A Alma Desfalecida Revivida
Sermão nº 3510
Publicado na quinta-feira, 4 de maio de 1916
Ministrado por C. H. Spurgeon
no Tabernáculo Metropolitano, Newington, Londres, Inglaterra
“Quando, dentro de mim, desfalecia a minha alma, eu me lembrei do Senhor.” — Jonas 2.7
Quando o homem foi criado, não havia o temor de que ele se esquecesse de Deus, pois seu maior prazer e privilégio era ter comunhão com seu Criador. “O Senhor Deus andava no jardim pela viração do dia” (Gn 3.8) e Adão tinha a regalia de manter comunhão com Ele, talvez até mais íntima do que a que tinham os anjos no céu. Mas o encanto dessa harmonia sagrada foi rudemente quebrado pela desobediência do homem e sua terrível queda. Desde que nossos primeiros pais provaram do fruto proibido, o qual trouxe a morte e toda sorte de calamidades ao mundo, sua raça mortal está naturalmente inclinada a se esquecer de Deus. As tendências malignas da carne e do sangue tornaram impossível persuadir o homem a se lembrar do seu Criador. A queixa de Deus contra os judeus é uma verdadeira acusação contra toda a família humana: “Ouvi, ó céus, e dá ouvidos, ó terra, porque o Senhor é quem fala: Criei filhos e os engrandeci, mas eles estão revoltados contra mim. O boi conhece o seu possuidor, e o jumento, o dono da sua manjedoura; mas Israel não tem conhecimento, o meu povo não entende.” (Isaías 1.2-3). O homem é insensato: ele foge do bem maior. O homem é perverso: ele dá as costas para a santidade suprema. O homem é mundano: ele se esquece do reino de Deus e do mundo por vir. O homem é obstinado: ele segue as suas próprias imaginações vãs e, com rebeldia obstinada, opõe-se a seu Deus, para que possa seguir seu próprio caminho e satisfazer suas paixões desenfreadas.
Para convencer um homem de seus erros, refreá-lo das suas atividades pecaminosas e reconduzi-lo às veredas da justiça — quase sempre é preciso que surjam problemas terríveis e profunda aflição. É bem verdade que algumas pessoas são conduzidas a Deus por meios mais brandos; elas são atraídas por laços delicados, mas poderosos. Mesmo assim, ainda resta uma classe bem maior de pessoas, sobre as quais cordões de seda não exerceriam nenhuma influência. Elas precisam ser tratadas com muita severidade, não com brandura. Seus corações não podem ser abertos com uma chave qualquer; será preciso um pé-de-cabra ou até mesmo um aríete para dar um golpe poderoso. Alguns corações jamais serão atraídos para Deus, e para a verdade, a não ser pela tormenta. De espada em punho, a lei de Deus precisa escalar as muralhas. Com um brado estrondoso, Sua Palavra precisa derribar os muros da sua autoconfiança e abrir brecha após brecha nos bastiões do seu orgulho e, mesmo então, eles lutarão e não cederão, até que, levados a um extremo impressionante, percebam que precisam se render de uma vez por todas, ou estarão perdidos para sempre. É com essas pessoas que eu gostaria de tratar neste momento. Há quem tenha se esquecido de Deus depois de tê-lo conhecido, e é provável que só volte a Ele depois de enfrentar grandes problemas. Há também quem nunca O conheceu, e que nunca irá buscá-lo, a menos que seja levado ao extremo pela calamidade, tal como aconteceu com o filho pródigo, que foi obrigado a voltar à casa do pai devido à fome assoladora na região onde habitava. Assim sendo, em primeiro lugar, vou lidar com —
I. OS DESVIADOS
Entretanto, antes de começar, permitam-me descrever em mais detalhes as pessoas às quais quero me dirigir. Não é necessário citar nomes. Será suficiente retratarmos seu caráter e descrevermos sua conduta. Há algumas pessoas que, anos atrás, frequentavam igrejas cristãs, mas, aos poucos, foram se afastando e, por isso, sua carreira foi definhando, e é incrível que ainda não tenham perecido completamente em seu pecado. No início, parecia que vocês corriam bem e, durante algum tempo, continuaram no caminho; mas agora, onde estão? Bem, acontece que neste instante vocês estão na casa de Deus, e eu creio que o momento de Deus chegou, quando Ele o encontrará e o trará de volta. O que falaremos sobre Jonas, peço que apliquem a vocês mesmos. Se a carapuça servir, usem-na, mesmo que seja uma carapuça de tolo: usem-na até que sintam vergonha de si mesmos e sejam levados a confessar sua loucura diante do Deus que pode removê-la, e torná-los sábios para a salvação.
Observem, caros amigos, que, embora Jonas tenha se lembrado do Senhor, ele não o fez até estar dentro do ventre da baleia, e até sua alma estar desfalecida dentro dele. Ele não se lembrou do Senhor enquanto descia para Jope para encontrar um navio, nem quando estava a bordo desse navio. Seu Mestre tinha dito a ele: “Jonas, vá até Nínive“, mas Jonas era um cara muito cabeçudo e determinado. Embora fosse um verdadeiro servo de Deus, e profeta, ainda assim ele fugiu da presença do Senhor. Ele resolveu consigo mesmo: para Nínive é que eu não vou. Ele podia prever que não teria nenhuma honra pessoal nessa jornada, sua reputação continuaria a mesma, não haveria deferência especial à sua pessoa por parte daqueles orgulhosos assírios, por isso, desafiando francamente a ordem divina, ele desceu para Jope, para tomar um navio e fugir da presença de Deus. Ele pagou a passagem, embarcou e foi navegando rumo a Társis, tudo isso sem sequer pensar em Deus.
É provável que hoje tenhamos aqui alguma mulher que era membro de uma igreja cristã, mas se casou com um descrente. Depois disso, ela acabou se afastando e deixando a membresia da igreja. As lojas estavam abertas aos domingos, havia festa em sua casa ou, então, uma viagem para o interior. Tudo lhe parecia muito agradável. A inquietação sentida a princípio logo cedeu a hábitos familiares, até que, depois de alguns anos, essa mulher, que parecia uma verdadeira crente em Cristo, agora leva uma vida totalmente descuidada e indiferente, para não dizer profana, raramente pensando em Deus. Talvez ela não tenha deixado de orar e, com certeza, não se tornou inimiga de Cristo ou deixou de amar Seu povo. Contudo, Deus foi esquecido. Enquanto seus negócios prosperavam, seu marido gozava de boa saúde e o mundo parecia sorrir para ela, Deus não fez parte dos seus pensamentos.
Será que estou errado em supor que haja também algum homem que, em sua juventude, foi um grande orador, excelente professor de Escola Dominical e companheiro dos que temem o Senhor? No entanto, depois de algum tempo, pareceu-lhe haver uma forma mais rápida de ganhar dinheiro do que os meios comuns de trabalho honesto ou simples comércio. Assim, ele se meteu em especulações que logo consumiram as partes essenciais da sua vida religiosa. Seus novos projetos lhe trouxeram novas companhias, as quais o fizeram reprimir suas antigas convicções; e, como não queria ser hipócrita, acabou abandonando por completo a sua fé. Talvez tenham se passado meses desde que ele veio a um culto pela última vez e, mesmo agora, ele prefere não ser reconhecido, pois veio apenas porque um amigo do interior disse que gostaria de conhecer o local e ouvir o pregador.
Ah, meus caros, não é estranho que, se vocês são filhos de Deus, tenham andado de forma tão contrária a Ele? O mesmo aconteceu com Jonas. Posso, então, expor o caso dele para encorajá-los? Além disso, espero que vocês apliquem esta amarga repreensão à sua própria alma e sejam levados a fazer o que Jonas fez.
Enquanto o navio navegava calmamente sobre o mar, Jonas se esqueceu do seu Deus. Ele poderia ser confundido com qualquer pagão a bordo. Era tão ímpio quanto eles. No entanto, havia uma centelha de fogo entre as brasas, a qual, no devido tempo, Deus transformou em chama. Fico feliz por vocês, se a melhor parte da experiência de Jonas coincidir com as suas.
Tamanho foi o esquecimento de Jonas que ele parece não ter pensado em seu Deus em momento algum enquanto o temporal se alastrava, os vagalhões rolavam e o navio era açoitado pela tempestade. Os pobres marinheiros pagãos estavam todos de joelhos, clamando por misericórdia, mas Jonas estava dormindo. Até mesmo o supersticioso capitão ficou espantado com a sua apatia: “Que se passa contigo, dorminhoco? Não te importas que todos pereçamos?”. Ele foi ao porão e deu uma bronca em Jonas, perguntando-lhe como ele podia estar dormindo enquanto os passageiros e a tripulação estavam clamando. “Levanta-te”, disse ele, “e invoca o teu deus”. Até para atentar para o perigo e cumprir sua obrigação, Jonas teve que levar uma chamada de um pagão!
Ora, talvez haja aqui também alguém que esteja com uma porção de problemas. Seu marido morreu? Você é uma mulher sozinha que sustenta sua família? Ou é um viúvo que olha para os filhos com piedade, quando antes os olhava com orgulho? É possível, ainda, que suas tribulações sejam de outra natureza. Seus negócios vão mal. Ao invés de grandes lucros, você tem tido perdas constantes; e até seu pequeno capital já foi dissipado. Mesmo assim, durante todo esse tempo, você não tem pensado em Deus. Talvez tenha perdido alguns filhos, mas ainda não se lembra de Deus. Será assim mesmo, que o Senhor o ama e, porque o ama, Ele o castiga? Ouça o que lhe digo, você continuará sofrendo uma perda atrás da outra, até perder tudo o que tem e tudo o que lhe é mais caro, e pode até ser levado às portas da morte, mas, no final, Deus o salvará. Se você já foi Dele, Ele jamais o deixará mergulhar no inferno; contudo, sua jornada para o céu não será fácil. Você será salvo, mas como que através do fogo (1Co 3.15). Será salvo como que por um triz — por um fio, e será terrivelmente doloroso. Ó, amigo, desejo que você se volte para Deus enquanto Ele ainda o está fustigando com brandura, pois saiba que se não for com a vara, será com o chicote, e se o chicote não servir, será com a faca, e se a faca não funcionar, será com a espada, e aí você sentirá, pois, tão certo quanto Deus é Deus, Ele nunca perderá um de Seus filhos, e Ele o fará em pedaços, por assim dizer, mas salvará sua alma. Ele enfraquecerá o seu corpo com doenças e o fará se jogar no leito da angústia, mas Ele o trará de volta. Queira Deus que a graça o faça voltar por meios mais brandos, antes que as provações se tornem piores.
E, assim, Jonas não pensa em seu Deus durante todo esse tempo. Por fim, o barco começa a ranger e parece a ponto de se despedaçar. Os marinheiros lançam sortes e ela recai sobre Jonas. Ele vai ser lançado ao mar. Nesse momento, um par de mandíbulas enormes se abre, se fecha e o engole. “Onde será que estou?”, diz Jonas, enquanto é levado para as profundezas pelo peixe monstruoso, as algas marinhas começam a se enrolar em sua cabeça e sua vida só é preservada por um milagre. Então, e só então, Jonas se lembra do seu Deus. “Quando, dentro de mim, desfalecia a minha alma”. Ora, por que sua alma desfalecia dentro dele? Não foi porque ele pensou: “Que situação! Nunca vou sair dessa. Como é que não me afoguei? Como essas mandíbulas enormes não me despedaçaram? Que coisa horrível! Logo, logo, vou morrer nesta horrível prisão.”? Ouso dizer que ele pensou que nunca alguém estivera em tal situação; que nunca alguém continuara vivo dentro de um peixe. E como era horrível sentir apenas um frio intenso à sua volta. Ao invés de roupas, ele tinha algas marinhas envoltas na cabeça. Seu coração palpitava e sua cabeça doía. Sem ânimo, sem luz; sem uma voz amiga; sem socorro, sem ajuda; longe da terra seca, no meio das profundezas, sem ninguém que se compadecesse de uma situação tão esquisita como aquela.
Ora, quando um filho de Deus se desvia do caminho, não é raro que Deus o leve a uma situação como essa, em condições em que ele não pode ajudar a si mesmo; desamparado e sem amigos, sem alguém para consolá-lo e aliviar seu sofrimento. Entretanto, um pensamento sombrio sempre irá assombrá-lo: “A culpa é toda minha. Não fui eu mesmo quem causou tudo isso?”. Que frutos pode esperar uma mulher que deixa sua família, abandona seu lar e trai seu gentil e terno marido? Quando estiver a ponto de morrer de fome, o vento estiver soprando por entre suas roupas rasgadas, seu rosto estiver inchado de tanto chorar e sua alma cheia de angústia, ela só terá a si mesma para culpar e dizer: “A culpa é toda minha; quem me dera nunca tivesse deixado meu lar, por mais humilde que fosse; quem me dera nunca tivesse abandonado meu marido, que me amava e me protegia, mesmo que às vezes pudesse ser rude! Ah, se eu tivesse sido mais atenciosa e menos insatisfeita!”. A reflexão tardia sobre o pecado — creio que chamam a isso de remorso. Quando a vergonha por seus pecados tomou conta de Jonas foi que ele pensou em seu Deus.
Ah! Como o Senhor Deus é misericordioso em permitir que pensemos nEle e nos voltemos para Ele quando estamos em condição tão miserável! Certa vez um comerciante disse a um freguês que não era muito grato pelas condições especiais que ele lhe oferecia: “Sei porque está aqui. Você rodou a cidade toda atrás do que queria, mas não encontrou. Agora está de volta, mas não lhe dei nenhum motivo para ter ido embora; por isso, não vou lhe atender.” Não é assim que o Senhor fala conosco. Ele não Se ressente da nossa ingratidão. “Meu filho”, diz Ele, “você foi embora e gastou todo o seu dinheiro; você se alimentou da comida dos porcos; está todo sujo, malcheiroso e maltrapilho, mas ainda é meu filho, e eu o amo”. Sem palavras de recriminação ou olhar de desdém, assim que o pobre pecador volta para casa, o Pai o abraça e lhe dá um beijo de perdão. “Lembro-me bem de ti”, diz Ele, “encobri teus pecados como uma nuvem, e como uma nuvem espessa as tuas iniquidades”. Ora, se há alguém aqui que tenha se desviado do caminho — e sei que há vários — só posso esperar que Deus o leve à mesma situação aflitiva de Jonas. Não sentirei pena de você se Ele o fizer; prefiro ser grato a Ele por tê-lo afligido, pois só assim saberei que Ele ainda o ama. No entanto, quando estiver em situação desesperadora, faça como Jonas — pense no seu Deus.
Alguém aqui faz alguma objeção? Você acha que pensar em Deus o torna uma pessoa pior? Pense bem, então. Pense que um dia você foi Seu filho, você se desviou, mas Ele o descobriu e sabe onde está. Jonas sentiu que Deus sabia onde ele estava, pois enviou o peixe. Deus sabe por onde você anda, amigo pecador; Ele conhece a situação em que se encontra. Lembre-se de que você ainda está vivo! É maravilhoso que Ele ainda lhe permita ouvir Sua voz dizendo: “Volte, pecador, volte!”. Deus é imutável, Ele não pode mudar. Sua aliança é segura, Ele não irá alterá-la. Se Ele o amou uma vez, Ele ainda o ama. “Se o comprei, Eu o terei.”. Volte para Ele, então. Ele ainda é seu pai — volte! Volte! No entanto, caro ouvinte, talvez você não queira ser Seu filho! Talvez tenha sido hipócrita e feito sua profissão de fé só para se sentir bem. Você se afastou da companhia daqueles que temem ao Senhor porque nunca foi realmente convertido. Se for assim, que a misericórdia do Senhor para com os pecadores o leve a clamar a Ele. E que o martelo da Sua Palavra o faça em pedaços. E que Ele o salve e seja extremamente honrado na sua salvação.
Muito embora eu tenha tentado atingir os afastados, é mais provável que não tenha conseguido, por melhor que tenha sido minha intenção. Parece horrível que alguns aqui, que conhecem o caminho da esperança, possam perecer em seus pecados! Alguns foram acalentados por joelhos piedosos. Se aqueles que estão no céu agora, olhando para vocês, pudessem chorar, vocês veriam suas lágrimas caindo sobre suas testas. Vocês sabem que houve um tempo em que a esperança de um mundo melhor lhes proporcionava algum tipo de conforto e alegria. De qualquer forma, não creio que naquela época, vocês fossem fingidos; vocês realmente se consideravam pecadores. Pela compaixão do Altíssimo, pelo amor de Deus, rogo-lhes que parem e pensem! Não bebam o cálice dos demônios depois de terem bebido o cálice do Senhor. Não entreguem à condenação a alma que antes parecia oferecer oferta suave por sua salvação. A vida eterna é um prêmio muito valioso para se brincar com ele. Que o Espírito de Deus faça o que eu não posso fazer. Que Ele envie esta mensagem às pessoas a quem ela se destina.
E, agora, em segundo lugar, temos que lidar com os negligentes, os imprudentes, os dissolutos:
II. AQUELES QUE NUNCA FORAM DESPERTOS — na avaliação moral ou imoral do mundo. Jonas não se lembrou do seu Deus até sua alma estar desfalecida dentro dele; e o pecador negligente, via de regra, nunca se lembra de Deus até estar sob a opressão da lei, ou a aflição da dor e da punição; até sua alma estar prestes a desfalecer dentro dele. Agora, espero que alguns de vocês sejam levados a ter esse sentimento.
Que tipo de desfalecimento geralmente sentem as pessoas que estão sob a disciplina salvadora do Espírito de Deus?
Há o desfalecimento causado pelo horror da sua presente condição. Imagine uma pessoa que se deita à beira de um penhasco e acaba pegando no sono. De repente ela desperta e percebe que se movimentou durante o sono e está a um palmo do precipício; quando olha lá para baixo, vê as rochas escarpadas e o mar agitado. Como será que ficam seus nervos quando ela percebe onde está e o risco que corre? Da mesma forma, muitos pecadores abrem os olhos para a situação perigosa em que se encontram. De repente, eles acordam e descobrem que estão no limiar da ira eterna, diante de um Deus irado que está brandindo uma espada terrível, determinado a cravá-la em seu coração. Cada pessoa não convertida neste recinto está sobre uma prancha que paira sobre a boca do inferno; a prancha está podre; está dependurada apenas por uma corda sobre as mandíbulas da perdição, e os fios da corda podem se romper a qualquer instante. Se alguém reconhece a realidade da sua situação, não é de admirar que desfaleça.
Além disso, o desfalecimento pode surgir do pavor de horrores iminentes. Será possível imaginar o desespero dos pobres passageiros a bordo daquele navio que recentemente naufragou em mar aberto, ante a perspectiva de serem tragados vivos, sem saber para onde iriam? Não deve ter sido fácil manter o ânimo quando sua condenação parecia tão próxima. Assim, quando Deus desperta a alma com o som de uma tempestade, a alma olha para fora e vê o oceano da ira divina prestes a engoli-la. Os gritos das almas perdidas a apavora e ela diz para si mesma: “Logo vou me misturar a elas, minha voz se juntará à sua dolorosa companhia; em poucas horas uma espada flamejante estará em meu calcanhar e serei expulsa da presença de Deus”. Então, a alma alarmada desfalece ante a ideia do julgamento que está por vir.
A alma do pecador desfalece, ainda, devido à sensação de fraqueza. Parece que a ideia que toma conta da pessoa é: “não tenho como evitar essa tragédia”. Sobre o pecador desperto surge tal sensação. Quando um pecador não conhece a si mesmo, pensa que ser salvo é a coisa mais fácil do mundo. Ele supõe que ter a paz de Cristo é tão fácil quanto um estalar de dedos. No entanto, quando Deus começa a trabalhar na sua vida, ele diz: “Eu queria acreditar, mas não posso.”, e então clama: “Ó, Deus, creio que é tão impossível ter fé quanto guardar a Tua lei, a menos que Tu me ajudes!”. Antes, ele achava que poderia reformar a si mesmo e se tornar tão santo quanto um anjo; mas, agora, ele sabe que não pode fazer nada, por isso, clama em sua fraqueza: “Ó, Deus, que criatura pobre, inútil e impotente eu sou!”.
Às vezes, o desfalecimento virá de tal forma que posso dizer que será uma sensação horrível. Lembro-me bem de quando tive essa sensação. Pensei em desistir de orar, pois me parecia uma coisa inútil; mas eu não podia deixar de orar; eu precisava orar, mas para mim era como se não tivesse orado. Achei que nunca mais ia querer ouvir o evangelho; no entanto, havia um fascínio em sua pregação que me fazia querer ouvi-lo. Eu ouvia dizer que Cristo era gracioso para com os pecadores, mas não conseguia acreditar que fosse gracioso para comigo. Pouco importava se eu ouvisse uma promessa ou uma ameaça. Eu gostava mais das ameaças. As ameaças pareciam ser exatamente o que eu merecia e me provocavam algum tipo de reação. No entanto, quando ouvia uma promessa, eu estremecia com a sensação sombria de que não era útil para mim; eu já me sentia condenado. As dores do inferno tomavam conta de mim, tão torturada ficava minha alma com os presságios de uma condenação sem fim. Outro dia, ouvi falar de um jovem ministro que abandonou sua igreja, e orei por ele. Qual, vocês acham, foi minha petição? Pedi para que Deus o fizesse sentir o peso da Sua mão, pois não posso imaginar que alguém que já sentiu o peso da mão de Deus possa, depois disso, duvidar do Seu ser, da Sua soberania ou do Seu poder. Creiam-me, irmãos, a fim de que algumas pessoas abandonem seu amor pelo pecado, sejam purificadas da sua própria justiça e sejam levadas a depender somente Dele, Deus as leva a sentir uma angústia tão indescritível, que elas não poderiam tolerá-la por muito tempo sem se sentir absolutamente insanas. Alguns não podem ser atraídos de outra forma. Posso estar me dirigindo a tais pessoas neste momento. Sinceramente, espero que sim. Vocês podem sentir a mão de Deus. Sentem todo o seu peso e, sob ele, são esmagados como uma mariposa é esmagada pelos dedos de uma pessoa. Assim sendo, tenho uma mensagem de Deus para vocês. Quando Jonas estava na mesma situação, ele se lembrou de seu Deus. Diga-me, pobre coração, “O que dizes — o que dizes para te lembrares do teu Deus?”.
O caso que vou descrever agora não é exatamente o de John Newton1, mas é da sua experiência que tiro minha ilustração. Havia um rapaz que tinha um pai muito bom, um verdadeiro crente. Quando ficou mais velho, ele não gostava da sua profissão, por isso, disse ao pai: “Embora esteja sob sua autoridade, pretendo seguir meu próprio caminho; outras pessoas se divertem e eu também quero me divertir, mas não posso fazer isso enquanto estiver debaixo do seu teto. Vou seguir meus sonhos.”. Ele se tornou marinheiro. Quando estava no mar, ele descobriu que nem tudo era como ele queria que fosse; o trabalho que tinha a fazer era muito diferente do que estava acostumado; mesmo assim, ele não desistiu. Quando chegaram ao primeiro porto, ele deu vazão às suas paixões. “Ah!”, disse ele, “Isso é que é vida! É muito melhor do que ficar na casa do meu pai e viver sob as rédeas da minha mãe. Cara, esse é o tipo de vida que eu quero!”. Ele embarcou novamente e, onde quer que o navio atracasse, o porto se tornava um escoadouro para seus vícios. Ele era um rapaz que raramente praguejava ou bebia e, quando voltava à Inglaterra, em geral, não falava mal da religião, nem dos escrúpulos de consciência do seu pai. Acontece que, certo dia, ele teve de enfrentar uma grande tormenta. Ele passou horas bombeando a água do navio e, quando parecia que ia terminar, começava tudo de novo, pois o navio estava prestes a naufragar, e todo mundo precisava dar duro durante muitas horas. As rajadas de vento eram fortes e a tempestade era tremenda. Por fim, eles entenderam que nada podia salvá-los; havia rochedos na costa e o navio ia dar contra eles! Ele se amarrou no mastro e flutuou a noite toda, e na seguinte, e na outra, quase sem esperança de se salvar. Durante esse tempo, ele teve alguns lampejos de consciência e não conseguiu deixar de pensar na sua mãe e no seu pai. Mas ele não se deixaria abater por tão pouco. Ele tinha o coração endurecido, e não ia desistir. Ele foi dar na praia, no meio de um povo selvagem. Eles cuidaram dele e lhe deram comida, embora sua refeição fosse bastante escassa. Então, começou a trabalhar como escravo. Seu senhor era muito duro com ele, e sua esposa era especialmente cruel. Ele comia muito pouco e era espancado com frequência. Mesmo assim, ele aguentava firme e esperava por dias melhores. No entanto, exausto e faminto, sua saúde física e mental começou a ficar cada vez mais fraca. Não era de admirar que a febre o tenha assaltado. Quem ele tinha para cuidar dele? Quem ele tinha para se importar com ele? Aquelas pessoas o tratavam como um cão e ninguém ligava para ele. Ele mal conseguia se mexer ou se mover. No meio da noite, em vão ele desejou um gole d’água; parecia que ia morrer de sede. Ele ergueu a voz, mas ninguém o atendeu. Não houve resposta ao seu apelo. Assim, ele pensou: “Ó, Deus, se eu pudesse voltar para a casa de meu pai!”. E foi assim que, quando chegou ao seu limite, é que ele pensou na sua casa.
Ora, o que aconteceu com John Newton vai acontecer, e acontece, com muitos pecadores. Ele nunca voltaria para Deus; mas, no final, sentiu que não havia outro lugar para ir. Ele foi levado ao completo desespero. Nesse dilema, seu coração disse: “Ah! Que eu possa encontrar o Senhor!”.
Vou lhes contar uma história. Uma porção de marinheiros ia para o mar. Quando estavam prestes a zarpar, o proprietário do navio lhes disse: “Esperem! Comprei um barco salva-vidas2. Ponham-no a bordo.”. Eles responderam: “Pra quê? Não precisamos disso. A gente não acredita nessas coisas. É só uma tranqueira moderna. Não sabemos como funciona e nunca vamos usá-lo.”. “Coloquem-no a bordo e deixem-no lá.”, disse o capitão. “Ora, capitão”, disse o contramestre, “é só um barco de nada, não é? Não consigo imaginar o que o proprietário quer colocando uma coisa dessas a bordo.”. E os velhos marujos, enquanto caminhavam pelo convés do navio, diziam: “Nunca vimos uma coisa dessas na vida! Imagina o velho Ben Bolt levando um treco desses a bordo! Não acredite em tais geringonças!”. Logo depois, uma brisa forte começou a soprar e se transformou num vendaval — num furacão — num perfeito tornado! Hora de descer o barco salva-vidas, capitão. “Não, não, bobagem!” Desça o barco salva-vidas! “Não, outros barcos saíram e, um após o outro, se romperam e emborcaram.”. Então, eles trouxeram mais um, e ele também não conseguiu enfrentar a tempestade. Lá foi ele, bem na crista das ondas — não aguentou e virou de ponta-cabeça. Para eles, estava tudo acabado! “O que faremos, capitão?”. “Contramestre, tente o barco salva-vidas”.
Só então; quando todos os recursos se foram, quando todos os outros barcos foram lançados ao mar e quando o navio estava prestes a afundar, eles pegaram o barco salva-vidas. Que assim seja. Que o Senhor atire todos os barcos no mar. Que Deus Se agrade de destruir o seu navio; que Ele faça estremecer cada viga desse navio e faça você embarcar no barco salva-vidas. Receio que alguns aqui só aceitem este conselho quando estiverem no fundo do poço. Que haja, então, uma tormenta tal que os leve a aceitar a Cristo. Isso feito, não haverá mais tormentas a temer. Isso feito, por mais forte que seja o bramido da tempestade, você estará a salvo, pois Cristo estará no barco com você.
Só mais duas ou três palavrinhas e eu termino. Deus Se agradou de dar o Seu Filho amado, o Seu único Filho, para morrer uma morte terrível, não por justos, mas por pecadores. Jesus Cristo veio ao mundo buscar e salvar aquele que estava perdido. Se você é um pecador, você é o tipo de pessoa que Cristo veio salvar. Se você é um perdido, você é o tipo de pessoa que Cristo veio buscar. Que a sua tristeza lhe sirva de conforto, pois é indicação de que você é o tipo de pessoa que Cristo veio abençoar. Que o seu desespero o livre do desespero, pois quando você se desespera é que há esperança para você. Quando você não puder fazer mais nada, Deus fará tudo. Quando estiver vazio de seus próprios conceitos, haverá lugar para Cristo entrar em seu coração. Quando estiver despido, as vestes de Cristo lhe serão fornecidas. Quando estiver faminto, o pão que desce do céu lhe será dado. Quando estiver com sede, a água da vida será sua. Que esse desespero, esse terror, esse alerta, esse desfalecimento, essa fraqueza, simplesmente o levem a dizer: “Sou aquele a quem Cristo chama para Si. Irei a Ele e, se perecer, perecerei somente ali.”. E, se você crer em Cristo, jamais perecerá, nem será arrebatado da Sua mão. Que você creia nEle, aqui e agora. Amém.
Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza
NOTAS DO TRADUTOR:
1. John Newton (1725-1807), pastor anglicano, autor do Hino Amazing Grace, o qual, antes de sua conversão, foi traficante de escravos. Sua história é contada por Brian Edwards no livro De Traficante de Escravos a Pregador, lançado no Brasil pela Editora Fiel.
2. O bote salva-vidas a que Spurgeon se refere foi criado por Maria Beasley (1836-1913).
"Pouco se sabe sobre a inventora Maria Beasley, apenas que queria criar um bote salva-vidas mais resistente, à prova de fogo e compacto. Sua versão, lançada em 1884 em uma exposição de Nova Orleans, era mais fácil de dobrar e armazenar: até 1870, o bote era basicamente uma tábua de madeira."