?”. Pode ser também que a pergunta tenha sido feita em razão da sua grande bondade: “Ah, Senhor, como pode ser que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?”. Ele era ligeiramente arminiano, queria que todos tivessem a mesma coisa, e disse: “Como é que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?”. “Ó Senhor, gostaria que fosse para todos. Sou benevolente”. Ah, meu amado, não precisamos ser mais benevolentes que Deus. Alguns dizem: “Se todos os pecadores fossem salvos, isso glorificaria ainda mais a Deus”. Mas Deus, com certeza, sabe muito melhor que nós quantos pecadores irão glorificá-lO; temos de deixar o número por conta dEle e não nos metermos naquilo que não é da nossa conta. A Escritura diz: “todo insensato se mete em rixas” (Provérbios 20.3), e insensato é aquele que se mete naquilo que não lhe diz respeito. Mas, seja como for, Judas disse: “Donde procede, Senhor, que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?”. Pode ser, ainda, que ele tenha feito a pergunta por amor ao Mestre. “Ó, Senhor, achei que virias e serias Rei sobre todos, mas parece que serás apenas sobre alguns”. Ele queria que o domínio de Cristo fosse universal. Queria ver o trono do Salvador em cada coração. Desejava que todos se curvassem diante Dele, e esse desejo era justo e louvável. Por isso, ele perguntou a Cristo: “Como pode ser, Senhor, que não conquistarás tudo?”. Jesus nunca respondeu à pergunta. Foi uma pergunta louvável, mas só teremos a resposta quando chegarmos lá em cima; se é que teremos. A pergunta pode ter sido feita, ainda, por admiração. “Oh”, disse ele, “Como é que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?”. Ele poderia ter dito de si mesmo: “O que sou eu? E o irmão Pedro? Apenas um pescador. E João? Também um pescador. E quanto a Mateus? Ele era publicano e enganou uma porção de gente. E Zaqueu? Quantas casas de viúva ele não devorou?”. E, mesmo assim, o senhor diz que “estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?”. E quanto a Maria, a pecadora — o que ela fez para que Te manifestes a ela? E, Maria Madalena, então, que tinha sete demônios? “Senhor, donde procede que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?”. Não é essa pergunta que todos fazemos a nós mesmos?
Pausa, minh’alma, adora e admira;
Pergunta: “Por que por mim tanto amor?”
E a única resposta que podemos dar é:
A graça me colocou entre os membros
Da família do Salvador
Venha e me pergunte: “Por que sou cristão, senhor? Por que Deus me ama?”. Devo lhe dizer que é “porque Ele o ama”. “Mas, por que Ele me ama?”. A única resposta que posso lhe dar é “porque Ele quis amá-lo”. Pois está escrito: “Ele terá misericórdia de quem Lhe aprouver ter misericórdia”. Certamente poderíamos nos admirar e dizer: “Por que, Senhor, por que Te manifestas a nós, e não ao mundo?”. “Ora”, alguns diriam, “porque vocês são melhores que o mundo; é por isso. Com certeza, sua natureza é melhor que a do mundo!”. Natureza melhor que a do mundo? Ora, alguns de nós éramos o pior tipo de gente. Alguns aqui se entregavam a todo tipo de vício, e ficariam envergonhados só de mencionar os pecados que cometeram. No entanto, Deus Se manifesta a vocês e não ao mundo. A graça soberana de Deus sempre será motivo de admiração.
Contudo, qual é a resposta? Por que Cristo Se manifesta a algumas pessoas e não ao mundo? A pergunta não foi respondida; pois era irrespondível. Nosso Senhor prosseguiu, dizendo: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra; e meu Pai o amará, e viremos para ele e faremos nele morada”. Ele não disse a Judas a razão pela qual Ele Se manifestaria a eles e não ao mundo. Muitas vezes faço essa pergunta a mim mesmo: “Você diz que Deus Se manifesta a algumas pessoas e não a outras — pode me dizer por quê?”. Bem, Cristo não disse, e não se espera que eu diga mais do que Ele disse. No entanto, minha pergunta é: você tem alguma objeção quanto a isso? O que Ele disse não é suficiente? Ele declarou que “tem direito sobre a massa, para do mesmo barro fazer um vaso para honra e outro, para desonra” (Romanos 9.21), e se alguém O critica, Ele diz: “Quem és tu, ó homem? Porventura, pode o objeto perguntar a quem o fez: Por que me fizeste assim?”. Que pessoa perguntaria a seu pai: “Por que você me concebeu?”. “Será que não sou Deus e não posso fazer o que quiser com aquilo que é meu?”. Mas o questionador diz, “não é injustiça da parte de Deus manifestar-Se a uns e não a outros?”. Deus responde: “Tu me acusas de injustiça? A respeito de quê? Eu te devo alguma coisa? Traga-me a conta e eu te pagarei. Será que te devo graça? Então, a graça não seria graça; seria dívida. Se Eu te devo graça, tu a terás.” “Meu irmão também não deveria tê-la? Ele é tão mau quanto eu”. E o Rei diz: “Disponho daquilo que é meu da forma como me apraz”. Se dois mendigos estão à tua porta, não tens o direito de mandar um embora e dar ao outro alguma coisa? Não posso fazer o mesmo com aquilo que é meu? “Terei misericórdia de quem me aprouver ter misericórdia e compadecer-me-ei de quem me aprouver ter compaixão”. “Ora”, continua o questionador, “Suponha que eu peça e suplique por alguma coisa; eu a terei?”. “Sim, terás”, diz Deus, pois assim diz a promessa: “todo o que pede recebe; o que busca encontra; e, a quem bate, abrir-se-lhe-á.” (Mateus 7.8). “Mas não a terei, a menos que esteja escrito que a terei”. “Sim, mas se pedires é porque está escrito que pedirás; os meios são ordenados da mesma forma que os fins; tu não podes pedir a menos que eu tenha te inclinado a isso. Portanto, não me fales de injustiça. Eu te pergunto se há uma passagem sequer na minha palavra onde eu tenha prometido dar graça a todos. Pobre desprezível! Não te rebelaste contra mim? Teu destino é ir para o inferno para sempre. Será que não mereces?”. “Sim, eu mereço”. “Então, quem és tu que te atreves a me acusar de injustiça? Se tenho cinquenta homens no cadafalso para serem enforcados, será que não tenho o direito de perdoar a quem eu quiser, e punir todos os demais? Não aceitarás isso?”. “Não”, diz o contestador, “nunca aceitarei”. “Então, meu amigo, não esperes ter salvação até que o aceites”. Alguém aqui se opõe à soberania divina? Esta é uma doutrina difícil; e se não é aceita, isso demonstra que a pessoa ainda é dominada pelo orgulho. Se pregarmos apenas a soberania divina, alguns dirão: “Esse sujeito é antinomiano e hipercalvinista”. Isso é calúnia e merece o nosso desprezo; e lembramos que a acusação cai muito bem contra o próprio caluniador. Antinomiano é aquele que se rebela contra a soberania divina. No entanto, quem aceita esta doutrina irá ao trono, dizendo
Talvez Ele aceite minha súplica
Talvez Ele ouça minha prece
Mas, se tiver de morrer, rogarei
E morrerei apenas ali.(3)
E agora, amigos, o que me dizem? Sei o que alguns diriam. Eles diriam em alto e bom som: “Quanta besteira! Cremos que a religião é muito boa para manter as pessoas na linha; mas quanto a essas manifestações e êxtases, não acreditamos em nada disso.” Muito bem, meus amados, acabei de demonstrar a veracidade daquilo que o texto diz. Deus não Se manifesta ao mundo e, se alguém não tem nenhum tipo de manifestação é uma prova para si mesmo de que ele é do mundo. No entanto, temos aqui alguns cristãos que dizem, “Não conhecemos muito sobre essas manifestações.” Sim, eu sei que não conhecem. Nos últimos anos, a igreja tem entrado num estado de desnutrição; Deus tem enviado pouquíssimos pregadores que falam sobre essas verdades especiais, e a igreja tem se tornado cada vez mais anêmica. Não sei dizer o que seria de nós se ainda não houvesse um pouco do sal de Deus espalhado sobre a massa em decomposição. Alguns de nós têm vivido nos lugares baixos, quando poderiam estar nos lugares altos. Ficam no vale de Baca (Salmo 84.6, ACF, ARC, NVI), quando poderiam muito bem estar vivendo no topo do Carmelo. Eu não gostaria de morar no vale se pudesse construir minha casa no alto das montanhas. Ó, cristão! Levanta-te! Que os teus pés sejam iluminados uma vez mais. Que cruzem ligeiros a planície turbulenta, cheguem ao Calvário e subam até o seu cume; e, de lá, eu te digo que poderás ver para além da planície até o próprio céu. E, se puderes alcançar o cimo de Pisga, cantarás,
Lindos campos para além da enchente
Revestidos de grama verdejante
E seu espírito será como os carros de Amminadab (4). Busquem, meus irmãos, essas manifestações espirituais, se nunca as tiveram; e, se já tiveram o privilégio de desfrutá-las, procurem ter mais; pois, o que há de melhor para tornar a vida feliz e prepará-lo para o céu do que essas revelações de Jesus Cristo? Ah! Do fundo do meu coração, sinto pena daqueles que desprezam daquilo que desfrutamos. Cuidado para que a primeira manifestação que tiverem de Cristo não seja quando Ele for revelado em chamas de fogo, vingando-se de Seus inimigos, pois Ele não estará Se revelando em misericórdia, mas em justiça. Que Deus lhe conceda graça para que você O veja no Calvário antes vê-lO no Sinai, para contemplá-lo como o Salvador dos pecadores antes de vê-lO como o Juiz dos vivos e dos mortos. Que Deus os abençoe e os conduza sempre a essas manifestações! Amém.
Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza
Notas do tradutor:
(1) 1829-1905, famoso político e orador inglês da época de Spurgeon e George Whitefield
(2) No original: “all beginning with the letter h—humility, happiness, and holiness” — “todas começando com a letra”, o que não é possível ser traduzido para o português.
(3) cf. Ester 4.16
(4) cf. Cantares 6.12, Versão Católica, a única versão em português que traz o nome