terça-feira, 9 de agosto de 2022

O Tesouro da Graça

Sermão nº 295

Rev. Charles H. Spurgeon

Ministrado em 22 de janeiro de 1860

Exeter Hall, Strand, Londres, Inglaterra


“A remissão dos pecados, segundo a riqueza da sua graça” — Efésios 1:7

Da mesma forma que Isaías está entre os profetas, Paulo está entre os apóstolos; cada qual com sua própria distinção, levantado por Deus para um propósito notável, reluzindo como uma estrela de brilho extraordinário. Isaías falou mais de Cristo, e descreveu com mais detalhes Sua paixão e morte, do que todos os outros profetas juntos. Paulo proclamou a graça de Deus — livre, plena, eterna e soberana — muito mais que todo o glorioso colégio apostólico. Às vezes, ele subia a alturas tão incríveis ou mergulhava em águas tão profundas que nem Pedro conseguia segui-lo. Este prontamente confessou: “nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada, coisas difíceis de entender” (2Pe 3.15-16). Judas podia escrever sobre o juízo de Deus e fazer admoestações com palavras terríveis, “homens ímpios, que transformam em libertinagem a graça de nosso Deus” (Judas 1:4). No entanto, ele não podia dizer, como Paulo, como o propósito da graça foi planejado na Mente eterna ou como a experiência da graça é sentida e percebida no coração humano. Há também Tiago que, como ministro fiel, podia lidar muito bem com as evidências práticas do caráter cristão. E, mesmo assim, ele parece não sair da superfície. Ele não se aprofunda no substrato onde deve repousar o solo visível de todas as graças espirituais. Até João, o mais favorecido de todos os apóstolos que foram companheiros de nosso Senhor na terra — por mais doces que sejam as palavras do discípulo amado sobre a comunhão entre o Pai e Seu Filho Jesus Cristo — até mesmo ele não fala da graça com tanta riqueza quanto Paulo, “para que, em mim, o principal, evidenciasse Jesus Cristo a sua completa longanimidade, e servisse eu de modelo a quantos hão de crer nele para a vida eterna” (1 Timóteo 1:16). Não que, de fato, possamos ter a liberdade de preferir um apóstolo a outro. Não podemos dividir a igreja, dizendo eu sou de Paulo, eu de Pedro, e eu de Apolo; mas podemos reconhecer o instrumento que Deus aprouve usar; podemos admirar a maneira pela qual o Espírito Santo o dispôs para a Sua obra; podemos, com as igrejas da Judeia, “glorificar a Deus em Paulo”. Entre os primeiros pais da Igreja, Agostinho foi apontado como o “Doutor da Graça”, pelo tanto que se deleitava nas doutrinas que exibem a generosidade do favor divino. E, com certeza, podemos afirmar o mesmo de Paulo. Entre seus pares, ele superou a todos ao falar da graça que traz salvação. O senso de graça permeava cada um de seus pensamentos da mesma forma que o sangue da vida corre em cada uma das veias de uma pessoa. Quando fala da sua conversão, ele diz que “foi chamado pela graça”. E não somente isso, ele vê a graça antes da sua conversão, “separando-o desde o ventre da sua mãe” (Gálatas 1:15). Ele atribui todo o seu ministério à graça. “A mim, o menor de todos os santos, me foi dada esta graça de pregar aos gentios o evangelho das insondáveis riquezas de Cristo” (Efésios 3:8). Nós o vemos, em qualquer ocasião e em quaisquer circunstâncias, estando enfermo ou subindo ao terceiro céu pela revelação, tendo apenas uma conta a dar de si mesmo: “Mas, pela graça de Deus, sou o que sou” (1 Coríntios 15:10).

    Não há ministros que lutem com tanta convicção e inflexibilidade pela graça livre, soberana e incondicional, quanto aqueles que, antes de sua conversão, se deleitavam com pecados grosseiros e ultrajantes. Pregadores bem-educados, criados em lares piedosos e enviados do berço à escola, da escola à faculdade e da faculdade ao púlpito, que não enfrentaram muitas tentações ou não foram resgatados de antros profanos, comparativamente, pouco sabem e pouca ênfase dão à livre graça. Só um Bunyan, cuja boca exalava maldições, ou um Newton, um verdadeiro monstro pecaminoso, é como aqueles que não se esquecem, nem por um minuto, da graça que os arrebatou da cova e os tirou como um tição da fornalha. Estranho, de fato, é que Deus faça assim. A providência é tão inescrutável que permite a alguns de Seu povo escolhido vagar e perambular até onde uma ovelha pode se extraviar. Tais homens, no entanto, se tornam os mais valentes defensores da graça que salva o pecador da desgraça eterna! 

    Nesta manhã, pretendemos lhes falar sobre as riquezas da graça de Deus, este é o Tesouro; depois, falaremos sobre o Perdão de Pecados, o qual deve ser julgado por essa Medida; o perdão é segundo as riquezas da Sua graça; e então, vamos encerrar considerando alguns privilégios relacionados a ela.

    1. Primeiro, consideremos as RIQUEZAS DA SUA GRAÇA. Ao tentar sondar aquilo que é insondável, suponho que devamos usar algumas das comparações com as quais costumamos avaliar a riqueza dos ricos e poderosos deste mundo. Certa vez, o embaixador espanhol, nos dias gloriosos da Espanha, foi visitar o embaixador francês e foi convidado por ele para ver os tesouros do seu rei. Todo orgulhoso, o embaixador francês mostrou seus depósitos repletos dos bens mais caros e preciosos da terra. “Será que vocês têm gemas tão preciosas”, disse ele, “ou alguma vez já viram coisas tão magníficas nas terras do seu rei?”. “Você acha que o seu rei é rico?”, respondeu o embaixador da Espanha, “porque os depósitos de tesouro do meu rei não têm fundo!” — fazendo alusão, é claro, às minas do Peru e PetrosaNT1. O mesmo acontece com as riquezas da graça, há minas tão profundas que o entendimento finito do homem sequer pode imaginar. Por mais penetrante que seja nossa investigação, ainda existe um abismo tão profundo que só nos causa perplexidade. Quem pode desvendar os atributos de Deus? Quem pode compreender o Todo-Poderoso com perfeição? Não conseguimos nem avaliar a qualidade e as propriedades da graça conforme ela se encontra na mente de Deus! O amor no peito humano é paixão. Com Deus não é assim. O amor é um atributo da Essência Divina. Deus é amor. Nos homens, graça e generosidade podem se tornar um hábito, mas, com Deus, a graça é um atributo intrínseco da Sua Natureza. Ele nunca deixará de ser gracioso. Por necessidade da Sua divindade, Ele é onipotente e onipresente e, da mesma forma, por absoluta necessidade da Sua Divindade, Ele é gracioso!

    Portanto, irmãos, entremos nesta mina extraordinária dos atributos da graça de Deus. Cada um de Seus atributos é infinito, por isso, o atributo da graça não tem limites. É impossível imaginar a infinitude de Deus; sendo assim, por que eu deveria tentar descrevê-la? No entanto, lembre-se de que, como os atributos de Deus têm todos a mesma amplitude, a dimensão de um deve ser igual à do outro. Ou, ainda, se um atributo é ilimitado, o outro também é. Ora, é impossível conceber qualquer limite para a Onipotência de Deus. O que ele não pode fazer? Ele pode criar, Ele pode destruir; Ele pode chamar à existência uma miríade de universos ou pode apagar a luz de miríades de estrelas com a mesma facilidade com que apagamos uma vela! Ele tem apenas que desejar e infindáveis criaturas O louvam; outro desejo e as mesmas criaturas se desvanecem na sua própria insignificância, como a espuma do mar se desfaz na onda que a leva e se perde para sempre. O astrônomo aponta seu telescópio para o espaço longínquo e não consegue encontrar os marcos do poder criador de Deus; mas se ele achasse que os encontrou, então teríamos de informá-lo que todos os mundos do mundo que se aglomeram no espaço, abundantes como as gotas de orvalho que cobrem os prados pela manhã, são apenas fragmentos do poder de Deus. Ele pode fazer muito mais que isso, pode reduzi-los a nada e começar tudo de novo! Ora, tão ilimitada quanto Seu poder é a infinitude da Sua graça. Como ele tem poder para fazer qualquer coisa, Ele também tem graça suficiente para dar qualquer coisa — dar tudo, até mesmo aos piores pecadores! 

    Pense em qualquer outro atributo de Deus — Sua Onisciência, por exemplo, não há limites para ela. Sabemos que Seus olhos estão sobre qualquer indivíduo da nossa raça. Ele o vê tão detalhadamente quanto se fosse a única criatura da terra. A águia se gaba de ter uma visão poderosa e, embora possa olhar diretamente para o sol, também pode, mesmo estando a grande altura, detectar o movimento de pequenos peixes nas profundezas do mar. Contudo, o que é isso comparado à onisciência de Deus? Seus olhos observam o sol percorrendo o seu caminho; Seus olhos percebem o cometa voando pelo espaço. Seus olhos perscrutam todos os limites da criação habitada ou inabitada. Nada há que possa se esconder da luz, pois com Ele não há trevas. “Se subo aos céus, lá estás; se faço a minha cama no mais profundo abismo, lá estás também; se tomo as asas da alvorada e me detenho nos confins dos mares” (Salmo 139:8,9)

Sua mão logo chegará

E o fugidio prenderá


Não há limites para o Seu entendimento, nem para a Sua graça. E, assim como Seu conhecimento abrange todas as coisas, Sua graça abrange todos os pecados, todas as provações e todas as fraquezas das pessoas que estão sob o Seu cuidado. Ora, queridos irmãos, da próxima vez que tivermos receio de que a graça de Deus possa se exaurir, examinemos essa mina e pensemos em tudo quanto já foi tirado dela sem que ela diminuísse um milímetro sequer. Toda água já evaporada do mar jamais diminuiu sua profundidade, e todo o amor e misericórdia demonstrados por Deus aos incontáveis membros da raça humana jamais diminuíram uma gota sequer da grandeza da Sua graça.

Mas sigamos em frente, às vezes avaliamos a riqueza das pessoas não apenas pela posse de minas e coisas afim, mas também pelo que elas guardam em seu tesouro. Por isso, vou levá-los, irmãos, ao reluzente tesouro da graça divina. Vocês sabem o seu nome, é chamado de Aliança Eterna. Já ouviram falar da maravilhosa história acontecida na eternidade passada, antes da fundação do mundo? Deus sabia que o homem cairia, mas, no Seu propósito eterno e na Sua graça infinita, Ele determinou o resgate de uma multidão que não se pode contar. Foi um Conselho solene entre Pai, Filho e Espírito Santo. Assim disse o Pai: — “Desejo que aqueles a quem escolhi sejam salvos!” E o Filho disse: — “Pai, estou pronto a derramar Meu sangue e morrer para que a Tua justiça seja satisfeita e o Teu propósito seja executado.” E o Espírito falou: — “Desejo que aqueles a quem o Filho redimir com sangue sejam chamados pela graça, sejam vivificados, sejam preservados, sejam santificados e aperfeiçoados, e levados em segurança para casa”. Então a Aliança foi escrita, assinada, selada e ratificada pela Santíssima Trindade. O Pai deu Seu Filho, o Filho deu a Si mesmo e o Espírito Santo prometeu Sua influência e Sua presença a todos os escolhidos. Portanto, o Pai deu ao Filho todas as pessoas a quem Ele escolheu, o Filho deu a Si mesmo aos eleitos e os levou a ter comunhão com Ele; e, então, o Espírito, na Aliança, prometeu que todos os escolhidos seriam finalmente levados para casa em segurança. Sempre que penso na antiga aliança da graça, fico totalmente extasiado e maravilhado pela sua graça. Seja qual for o atrativo, eu jamais poderia ser arminiano; a verdadeira poesia da nossa santa religião está nas coisas antigas das colinas eternas — a gloriosa aliança firmada, selada e ratificada, em todas as coisas bem ordenada desde a eternidade passada.

    Pare e pense, querido ouvinte, muito antes da criação do mundo, muito antes de Deus ter estabelecido as fundações dos montes ou ter derramado as águas dos mares da concha das Suas mãos, Ele já tinha escolhido o Seu povo e colocado neles o Seu coração. A eles, Ele deu a Si mesmo, Seu Filho, Seu céu, Seu tudo. Por eles, Cristo determinou deixar Sua alegria, Seu lar, Sua vida. A eles o Espírito prometeu todos os Seus atributos, para que fossem abençoados. Ó graça divina, quão gloriosa és, sem princípio nem fim. Como te louvarei? Tangei a harpa, ó anjos; cantai estes nobres temas, o amor do Pai, o amor do Filho, o amor do Espírito.

    Irmãos, se pensarmos bem, isso nos ajuda a avaliar corretamente as riquezas da graça de Deus. Quando lemos os termos da aliança, do começo ao fim, vemos que ela envolve eleição, redenção, vocação, justificação, perdão, adoção, céu e imortalidade — ao ler tudo isso, podemos dizer: "Esta é a riqueza da graça — o Deus grande e infinito! Quem é semelhante a Ti, ó Deus, por todas as riquezas do teu amor”!

    Além disso, a riqueza dos grandes reis muitas vezes pode ser avaliada pela grandiosidade dos monumentos que eles ergueram para registrar seus feitos. Hoje ficamos impressionados com as maravilhosas riquezas dos reis de Nínive e da Babilônia. Os reis da atualidade, com todos os seus aparatos, não conseguiriam construir a quantidade absurda de monumentos como aqueles por onde passeava Nabucodonosor. Isso sem falar das pirâmides, onde podemos ver o que a riqueza das nações conseguiu realizar. Do outro lado do mar, no México e no Peru, vemos as relíquias de povos semi bárbaros e ficamos atordoados e maravilhados ao pensar nas jazidas de minérios e em toda riqueza que eles devem ter possuído para que tais obras pudessem ser construídas. Talvez possamos avaliar melhor as riquezas de Salomão se pensarmos nas grandes cidades que ele construiu no deserto, Tadmor/Palmira. Só quando visitamos suas ruínas, observando suas enormes colunas e sua escultura magnífica, é que percebemos o quanto Salomão era rico. Caminhando por entre elas, podemos nos sentir como a Rainha de Sabá, pensando que as Escrituras não falam nem da metade da riqueza de Salomão. Irmãos, Deus nos leva a examinar tesouros bem maiores que os tesouros de Salomão ou Nabucodonosor, ou de Montezuma, ou de qualquer um dos faraós. Olhe além e veja, ao redor do trono, a grande multidão vestida de branco, comprada pelo sangue de Cristo — ouça como eles cantam com vozes triunfantes e melodias seráficas: “Àquele que nos amou, e, pelo seu sangue, nos libertou dos nossos pecados, a ele a glória e o domínio pelos séculos dos séculos. Amém!” E, quem são eles? Quem são esses troféus da graça de Deus? Alguns vieram dos antros de prostituição; outros das tavernas de bebedeira. E, mais ainda, as mãos de alguns, hoje tão puras e belas, um dia estiveram manchadas com o sangue dos santos. Vejo os homens que pregaram na cruz o Salvador; homens que amaldiçoaram a Deus e invocaram sobre si morte e condenação. Vejo Manassés, que derramou tanto sangue inocente, e o ladrão da cruz que, no último instante, olhou para Cristo e disse: “Senhor, lembra-te de mim”. E nem é preciso ir tão longe; olhe ao seu redor, meu irmão, talvez você não conheça quem está assentado a seu lado. Mas há histórias da graça que podem ser contadas aqui que fariam os próprios anjos cantar como jamais cantaram. Bem sei como este rosto se enche de lágrimas quando ouve as histórias de como a livre graça operou nesta igreja. Há também aqueles a quem conheço, mas que, obviamente, vocês não conhecem, os quais estiveram entre as piores pessoas do mundo, a escória da sociedade! Alguns, que antes respiravam blasfêmias e viviam embriagados, agora estão aqui  — servos do Senhor e da Sua igreja — e seu maior prazer é dar testemunho do Salvador que encontraram. Ah, meu ouvinte, talvez sejas um destes troféus, e se assim for, a melhor prova das riquezas da graça de Deus é aquela que encontras na tua própria alma! Suponho que Deus seja gracioso quando vejo a salvação de outras pessoas, mas sei que Ele é, porque Ele me salvou. Aquele garoto teimoso e rebelde, que zombava do amor de uma mãe e não se comovia com todas as suas orações, que só desejava conhecer um pecado para poder cometê-lo; não é ele que está aqui hoje para pregar o evangelho da graça de Deus a vocês? Sim. Então, não há pecador fora do inferno que tenha tanto pecado que a graça não possa salvá-lo O amor que um dia me alcançou também pode alcançá-lo. Agora que conheço as riquezas da graça, espero prová-las e senti-las no fundo do meu coração. Caro ouvinte, que você também as conheça e possa juntar-se à nossa poetisa, que diz:

Então mais alto que a multidão cantarei

Enquanto ressoam as retumbantes mansões celestiais

Com os brados da graça soberanaNT2

Avancemos um pouco mais. Até aqui examinamos a mina, os tesouros e os monumentos. Mas ainda há mais. Uma coisa que impressionou a rainha de Sabá a respeito das riquezas de Salomão foi a suntuosidade da sua mesa (1Re 10; 2Cr 9). As multidões se sentavam para comer e beber e, embora fosse muita gente, todos tinham o suficiente e ainda sobrava. Ela ficou fora de si quando viu as provisões que foram trazidas para um único dia. Neste momento não me recordo da passagem que fala sobre a quantidade de bois cevados, bois de pasto, veados e gazelas e caça de todos os tipos, e de quantas medidas de farinha e galões de óleo eram trazidos diariamente à mesa de Salomão; mas era algo incrívelNT3. E as multidões que iam festejar também eram incríveis, mas todos tinham o suficiente. Agora, meus irmãos, pensemos na hospitalidade diária do Deus da graça. Milhares do Seu povo estão hoje sentados para festejar. Famintos e sedentos, eles vêm ao banquete com grande apetite; no entanto, ninguém vai embora com fome. Há o suficiente para cada um, o suficiente para todos, o suficiente para sempre. Embora as hostes que ali se alimentem sejam incontáveis como as estrelas do céu, não encontro ninguém sem a sua porção. O Senhor abre Suas mãos e supre a necessidade de cada santo vivo sobre a face da terra. Pense em quanta graça um santo requer a cada dia; a quantidade é tão grande, que nada, a não ser o Infinito, poderia supri-la. Todos os dias queimamos tanto combustível para manter o fogo do amor em nosso coração que poderíamos acabar com as riquezas das minas de carvão da Inglaterra num instante. Com certeza, se não fossem os infinitos tesouros da graça, o consumo diário de um único santo poderia exigir tudo o que se encontra sobre a face da terra. Além disso, não é somente um santo, mas milhares deles, não por um único dia, mas por muitos anos — não só por muitos anos, mas geração após geração, século após século, raça após raça, vivendo na plenitude de Deus em Cristo. E ainda assim, nenhum deles tem fome. Todos bebem até serem saciados; todos comem e ficam satisfeitos. Quantas riquezas da graça, então, podemos ver na suntuosidade da Sua hospitalidade!   

    Às vezes, irmãos, penso que, se eu pelo menos pudesse ficar com as sobras na porta dos fundos da graça de Deus eu já estaria satisfeito; tal como a mulher que disse: “Sim, Senhor, porém os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos” (Mateus 15:27); ou como o filho pródigo: “trata-me como um dos teus trabalhadores” (Lucas 15:19).  No entanto, lembre-se de que nenhum filho de Deus foi feito para viver de sobras. Deus não dá os restos da Sua graça nem ao pior deles, mas todos são alimentados como Mefibosete (2 Samuel 9.13); eles comem os pratos mais saborosos na própria mesa do rei. E, se um deles pode falar pelos demais, creio que em matéria da graça todos temos a refeição de Benjamim (Gênesis 43.34) — temos dez vezes mais do esperávamos e, embora não mais que as nossas necessidades, ainda assim, muitas vezes ficamos impressionados diante da maravilhosa abundância da graça que Deus nos dá na aliança e na promessa.

    Agora vejamos outro ponto para ilustrar a grandeza das riquezas da graça de Deus. As riquezas de uma pessoa muitas vezes podem ser julgadas pelas vestes de seus filhos, pela maneira como seus servos e seus familiares estão vestidos. Não se espera que filhos de pessoas pobres, embora bem vestidos, tenham roupas semelhantes às usadas por filhos de príncipes. Vejamos, então, quais são as vestes trajadas pelo povo de Deus e como eles são cuidados. Aqui falo novamente de um assunto que requer muita imaginação, e a minha não é das melhores. Os filhos de Deus estão envoltos em um manto, um manto sem costura, que a terra e o céu não poderiam comprar se um dia fosse perdido. Sua textura é superior ao fino linho dos mercadores, sua brancura é mais alva que a neve. Nenhum tear na terra poderia tecê-lo, mas Jesus deu Sua vida para fazer o meu manto de justiça. Havia uma gota de sangue em cada laçada e cada fio foi tecido das agonias do Seu próprio coração. É um manto divino, completo; muito melhor que aquele usado por Adão na perfeição do Éden. Adão tinha apenas uma justiça humana, embora perfeita, mas nós temos uma justiça divinamente perfeita. Surpreendentemente, minh’alma, estás vestida, pois as vestes do teu Salvador estão sobre ti; o manto real de Davi está envolto em seu Jônatas. Veja o povo de Deus, veja como também estão vestidos com as vestes da santificação. Será que já houve um manto assim? Ele é literalmente engomado com joias. Deus veste assim até mesmo o menor do Seu povo, todos os dias, como se fosse dia de casamento. Ele os adorna como uma noiva adorna a si mesma com joias. Ele lhes deu Etiópia e Sabá e os adornará com o ouro de Ofir. Que riquezas da graça deve haver, então, no Deus que veste assim os Seus filhos!

    E, para concluir este ponto que mal comecei, se você quiser conhecer todas as riquezas da graça divina, pense no coração do Pai ao enviar seu Filho à terra para morrer. Pense nas linhas do Seu semblante ao derramar Sua ira sobre o Seu amado Filho unigênito. Pense também na misteriosa escrita na carne e na alma do Salvador quando, em agonia na cruz, as ondas de tormento cada vez maiores rolam sobre o Seu peito. Se queres saber o que é o amor, deves ir a Cristo e ver um homem tão cheio de dor que Sua cabeça, Seus cabelos e Suas vestes estão ensanguentadas. Foi o  amor que O fez suar, por assim dizer, grandes gotas de sangue. Se quiseres saber o que é o amor, deves olhar para o Onipotente escarnecido por Suas criaturas, deves ouvir o Imaculado caluniado pelos pecadores, deves ouvir o Eterno gemendo e clamando na agonia da morte, “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste”? Enfim, para resumir, as riquezas da graça de Deus são infinitas, além de todos os limites — são inesgotáveis; nunca se acabam; são toda-suficientes; são suficientes para cada alma alcançada por elas. Serão suficientes para sempre, enquanto durar a terra, até o último vaso de misericórdia ser levado para casa em segurança. 

    Então, podemos dizer muito sobre as riquezas da Sua graça.

    II. Por um minuto ou dois, deixem-me discorrer sobre O PERDÃO DOS PECADOS. O tesouro da graça de Deus é a medida do nosso perdão; o perdão dos nossos pecados é de acordo com as riquezas da Sua graça. Portanto, podemos inferir que o perdão que Deus concede ao penitente não é um perdão mesquinho. Você já pediu perdão a alguém e a pessoa disse: “OK, eu te perdoo”, e você pensou: “Eu nem teria pedido perdão se achasse que ele iria me perdoar desse jeito. Eu poderia continuar como estava, em vez de ser perdoado com tanta má vontade”. No entanto, quando Deus perdoa alguém, mesmo que seja o maioral dos pecadores, Ele estende a Sua mão e o perdoa de bom grado. Na verdade, há tanta alegria no coração de Deus quando Ele perdoa quanto há no coração do pecador quando é perdoado. Deus é tão abençoado em dar quanto nós somos em receber. É da Sua própria natureza perdoar. Ele deve ser gracioso, deve ser amoroso e, quando Ele deixa Seu coração de amor nos libertar dos nossos pecados, é com um fluxo ilimitado. Ele o faz voluntariamente, sem restrição. Mais uma vez: se o perdão é proporcional às riquezas da Sua graça, podemos ter certeza de que é um perdão ilimitado; não é o perdão de apenas alguns pecados, deixando o resto por nossa conta. Não, isso não seria divino, não seria consistente com as riquezas da Sua graça. Quando Deus perdoa, Ele retira a marca de cada pecado que o crente já cometeu ou irá cometer. Este último ponto talvez o deixe chocado, mas eu creio, como John KentNT4, que no sangue de Cristo

Há perdão para todas transgressões passadas

Não importa quão negras tenham sido

Ó! Minh’alma, que maravilhosa visão

Para os pecados que vierem também há perdão

Sejam quais forem os nossos pecados, por mais odiosos, por mais numerosos que sejam, no momento em que cremos, cada um deles é apagado. No livro de Deus não há o registro de um pecado sequer contra alguém que esteja aqui hoje, cuja confiança está em Cristo. Nenhum pecado, nem mesmo a sombra ou a mancha ou o resquício de um pecado permanece, tudo se foi. Quando o dilúvio de Noé cobriu as montanhas mais altas, com certeza cobriu também os montículos; e, quando o amor Deus cobre os pequenos pecados, cobre também os grandes, e todos se vão de uma vez por todas! Quando o valor integral de uma conta é recebido, nada mais resta a ser cobrado; e, quando Deus perdoa os pecados de um crente, não sobra nenhum; nem mesmo um pequenino que possa ser trazido à Sua memória novamente. E não é só isso, quando Deus perdoa, Ele não só perdoa todos os pecados, Ele os perdoa de uma vez por todas. Alguns dizem que Deus perdoa as pessoas e ainda assim elas podem se perder. Mas que belo deus é esse! Eles acreditam que o pecador penitente encontra misericórdia, mas que, se ele tropeçar ou cair em algum momento, vai ser retirado da aliança da graça e perecer. Não posso e nem quero acreditar nesse tipo de aliança. Para mim, ela é totalmente desprezível. O Deus a quem amo, quando perdoa, não pune depois. Por um único sacrifício há plena remissão de todos os pecados que eram ou serão contra um crente. Mesmo que você viva até que todos os seus fios de cabelo embranqueçam três vezes, ou que os mill anos de Matusalém passem pela sua fronte, nem um único pecado será levantado contra você, e nem você será punido por qualquer um deles. O pecado é perdoado para sempre, totalmente perdoado, de modo que nem uma parte do castigo será executada contra você. No entanto, alguém diz: “Bem, mas como é que Deus pune os Seus filhos”? Eu respondo: “Não pune”. Ele os castiga como Pai, mas isso é diferente da punição de um juiz. Se o filho de um juiz fosse levado ao tribunal e fosse livremente perdoado de tudo o que fez de errado; se a justiça o exonerasse e absolvesse, mas ainda houvesse mal em seu coração, o pai, por amor ao filho, poderia ter de extirpá-lo. Existe uma grande diferença entre uma vara na mão do carrasco e uma vara na mão do pai. Deus me castiga se eu pecar contra Ele, ainda que não seja pela culpa do pecado — o castigo não é para isso — a cláusula penal foi eliminada. É apenas para que Ele cure o meu erro, para que Ele retire a loucura do meu coração. Será que você castiga seus filhos só porque está zangado com eles? Não, mas porque você os ama. Se você é um pai como deveria ser, o castigo é prova da sua afeição, e a dor no seu coração é maior que a dor no corpo dos seus filhos quando você os castiga por aquilo que fizeram de errado. Deus não está irado com Seus filhos, nem há pecado neles que Ele vá punir. Ele irá corrigi-los, mas não irá puni-los. Ó graça gloriosa! Este evangelho é digno de ser pregado!

No instante em que o pecador crê

E no Deus crucificado põe seu coração

De uma vez o perdão ele recebe

No sangue de Cristo há plena redenção

Tudo se foi; cada pedacinho se foi, por toda a eternidade, e ele sabe muito bem.

Agora, liberto do pecado, sigo livremente

Plena redenção tenho no sangue do Salvador

A seus pés minh’alma se prostra reverente

Um pecador salvo adorando o Redentor

    Assim sendo, tendo falado que o perdão do pecado é totalmente proporcional à graça de Deus, eu lhe pergunto: Amigo, você já foi perdoado? Seus pecados já se foram? Alguém diz: “Não, não posso dizer que se foram, mas estou fazendo o melhor que posso para mudar”. Ah! Você pode fazer o melhor que puder para mudar, e espero que consiga, mas isso nunca irá lavar uma única mancha dos seus pecados. “Mas”, diz outra pessoa, “será que posso, assim como sou, crer que meus pecados são perdoados”? Não, mas eu te digo o que podes fazer. Se Deus te ajudar, tu podes simplesmente lançar-te sobre o sangue e a justiça de Cristo. E, no momento em que fizeres isso, todos os teus pecados irão embora, e irão para nunca mais voltar. “Aquele que crê no Senhor Jesus será salvo”. Ele é salvo no momento da sua fé. Aos olhos de Deus, ele não é mais recebido como pecador; Cristo foi punido em seu lugar. Ele está envolto pela justiça de Cristo e é aceito no Amado. E alguém pode retrucar: “Acredito que uma pessoa, depois de muito tempo de vida cristã, possa ter certeza de que seus pecados foram perdoados, mas não consigo imaginar como posso saber disso no momento em que creio”. O conhecimento de nosso perdão nem sempre vem no momento em que cremos, mas a realidade do nosso perdão vem antes da nossa compreensão e somos perdoados antes de termos consciência disso. No entanto, se creres em Jesus Cristo de todo o teu coração, eu te direi: Se a tua fé for livre de toda a tua autoconfiança, tu saberás, hoje mesmo, que teus pecados estão perdoados, pois o testemunho do Espírito ratifica o testemunho do teu coração, e ouvirás aquela vozinha secreta dizendo: “Tem bom ânimo, filho; estão perdoados os teus pecados” (Mateus 9:2). “Ó”, diz outra pessoa, “eu daria tudo por isso”. Você poderia dar tudo o que tem, mas isso não tem preço. Você poderia dar o seu primogênito por suas transgressões; o fruto do seu corpo pelo pecado da sua alma. Poderia oferecer rios de azeite e a gordura de milhares de animais cevados. Você não pode comprar o perdão, mas pode tê-lo graça. Ele é gratuito e você é convidado a aceitá-lo. Reconheça o seu pecado e coloque a sua fé em Cristo, e ninguém saberá qualquer coisa sobre o seu pecado no Dia do Juízo. Ele será lançado nas profundezas do mar — será levado para sempre.

    Vou fazer uma ilustração e depois deixarei este ponto. Veja, lá está o Sumo Sacerdote dos judeus. Um bode é levado a ele — é chamado de “bode emissário”NT5. Ele põe as mãos sobre a cabeça do bode e começa a confessar os pecados. Você fará o mesmo? Jesus Cristo é o bode emissário. Venha e, pela fé, coloque sua mão sobre Sua cabeça coroada de espinhos e confesse seus pecados, da mesma forma que o Sumo Sacerdote fazia antigamente. Você já fez isso? Seu pecado foi confessado? Agora, creia que Jesus Cristo pode e deseja levar seu pecado embora. Descanse plena e inteiramente nEle. O que acontece em seguida? O Sumo Sacerdote pega o bode emissário, entrega-o nas mãos de um homem de confiança e este o leva colina abaixo até que esteja a muitos quilômetros de distância (Lv 15.21). Então, repentinamente, ele solta as amarras e assusta o bode, que foge com todas as suas forças. O homem fica observando até o bode desaparecer e ele não poder mais vê-lo. Ele volta e diz: “Levei o bode emissário e ele desapareceu da minha vista. Ele se foi pelo deserto”. Ah, meu ouvinte, se lanças os teus pecados sobre Cristo, confessando-os totalmente, lembra-te de que Ele os leva embora, para tão longe quanto dista o oriente do ocidente; eles se vão e se vão para sempre. Tua embriaguez, tuas imprecações; tuas mentiras, teus roubos; tuas violações do domingo; teus pensamentos vis, tudo se vai — eles se vão e nunca mais os verás — 

Imersos, como em mar sem costa,

Perdidos, como na imensidão.

    III. E agora, concluo, chamando a atenção para OS BENDITOS PRIVILÉGIOS DECORRENTES DO PERDÃO QUE NOS É DADO SEGUNDO A GRAÇA DE DEUS. Creio que há um grande número de pessoas que pensa não haver qualquer realidade na religião. Para elas, ir à igreja ou à capela é uma questão de respeito, mas, para desfrutar da ideia de que seus pecados são perdoados, elas nem pensam nisso. E devo confessar que, nas religiões atuais, parece não haver muita realidade mesmo. Não tenho ouvido a proclamação clara, vibrante e distinta do evangelho que precisamos ouvir. É formidável que ele seja proclamado a qualquer pessoa, que seja levado ao teatro e coisas do gênero, mas o evangelho precisa ser puro — o leite deve ter menos água em sua consistência. A verdade de Deus precisa ser ensinada ao povo de forma mais distinta, mais palpável, deve ser algo que as pessoas possam pegar e compreender, mesmo que não creiam. Espero que ninguém me entenda mal. O perdão imediato dos nossos pecados é uma realidade. Ter esse conhecimento e poder desfrutá-lo também é uma realidade. Por isso, vou lhes mostrar quais são as alegrias decorrentes disso. 

    Em primeiro lugar, você terá paz de consciência, o coração que bate mais rápido quando você está sozinho estará tranquilo e sossegado. Você estará menos sozinho quando estiver sozinho. Aquele velho temor que o faz apertar o passo na escuridão quando está com medo, e não sabe por quê, irá desaparecer. Ouvi falar de um homem que tinha muitas dívidas, por isso, os oficiais de justiça estavam sempre atrás dele. Um dia, quando andava por uma área gradeada, sua manga ficou presa em uma das grades. Ele se virou e disse: “Não lhe devo nada, senhor”. Ele achou que era um oficial de justiça. O mesmo acontece com pecadores não perdoados, onde quer que estejam, eles acham que serão presos. Eles não conseguem desfrutar de nada. Até sua alegria nada mais é que um borrão, o crepitar dos espinhos debaixo de uma panela (Eclesiastes 7:6); não há um fogo forte e constante. No entanto, quando alguém é perdoado, pode andar por onde quiser e dizer: “Tanto faz viver ou morrer, se for tragado pelas profundezas do oceano ou se for soterrado por uma avalanche; com meus pecados perdoados, estou seguro”. Ele não teme o aguilhão da morte. Sua consciência está em paz. E, então, ele dá mais um passo. Sabendo que seus pecados estão perdoados, ele possui uma alegria indizível. Ninguém tem olhos tão brilhantes quanto o verdadeiro cristão; ele sabe que seu interesse está em Cristo e pode ver sua posição claramente. Ele é feliz, e deve ser feliz. O que são seus problemas? Não são nada, são apenas vaidade, pois todos os seus pecados são perdoados. Quando o pobre escravo desembarca no CanadáNT6, talvez não tenha um tostão no bolso e suas roupas sejam apenas andrajos; mas quando coloca os pés em solo britânico, ele é um homem livre. Veja como ele pula e dança e bate palmas, dizendo: “Grande Deus eu Te agradeço, sou um homem livre”. Assim é com o cristão quando, em sua cabana, ele se senta para comer seu pão endurecido e diz: graças a Deus não tenho pecado misturado em meu cálice (Sl 75.8) — tudo está perdoado. O pão pode estar seco, mas não é tão seco quanto seria se eu tivesse de comê-lo com as ervas amargas de uma consciência culpada e com um terrível temor da ira de Deus. Ele possui uma alegria que resistirá a todas as intempéries, uma alegria que permanecerá em todas as épocas, um brilho que irradia tanto de dia quanto de noite. 

    Além disso, o verdadeiro cristão tem acesso a Deus. Alguém com pecados não perdoados permanece alienado e quando, finalmente, pensa em Deus, é como fogo consumidor. No entanto, o cristão perdoado, ao ver as montanhas e as colinas, os riachos ondulantes e o rugido de muitas águas, olha para Deus e diz: “Meu Pai fez tudo isso”, e abraça o Altíssimo na infinitude que separa o homem do seu Criador. Seu coração se eleva a Deus. Ele vive perto dEle e sente que pode falar com Deus como alguém fala com um amigo.

    Outro efeito de ter os pecados perdoados é que o crente não teme o inferno. A Palavra de Deus fala de coisas profundas, mas elas não amedrontam o crente. Pode haver um abismo (Ap 9), mas seus pés nunca deslizarão para dentro dele. É verdade que há um fogo que nunca se apaga, mas ele não pode queimá-lo (Mc 9.41-49). Esse fogo é para o pecador, pois o crente não tem pecado imputado a ele; tudo lhe foi perdoado. Todos os demônios do inferno não podem levá-lo para lá, pois ele não tem um único pecado que lhe possa ser imputado. Embora ele ainda peque todos os dias, ele sabe que seus pecados já foram expiados, ele sabe que Cristo foi punido em seu lugar e, por isso, a Justiça não pode tocá-lo novamente.

    E, ainda, o cristão perdoado tem a expectativa do céu. Ele está aguardando a volta do Senhor Jesus Cristo. Se a morte intervir antes desse glorioso advento, ele sabe que, para ele, morte repentina é glória repentina. E, tendo uma consciência tranquila e paz com Deus, quando chegar o momento final, ele pode subir para os seus aposentos e recolher os pés na cama. Ele pode se despedir de seus irmãos e amigos, de sua esposa e de seus filhos; pode fechar os olhos em paz, na segurança de que irá abri-los no céu. Talvez seja no leito de morte que a alegria de ter os pecados perdoados seja mais brilhante. Muitas vezes tenho tido o privilégio de poder testar a força da religião ao me assentar ao lado de um moribundo. Há no céu agora uma garotinha que foi membro desta igreja. Quando ela estava prestes a partir, fui visitá-la com um de meus queridos diáconos. Ela estava no último estágio de sua doença. Sua aparência era bela e cheia de doçura, e acho que nunca ouvi palavras tão lindas quanto as que saíram de seus lábios. Ela tinha passado por muitas decepções, provações e tristezas, mas não reclamava de nada e bendizia a Deus por tudo o que tinha acontecido, pois a levara para mais perto do Salvador. Quando lhe perguntamos se ela não estava com medo de morrer, ela respondeu: “Não. A única coisa de que tenho receio é de viver, pois minha paciência pode se esgotar. Até agora eu não disse uma palavra impaciente, senhor, e espero não dizer. É triste estar tão fraca, mas acho que se pudesse escolher, eu preferiria estar lá a ter saúde, pois isso é precioso para mim. Eu sei que meu Redentor vive e estou esperando o momento em que Ele enviará Sua carruagem de fogo para me levar até Ele”. Eu lhe perguntei: “Você não tem dúvida”? “Não, senhor, por que teria? Lanço-me ao pescoço de Cristo”. Você não teme seus pecados? “Não, senhor, estão todos perdoados. Confio no precioso sangue do Salvador”. E você acha que será tão corajosa assim quando chegar a hora da morte? “Nem se Ele me deixar, senhor, mas eu sei que Ele nunca me deixará, pois Ele disse: ‘De maneira alguma te deixarei, nunca jamais te abandonarei’” (Hebreus 13:5). Isso é fé, queridos irmãos e irmãs! Que todos nós a tenhamos e recebamos o perdão dos pecados segundo as riquezas da Sua graça.

Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza


Notas do tradutor:

NT1 — Petrosa não existe, provavelmente a referência é às minas de Potosi.

NT2 — When Thou my righteous Judge shalt comeQuando Tu voltares, meu justo Juiz — composição de Selina Hastings (1707-1791), Condessa de Huntington, disponível em https://hymnary.org/text/when_thou_my_righteous_judge_shalt_come, acesso em 19.07.22

NT3 — 1Re 4.22-23 

NT4 — John Kent,1766-1843, compositor inglês

NT5 — embora a tradução literal e o termo mais conhecido em português para scapegoat seja “bode expiatório”, nas versões da Bíblia ARA, ACF, ARC e NAA o termo é “bode emissário”, e nas versões NVI, NVT, NTLH, A21, TB e na Bíblia de Jerusalém, “bode para Azazel”, cf Levítico 16.8, 10 e 26.

NT6 — na época em que Spurgeon pregou este sermão, 1860, o Canadá ainda fazia parte das colônias britânicas

quinta-feira, 13 de maio de 2021

Uma Lei Inalterável

 Sermão nº 3418

Publicado na terça-feira, 06 de agosto de 1914

Ministrado por C. H. Spurgeon

No Tabernáculo Metropolitano, Newington


“Sem derramamento de sangue, não há remissão”. — Hebreus 9:22


Em qualquer lugar sob a antiga dispensação figurativa, o sangue era algo bem visível. O sangue era a coisa mais importante da economia judaica e raramente uma cerimônia era realizada sem ele. Ninguém podia entrar no tabernáculo, mas era possível ver vestígios de sangue por toda parte. Às vezes, recipientes com sangue eram derramados aos pés do altar. O lugar era tão parecido com um matadouro que visitá-lo estava longe de ser uma coisa agradável; por isso, para gostar daquele lugar, era preciso ter uma fé viva e entendimento espiritual. A matança de animais era a forma de adoração; o derramamento de sangue era o ritual designado e o sangue espalhado pelo chão, pelas cortinas e pelas vestes dos sacerdotes era um memorial constante. Quando Paulo diz que, quase todas as coisas, sob o regime da lei, eram purificadas com sangue, ele está se referindo a umas poucas coisas que não eram. Assim sendo, encontraremos diversas passagens onde as pessoas eram exortadas a lavar suas vestes, e aqueles que estavam impuros devido a causas físicas tinham de lavar suas vestes com água. As roupas usadas pelos homens geralmente eram lavadas com água. Após a derrota dos midianitas, conforme registrado no livro de Números, os despojos, que estavam contaminados, tiveram de ser purificados antes de serem reivindicados pelos israelitas vitoriosos (Números 31). De acordo com as ordenanças da lei que o Senhor dera a Moisés, alguns bens, como roupas e artigos feitos de pele ou pelo de cabra, deveriam ser purificados com água, enquanto as coisas feitas de metal, que podiam suportar o fogo, eram purificadas com fogo. Mesmo assim, o apóstolo se refere a um fato literal quando diz que quase todas as coisas, sendo as vestes a única exceção, eram purificadas, sob o regime da lei, com sangue. Portanto, ele está se referindo a uma verdade conhecida por todos, a de que, sob a antiga dispensação legal, não havia perdão de pecados, exceto pelo derramamento de sangue. Havia uma única exceção aparente e, até mesmo ela, prova a universalidade da regra, pois a razão para tal é bem esclarecida. A oferta pela culpa, apresentada como alternativa em Levítico 5.11, poderia, em casos de extrema pobreza, ser uma oferta sem sangue. Se alguém fosse pobre demais para levar uma oferta de gado, poderia levar duas rolas ou dois pombinhos; no entanto, se a pessoa fosse pobre demais até para isso, poderia oferecer a décima parte de um efa da flor de farinha como oferta pelo pecado, sem azeite ou incenso, a qual seria lançada no fogo. Esta é a única exceção entre todos os exemplos. Em todos os lugares, em todas as vezes e em todos os casos em que houvesse pecado a ser removido, o sangue deveria fluir, a vida tinha que ser tirada. A única exceção registrada apenas ressalta o fato de que “sem derramamento de sangue, não há remissão”. Sob o evangelho, no entanto, não há exceção, não há um único caso sequer, como havia sob o regime da lei; não, nem mesmo para os paupérrimos. E tais somos nós espiritualmente. Visto que não há nenhum de nós para levar a oferta, e não mais que uma oferta para oferecer, todos temos que tomar a oferta já apresentada e aceitar o sacrifício feito por Jesus Cristo, de Si mesmo, em nosso lugar — agora não há motivo ou fundamento para exceção, para qualquer homem ou mulher vivo, nem haverá, seja neste mundo ou no porvir — “Sem derramamento de sangue, não há remissão”. Então, com grande simplicidade, no que diz respeito à nossa salvação, peço a atenção de cada um de vocês para este assunto tão grandioso, o qual está intimamente ligado aos nossos interesses eternos. Por isso, em primeiro lugar, deduzo do texto o seguinte fato encorajador:

I. HÁ REMISSÃO — ou seja, remissão de pecados. “Sem derramamento de sangue, não há remissão”. Sangue foi derramado, portanto, há esperança com relação a isso. Remissão, não obstante os rigores da lei, não é ser entregue ao puro desespero. A palavra remissão significa quitar dívidas. Assim como o pecado pode ser considerado uma dívida contraída com Deus, essa dívida pode ser apagada, cancelada e removida. O pecador, em débito com Deus, pode deixar de ser devedor, por compensação ou por absolvição total, e pode ficar livre em virtude dessa remissão. Isso é possível. Glória a Deus, a remissão de todos os pecados, dos quais é possível se arrepender, pode ser obtida. Seja qual for a transgressão de alguém, seu perdão será possível se o seu arrependimento for possível. Pecado sem arrependimento é pecado imperdoável. Se o pecado for confessado e abandonado, a pessoa encontrará misericórdia. Deus disse isso e Ele não será infiel à Sua Palavra. “Mas”, alguém diz, “não há um pecado que é para a morte”? Sim, na verdade há, mas eu não sei qual é, nem creio que quem quer que estude o assunto seja capaz de descobrir que pecado é esse; parece muito claro que o pecado é praticamente imperdoável porque nunca houve arrependimento. Quem comete um pecado que é para a morte, para todos os efeitos e propósitos, torna-se morto em pecado no sentido mais profundo e permanente até mesmo que a raça humana como um todo, e é abandonado como um caso inveterado — de consciência cauterizada, por assim dizer, com ferro em brasa — e daí por diante ele não buscará misericórdia. Mas todo tipo de pecado e blasfêmia será perdoado aos homens. Seja para a luxúria, roubo ou adultério — sim, até mesmo para o assassinato, há o perdão de Deus, para que Ele seja temido. Ele é o Senhor Deus, gracioso e misericordioso, que Se esquece da transgressão, da iniquidade e do pecado.

E esse perdão que é possível é também, de acordo com as Escrituras, completo; isto é, quando Deus perdoa o pecado de alguém, Ele o faz de uma vez por todas. Ele apaga a dívida sem qualquer cálculo retroativo. Ele não tira uma parte do pecado da pessoa e a responsabiliza pelo resto; mas, no momento em que o pecado de alguém é perdoado, é como se sua iniquidade nunca tivesse sido cometida; ele é recebido na casa do Pai e abraçado com o amor do Pai como se nunca tivesse errado; ele é aceito na presença de Deus como se nunca tivesse cometido qualquer transgressão. Bendito seja Deus, crente, pois não há pecado contra ti no Livro de Deus. Se tu crês, estás perdoado — não parcialmente, mas totalmente perdoado. A escrita que era contra ti foi cancelada, encravada na cruz de Cristo (Cl 2.14), e jamais poderá ser pleiteada novamente contra ti. O perdão é completo.

Além do mais, esse perdão é agora. Na imaginação de algumas pessoas (para vergonha do evangelho), o perdão não é concedido até a hora da morte e, talvez, só então, de alguma forma misteriosa, nos últimos minutos de vida, a pessoa possa ser absolvida. Nós, porém, pregamos, em nome de Jesus, o perdão presente e imediato de todas as transgressões — um perdão dado em um instante — o momento em que o pecador crê em Jesus. Não como se fosse a cura gradual de uma doença, que precisasse de meses ou anos de tratamento. É verdade que a corrupção da nossa natureza é uma dessas doenças, e o pecado que habita em nós deve ser diariamente, e continuamente, mortificado; no entanto, quanto à culpa pelas nossas transgressões diante de Deus, e quanto à dívida contraída com a Sua justiça, a remissão não é uma coisa progressiva ou gradual. O perdão de um pecador é concedido imediatamente; e ele será dado a qualquer um que o aceite hoje mesmo — sim, e dado de tal forma que você nunca o perderá. Uma vez perdoado, perdoado para sempre, e nenhuma das consequências do pecado o afligirá. Você será absolvido irrestrita e eternamente, de modo que, quando os céus estiverem em chamas e o grande trono branco for erguido, e a última grande assembleia for realizada, você possa se apresentar com ousadia diante do tribunal, sem temer qualquer acusação, pois o perdão que o próprio Deus concede jamais será revogado.

Vou acrescentar ainda outra observação. Quem recebe o perdão, sabe que o recebeu. Se alguém simplesmente tivesse a esperança de ter recebido o perdão, essa esperança muitas vezes poderia lutar contra o medo. Se a pessoa só achasse que foi perdoada, seus escrúpulos poderiam assustá-la. No entanto, saber que o perdão foi concedido é fundamento seguro de paz para o coração. Glória a Deus que os privilégios da aliança da graça não são questões de esperança e suposição, mas de fé, convicção e segurança. Não é presunção crer na Palavra de Deus. A própria Palavra diz: “Quem crê em Jesus Cristo não é condenado”. Se creio em Cristo, então, não sou condenado. Que direito tenho de achar que sou? Se Deus diz que não, seria presunção da minha parte achar que sim. Não pode ser presunção entender a Palavra de Deus exatamente como ela é dita a mim. No entanto, alguém pode dizer: “Que felicidade se esse fosse o meu caso!” Disseste bem, pois “Bem-aventurado aquele cuja iniquidade é perdoada, cujo pecado é coberto. Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não atribui iniquidade” (Salmo 32:1-2).  E outra pessoa diz: “Nunca pensei que uma coisa tão maravilhosa fosse possível a alguém como eu”. Tu raciocinas à maneira dos filhos dos homens. Saiba, então, que assim como os céus são mais altos do que a terra, assim os caminhos de Deus são mais altos que os nossos, e seus pensamentos mais altos do que os nossos. (Is  55.9). Errar é do homem, perdoar é de Deus. Nós erramos como homens, mas Deus não perdoa como o homem, Ele perdoa como Deus, para que exultemos de alegria e cantemos: “Quem, ó Deus, é semelhante a ti, que perdoas a iniquidade e te esqueces da transgressão, da iniquidade e do pecado”? (Mq 7.18). Quando fazemos alguma coisa, é apenas um pequeno esforço feito de acordo com nossas habilidades; nosso Deus, no entanto, fez os céus. Quando perdoamos, perdoamos segundo a nossa natureza e nossas condições, mas quando Deus perdoa, Ele mostra as riquezas da Sua graça numa escala tão grande que nossa mente finita jamais poderia compreender. Milhares de pecados horrendos, pecados infernais, Ele remove num só instante, pois Ele Se deleita na Sua misericórdia; e o julgamento é sua obra estranha (Is 28.21). “Porque não tenho prazer na morte de ninguém, diz o Senhor Deus. Portanto, convertei-vos e vivei” (Ezequiel 18:32). Essa é uma observação maravilhosa fornecida pelo nosso texto. Não há remissão, exceto pelo sangue. Contudo, há remissão, pois sangue foi derramado.

Examinando o texto mais de perto, temos que insistir em sua grande lição:

II. EMBORA HAJA PERDÃO DO PECADO, ISSO JAMAIS SERÁ SEM SANGUE

Esta é uma sentença arrebatadora, pois algumas pessoas confiam no seu arrependimento para perdão dos seus pecados. Sem dúvida, arrepender-se dos pecados é um dever. Se você desobedece a Deus, deve lamentar por isso. Abandonar o pecado é simplesmente um dever da criatura, caso contrário, o pecado não seria violação da santa lei de Deus. Mas saiba que todo o arrependimento do mundo não pode apagar nem o menor dos pecados. Se você tiver um único pensamento pecaminoso passando pela sua cabeça, e sofrer por causa disso todos os dias da sua vida, ainda assim a mancha desse pecado não poderá ser removida, nem mesmo pela angústia que isso lhe causa. Onde o arrependimento é obra do Espírito Santo, ele é um dom precioso e um sinal da graça de Deus; mas não existe poder expiatório no arrependimento. Nem mesmo um mar repleto de lágrimas penitenciais tem poder ou virtude para lavar uma única mancha dessa hedionda impureza. Sem derramamento de sangue, não há remissão. Outras pessoas, no entanto, supõe que, de qualquer forma, a transformação decorrente do arrependimento é suficiente. O que aconteceria se a embriaguez fosse abandonada e a sobriedade se tornasse a regra? E se a licenciosidade fosse deixada por completo e a castidade se tornasse o adorno do caráter? E se a conduta desonesta fosse posta de lado e a integridade fosse escrupulosamente mantida em todos os negócios? Digo que tudo isso é muito bom; queira Deus que essas mudanças possam ocorrer em todos os lugares — no entanto, não contrair mais dívidas não paga as dívidas anteriores, e bom comportamento no futuro não perdoa os delitos passados. Por isso, o pecado não é remido com mudanças. Mesmo que um dia pudéssemos ser tão imaculados quanto os anjos (não que tal coisa seja possível a nós, pois um etíope não pode mudar a cor da sua pele, nem o leopardo as suas manchas), nossas mudanças não poderiam fazer expiação pelos pecados cometidos nos dias em que transgredimos contra Deus. Mas alguém diz: “O que posso fazer, então?” Há quem pense que suas orações e sua humildade de alma talvez possam fazer alguma coisa por eles. Suas orações talvez, se forem sinceros, mas preferiria que fossem expressão de uma vida espiritual. Contudo, caro ouvinte, a oração não tem efeito de apagar pecados. Vou dizer com mais ênfase. Todas as orações, de todos os santos na terra e, se fosse possível, junto com as orações de todos os santos nos céus, todas elas não poderiam apagar, por sua eficácia natural, o pecado de uma única palavra maligna. Não, não há poder de dissuasão na oração. Deus nunca a estabeleceu como meio de purificação. Ela tem seus usos, e usos valiosos. É um dos privilégios de quem ora que sua oração seja aceitável, mas a própria oração em si jamais poderá apagar o pecado sem o sangue. “Sem derramamento de sangue não há remissão”; ore como quiser.

Há quem pense que a negação de si mesmo e as mortificações em formas extraordinárias podem livrá-lo da culpa. Não é comum encontrarmos tais pessoas em nosso meio, mas há aqueles que, para purificarem a si mesmos do pecado, flagelam seu corpo, observam jejuns prolongados, vestem pano de saco e roupas de pelo coladas à pele, e alguns já chegaram ao ponto de imaginar que abster-se de banho e deixar o corpo sujo fosse o meio mais rápido de purificar a alma. Uma estranha obsessão, com certeza! Ainda hoje, no Industão, pode-se encontrar um faquir fazendo seu corpo passar por tremendos sofrimentos e distorções na esperança de se livrar do seu pecado. Qual é o propósito disso tudo, afinal? Parece-me que ouço o Senhor dizendo: “O que é para mim que inclines a cabeça como junco, vistas pano de saco, comas cinza com teu pão e mistures absinto em tua bebida? Tu violaste a minha lei; tais coisas não podem repará-la; ofendeste a minha honra com teu pecado; mas, onde está a justiça que dá honra ao meu nome?” O clamor dos antigos era: “Com que nos apresentaremos diante de Deus?”, e diziam: “Darei o meu primogênito pela minha transgressão, o fruto do meu corpo, pelo pecado da minha alma?” (Miquéias 6:7). Ah! Era tudo em vão. Eis aqui a sentença. E deve permanecer para sempre: “Sem derramamento de sangue não há remissão”. É a vida que Deus exige como a penalidade devida pelo pecado, e nada além da vida indicada no derramamento de sangue jamais poderá satisfazê-lO.

Observem mais uma vez como este texto envolvente tira toda a confiança nas cerimônias, mesmo aquelas que fazem parte das ordenanças de Deus. Há quem pense que o pecado possa ser lavado no batismo. Ah! Quanta tolice! A expressão usada na Escritura não tem essa implicação (At 22.16) — não tem o significado que alguns atribuem a ela, uma vez que o próprio apóstolo que disse isso se gloriava por não ter batizado muitas pessoas, a fim de que não pensassem que havia alguma eficácia na administração do rito (1Co 1.13-16). O batismo é uma ordenança admirável, na qual o crente mantém comunhão com Cristo na Sua morte (Cl 2.12). Ele é um símbolo; nada mais que isso. Milhões de pessoas são batizadas e morrem em seus pecados. Ou que proveito há no sacrifício incruento da missa, como ensina o anticristo (NT: o papa)? A quem disser que é um “sacrifício incruento” e, ao mesmo tempo, o oferecer como propiciação pelo pecado — nós jogamos este texto na cara: “Sem derramamento de sangue não há remissão”. Eles respondem que o sangue está no corpo de Cristo? Nós replicamos que, mesmo que estivesse, este não é o caso, pois é sem derramamento de sangue — sem sangue derramado; sangue, como distinto da carne, sem o derramamento de sangue não há remissão do pecado.

Aqui preciso seguir adiante e fazer um esclarecimento ainda mais profundo. O próprio Jesus Cristo, sem Seu sangue, não pode nos salvar. Essa é uma suposição que só os loucos já fizeram, mas que refutamos até mesmo como hipótese, quando se afirma que o exemplo de Cristo pode remover o pecado humano, que a vida santa de Jesus colocou a raça humana em tal compasso com Deus que agora Ele pode perdoar suas faltas e transgressões. Não é assim; não é a santidade de Jesus, não é a vida de Jesus, não é a morte de Jesus, é somente o sangue de Jesus, pois “sem derramamento de sangue não há remissão”.

Além disso, conheço algumas pessoas que pensam tanto na segunda vinda de Cristo que parecem ter firmado sua fé somente no Cristo em glória. Creio que isso se deva ao irvingismo (NT: movimento surgido na Escócia com o pastor Edward Irving — 1792-1834) — que fixa os olhos do pecador no Cristo entronizado — pois, embora Cristo em Seu trono deva ser sempre amado e honrado, ainda precisamos ver Cristo na cruz, ou nunca poderemos ser salvos. Tua fé não pode ser colocada simplesmente no Cristo glorificado, mas no Cristo crucificado. “Mas longe esteja de mim gloriar-me, senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo” (Gálatas 6:14). “Mas nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios” (1 Coríntios 1:23). Lembro-me de uma pessoa que fazia parte dessa igreja (a querida irmã talvez esteja aqui hoje), a qual era professa há alguns anos mas ainda não desfrutava da paz com Deus, nem produzia qualquer fruto do Espírito. Ela disse: “Frequentei uma igreja onde fui ensinada a descansar no Cristo glorificado e, assim, coloquei minha fé nEle de tal forma que, do Cristo glorificado, eu não tinha qualquer senso de pecado ou de perdão! Eu não conseguia entender e, até ter visto Cristo como aquele que derramou Seu sangue e fez propiciação pelo meu pecado, não pude descansar”. Sim, vou dizer outra vez, pois o texto é de vital importância: “Sem derramamento de sangue, não há remissão”, nem mesmo com o próprio Cristo. É pelo sacrifício que Ele ofereceu por nós que nos livramos do nosso pecado — só isso e nada mais. Sigamos adiante com a mesma verdade.

III. ESSA REMISSÃO DO PECADO DEVE SER ENCONTRADA AO PÉ DA CRUZ

A remissão deve ser obtida por meio de Jesus Cristo, cujo sangue foi derramado. O hino que cantamos no início do culto nos deu a essência da doutrina. A punição pelo pecado é a nossa dívida para com Deus. Essa dívida era devida ou não? Se a lei estava certa, a pena devia ser aplicada. Se a pena era severa demais, e a lei inadequada, então Deus teria cometido um erro. No entanto, é uma blasfêmia supor tal coisa. Portanto, se a lei é justa, e a pena é justa, será que Deus faria algo injusto? Injusto seria Ele não executar a pena. Gostaria que Ele fosse injusto?  Ele declarou que a alma que pecar deve morrer (Ez 18.4); gostaria que Ele fosse mentiroso? Será que Ele tem de engolir Suas palavras para salvar Suas criaturas? “Seja Deus verdadeiro, e mentiroso, todo homem” (Rm 3.4). A sentença da lei devia ser cumprida. Era inevitável que, para manter a prerrogativa da Sua santidade, Deus tivesse de punir os pecados cometidos pelos homens. Como, então, Ele deveria nos salvar? Veja o plano! Seu querido Filho, o Senhor da glória, assume em Si mesmo a forma humana, recebe a todos quantos o Pai Lhe deu, toma o seu lugar, e quando a sentença judicial é promulgada e a espada da vingança salta da bainha, eis que o glorioso Substituto desnuda o braço e diz: “Golpeia, espada, mas golpeia a Mim, e deixa Meu povo ir”. A espada da lei traspassou a própria alma de Jesus e Seu sangue foi derramado, o sangue, não de quem era apenas homem, mas dAquele que, por ser um Espírito eterno, foi capaz de oferecer a Si mesmo sem mácula a Deus, de uma forma que deu eficácia infinita a Seus sofrimentos. Está escrito que Ele, por meio do Espírito eterno, ofereceu a Si mesmo sem mácula a Deus (Hb 9.14). Sendo, em Sua própria natureza, infinitamente mais que a natureza do homem, compreendendo em Si mesmo, por assim dizer, todas as naturezas do homem, em razão da majestade da Sua pessoa, Ele foi capaz de oferecer a Deus uma expiação de infinita, ilimitada e inconcebível suficiência.

O que Jesus sofreu, nenhum de nós pode dizer. No entanto, de um coisa estou certo: não posso desprezar ou subestimar Seus sofrimentos — as torturas físicas que Ele suportou — mas estou igualmente certo de que ninguém pode exagerar ou supervalorizar os sofrimentos de uma alma como a Dele; eles estão muito além do que podemos conceber. Ele foi tão puro, tão perfeito, tão extraordinariamente sensível e tão imaculadamente santo que, ser contado com os transgressores, ser ferido pelo Pai, morrer (como direi?) a morte dos incircuncisos pelas mãos de estrangeiros, foi a própria essência da amargura, a consumação da angústia. “Todavia, ao Senhor agradou moê-lo, fazendo-o enfermar” (Isaías 53:10). Suas próprias angústias foram aquilo que a liturgia grega chama, com muita propriedade, de “sofrimentos desconhecidos, dores extraordinárias”. Por conseguinte, sua eficácia é também infinita, ilimitada. Agora, então, Deus pode perdoar o pecado. Ele puniu o pecado em Cristo; é uma questão de justiça, assim como de misericórdia, que Deus cancele as dívidas que já foram pagas. Seria injusto, digo isso com reverência, mas com santa ousadia — seria injusto da parte da infinita Majestade culpar-me de um único pecado que foi imputado ao meu Substituto. Se meu Fiador pagou meu pecado, Ele me libertou, e estou livre. Quem ressuscitará o julgamento contra mim quando já fui condenado na pessoa do meu Salvador? Quem me entregará às chamas do inferno, quando Cristo, meu Substituto, já sofreu o equivalente ao inferno por mim? Quem intentará acusação contra mim, quando Cristo assumiu a culpa por todos os meus crimes, respondeu por eles, expiou-os e recebeu o recibo de quitação, uma vez que Ele ressuscitou dos mortos para poder reivindicar abertamente essa justificação na qual pela graça sou chamado e tenho o privilégio de participar? Resumindo, é tudo muito simples, mas será que todos nós o recebemos, que todos o aceitamos? Oh! Caros ouvintes, o texto está repleto de advertências para alguns de vocês. Talvez você tenha uma boa disposição, um caráter excelente, uma atitude séria, mas ainda tem receio de aceitar a Cristo; você tropeça na pedra de tropeço; você se despedaça na rocha. Como posso explicar um caso tão infeliz? Não vou discutir com você. Evito entrar em qualquer discussão. Apenas vou lhe fazer uma pergunta. Você acredita que a Bíblia seja inspirada por Deus? Veja então esta passagem: “Sem derramamento de sangue, não há remissão”. O que você me diz? Ela não é absolutamente conclusiva? Permita-me fazer uma inferência. Se você não tem interesse no derramamento de sangue, o qual tentei brevemente descrever, será que existe remissão para você? Pode haver? Seus pecados estão sob sua total responsabilidade agora. Quando o grandioso Juiz voltar, eles serão requeridos das suas mãos. Você pode trabalhar, se esforçar, ser sincero em suas convicções, ter a consciência tranquila ou ser cheio de escrúpulos; no entanto, tão certo quanto vive o Senhor, não há perdão para você, a não ser pelo derramamento de sangue. Você o rejeita? O perigo jaz sobre sua cabeça. Deus falou. Não se pode dizer que sua ruína foi designada por Ele quando o próprio remédio para ela é revelado por Ele.

Deus ordena que você siga o caminho designado por Ele e, se você o rejeitar, deve morrer. Sua morte é suicídio, seja deliberado, acidental ou por erro de julgamento. Seu sangue está sobre sua própria cabeça. Você está avisado.

Por outro lado, que grande consolação o texto nos dá! “Sem derramamento de sangue, não há remissão”. Mas onde há sangue derramado, há remissão. Se vieres a Cristo, serás salvo. Se puderes dizer, de todo coração:

Minha fé sua mão estende

Colocando-a sobre a Tua cabeça

Aqui estou como um penitente

Que seus pecados confessa


Então, o pecado se foi. Onde está aquele jovem? E aquela jovem? Onde estão aqueles corações ansiosos que dizem: “Será que agora seremos perdoados”? Ah, olhem, olhem, olhem, olhem para o Salvador crucificado, e sejam perdoados. Podem seguir seu caminho, pois vocês aceitaram a expiação de Deus. Filha, tende bom ânimo, teus pecados, que são tantos, te foram perdoados. Filho, regozija-te, pois tuas transgressões foram apagadas.

Minha última palavra será esta. Quem ensina outras pessoas e tenta fazê-lo da maneira correta, apegue-se a esta doutrina. Que ela seja a frente, o centro, a essência e o cerne de tudo o que você tem a dizer. Costumo pregar com frequência sobre isso, e não há domingo em que eu vá para cama tão satisfeito em meu íntimo quanto aquele em que prego sobre o sacrifício substitutivo de Cristo. Só então eu sinto que “se os pecadores estão perdidos, seu sangue não está sobre mim”. Esta é a doutrina da salvação da alma, compreenda-a e terá conquistado a vida eterna; rejeite-a e sua rejeição será para sua vergonha. Ah! Guardem isso. Martinho Lutero costumava dizer que todo sermão devia incluir a doutrina da justificação pela fé. Verdade; mas incluindo também a doutrina da expiação. Ele dizia que não conseguia enfiar a doutrina da justificação pela fé na cabeça dos cidadãos de Wurtemberg e se sentia meio inclinado a pegar o livro do púlpito e atirar na cabeça deles, para que a entendessem. Receio que, mesmo que ele tivesse tentando, não teria tido muito sucesso. Ah, como eu gostaria de insistir neste ponto mais e mais vezes, “a vida está no sangue”. “Quando eu vir o sangue, passarei por vós” (Êxodo 12:13).

Cristo deu Sua vida ao derramar Seu sangue — e é isso que dá perdão e paz a cada um de vocês, se olharem somente para Ele — perdão agora, perdão completo, perdão para sempre. Não confie em mais nada; confie somente nos sofrimentos e na morte do Deus encarnado, que subiu ao céu e hoje vive para suplicar por nós diante do trono do Pai; pelo mérito do sangue que, no Calvário, Ele derramou pelos pecadores. Assim como os encontrarei naquele grande dia, quando o Crucificado vier como Rei e Senhor de todos, dia esse que se apressa, assim como eu os encontrarei então, oro para que vocês testemunhem que me esforço para lhes dizer com toda simplicidade qual é o caminho da salvação. Se vocês o rejeitarem, façam-me este favor: digam que pelo menos eu lhes ofereci, em nome do Senhor Deus, o Seu evangelho, e insisti honestamente para que o aceitassem, a fim de poderem ser salvos. Contudo, eu preferiria, pela graça de Deus, encontrá-los lá, todos cobertos pela única expiação, revestidos da única justiça e aceitos no único Salvador, para juntos cantarmos: “Digno é o Cordeiro que foi morto de receber o poder, e riqueza, e sabedoria, e força, e honra, e glória, e louvor” (Apocalipse 5:12). Amém.

Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza