quarta-feira, 24 de julho de 2024

A Alma Desfalecida Revivida

                                                     Sermão nº 3510

Publicado na quinta-feira, 4 de maio de 1916

Ministrado por C. H. Spurgeon

no Tabernáculo Metropolitano, Newington, Londres, Inglaterra


“Quando, dentro de mim, desfalecia a minha alma, eu me lembrei do Senhor.” — Jonas 2.7

Quando o homem foi criado, não havia o temor de que ele se esquecesse de Deus, pois seu maior prazer e privilégio era ter comunhão com seu Criador. “O Senhor Deus andava no jardim pela viração do dia” (Gn 3.8) e Adão tinha a regalia de manter comunhão com Ele, talvez até mais íntima do que a que tinham os anjos no céu. Mas o encanto dessa harmonia sagrada foi rudemente quebrado pela desobediência do homem e sua terrível queda. Desde que nossos primeiros pais provaram do fruto proibido, o qual trouxe a morte e toda sorte de calamidades ao mundo, sua raça mortal está naturalmente inclinada a se esquecer de Deus. As tendências malignas da carne e do sangue tornaram impossível persuadir o homem a se lembrar do seu Criador. A queixa de Deus contra os judeus é uma verdadeira acusação contra toda a família humana: “Ouvi, ó céus, e dá ouvidos, ó terra, porque o Senhor é quem fala: Criei filhos e os engrandeci, mas eles estão revoltados contra mim. O boi conhece o seu possuidor, e o jumento, o dono da sua manjedoura; mas Israel não tem conhecimento, o meu povo não entende.” (Isaías 1.2-3). O homem é insensato: ele foge do bem maior. O homem é perverso: ele dá as costas para a santidade suprema. O homem é mundano: ele se esquece do reino de Deus e do mundo por vir. O homem é obstinado: ele segue as suas próprias imaginações vãs e, com rebeldia obstinada, opõe-se a seu Deus, para que possa seguir seu próprio caminho e satisfazer suas paixões desenfreadas.

Para convencer um homem de seus erros, refreá-lo das suas atividades pecaminosas e reconduzi-lo às veredas da justiça — quase sempre é preciso que surjam problemas terríveis e profunda aflição. É bem verdade que algumas pessoas são conduzidas a Deus por meios mais brandos; elas são atraídas por laços delicados, mas poderosos. Mesmo assim, ainda resta uma classe bem maior de pessoas, sobre as quais cordões de seda não exerceriam nenhuma influência. Elas precisam ser tratadas com muita severidade, não com brandura. Seus corações não podem ser abertos com uma chave qualquer; será preciso um pé-de-cabra ou até mesmo um aríete para dar um golpe poderoso. Alguns corações jamais serão atraídos para Deus, e para a verdade, a não ser pela tormenta. De espada em punho, a lei de Deus precisa escalar as muralhas. Com um brado estrondoso, Sua Palavra precisa derribar os muros da sua autoconfiança e abrir brecha após brecha nos bastiões do seu orgulho e, mesmo então, eles lutarão e não cederão, até que, levados a um extremo impressionante, percebam que precisam se render de uma vez por todas, ou estarão perdidos para sempre. É com essas pessoas que eu gostaria de tratar neste momento. Há quem tenha se esquecido de Deus depois de tê-lo conhecido, e é provável que só volte a Ele depois de enfrentar grandes problemas. Há também quem nunca O conheceu, e que nunca irá buscá-lo, a menos que seja levado ao extremo pela calamidade, tal como aconteceu com o filho pródigo, que foi obrigado a voltar à casa do pai devido à fome assoladora na região onde habitava. Assim sendo, em primeiro lugar, vou lidar com — 

I. OS DESVIADOS

Entretanto, antes de começar, permitam-me descrever em mais detalhes as pessoas às quais quero me dirigir. Não é necessário citar nomes. Será suficiente retratarmos seu caráter e descrevermos sua conduta. Há algumas pessoas que, anos atrás, frequentavam igrejas cristãs, mas, aos poucos, foram se afastando e, por isso, sua carreira foi definhando, e é incrível que ainda não tenham perecido completamente em seu pecado. No início, parecia que vocês corriam bem e, durante algum tempo, continuaram no caminho; mas agora, onde estão? Bem, acontece que neste instante vocês estão na casa de Deus, e eu creio que o momento de Deus chegou, quando Ele o encontrará e o trará de volta. O que falaremos sobre Jonas, peço que apliquem a vocês mesmos. Se a carapuça servir, usem-na, mesmo que seja uma carapuça de tolo: usem-na até que sintam vergonha de si mesmos e sejam levados a confessar sua loucura diante do Deus que pode removê-la, e torná-los sábios para a salvação.

 Observem, caros amigos, que, embora Jonas tenha se lembrado do Senhor, ele não o fez até estar dentro do ventre da baleia, e até sua alma estar desfalecida dentro dele. Ele não se lembrou do Senhor enquanto descia para Jope para encontrar um navio, nem quando estava a bordo desse navio. Seu Mestre tinha dito a ele: “Jonas, vá até Nínive“, mas Jonas era um cara muito cabeçudo e determinado. Embora fosse um verdadeiro servo de Deus, e profeta, ainda assim ele fugiu da presença do Senhor. Ele resolveu consigo mesmo: para Nínive é que eu não vou. Ele podia prever que não teria nenhuma honra pessoal nessa jornada, sua reputação continuaria a mesma, não haveria deferência especial à sua pessoa por parte daqueles orgulhosos assírios, por isso, desafiando francamente a ordem divina, ele desceu para Jope, para tomar um navio e fugir da presença de Deus. Ele pagou a passagem, embarcou e foi navegando rumo a Társis, tudo isso sem sequer pensar em Deus. 

É provável que hoje tenhamos aqui alguma mulher que era membro de uma igreja cristã, mas se casou com um descrente. Depois disso, ela acabou se afastando e deixando a membresia da igreja. As lojas estavam abertas aos domingos, havia festa em sua casa ou, então, uma viagem para o interior. Tudo lhe parecia muito agradável. A inquietação sentida a princípio logo cedeu a hábitos familiares, até que, depois de alguns anos, essa mulher, que parecia uma verdadeira crente em Cristo, agora leva uma vida totalmente descuidada e indiferente, para não dizer profana, raramente pensando em Deus. Talvez ela não tenha deixado de orar e, com certeza, não se tornou inimiga de Cristo ou deixou de amar Seu povo. Contudo, Deus foi esquecido. Enquanto seus negócios prosperavam, seu marido gozava de boa saúde e o mundo parecia sorrir para ela, Deus não fez parte dos seus pensamentos. 

Será que estou errado em supor que haja também algum homem que, em sua juventude, foi um grande orador, excelente professor de Escola Dominical e companheiro dos que temem o Senhor? No entanto, depois de algum tempo, pareceu-lhe haver uma forma mais rápida de ganhar dinheiro do que os meios comuns de trabalho honesto ou simples comércio. Assim, ele se meteu em especulações que logo consumiram as partes essenciais da sua vida religiosa. Seus novos projetos lhe trouxeram novas companhias, as quais o fizeram reprimir suas antigas convicções; e, como não queria ser hipócrita, acabou abandonando por completo a sua fé. Talvez tenham se passado meses desde que ele veio a um culto pela última vez e, mesmo agora, ele prefere não ser reconhecido, pois veio apenas porque um amigo do interior disse que gostaria de conhecer o local e ouvir o pregador. 

Ah, meus caros, não é estranho que, se vocês são filhos de Deus, tenham andado de forma tão contrária a Ele? O mesmo aconteceu com Jonas. Posso, então, expor o caso dele para encorajá-los? Além disso, espero que vocês apliquem esta amarga repreensão à sua própria alma e sejam levados a fazer o que Jonas fez. 

Enquanto o navio navegava calmamente sobre o mar, Jonas se esqueceu do seu Deus. Ele poderia ser confundido com qualquer pagão a bordo. Era tão ímpio quanto eles. No entanto, havia uma centelha de fogo entre as brasas, a qual, no devido tempo, Deus transformou em chama. Fico feliz por vocês, se a melhor parte da experiência de Jonas coincidir com as suas.

    Tamanho foi o esquecimento de Jonas que ele parece não ter pensado em seu Deus em momento algum enquanto o temporal se alastrava, os vagalhões rolavam e o navio era açoitado pela tempestade. Os pobres marinheiros pagãos estavam todos de joelhos, clamando por misericórdia, mas Jonas estava dormindo. Até mesmo o supersticioso capitão ficou espantado com a sua apatia: “Que se passa contigo, dorminhoco? Não te importas que todos pereçamos?”. Ele foi ao porão e deu uma bronca em Jonas, perguntando-lhe como ele podia estar dormindo enquanto os passageiros e a tripulação estavam clamando. “Levanta-te”, disse ele, “e invoca o teu deus”. Até para atentar para o perigo e cumprir sua obrigação, Jonas teve que levar uma chamada de um pagão! 

Ora, talvez haja aqui também alguém que esteja com uma porção de problemas. Seu marido morreu? Você é uma mulher sozinha que sustenta sua família? Ou é um viúvo que olha para os filhos com piedade, quando antes os olhava com orgulho? É possível, ainda, que suas tribulações sejam de outra natureza. Seus negócios vão mal. Ao invés de grandes lucros, você tem tido perdas constantes; e até seu pequeno capital já foi dissipado. Mesmo assim, durante todo esse tempo, você não tem pensado em Deus. Talvez tenha perdido alguns filhos, mas ainda não se lembra de Deus. Será assim mesmo, que o Senhor o ama e, porque o ama, Ele o castiga? Ouça o que lhe digo, você continuará sofrendo uma perda atrás da outra, até perder tudo o que tem e tudo o que lhe é mais caro, e pode até ser levado às portas da morte, mas, no final, Deus o salvará. Se você já foi Dele, Ele jamais o deixará mergulhar no inferno; contudo, sua jornada para o céu não será fácil. Você será salvo, mas como que através do fogo (1Co 3.15). Será salvo como que por um triz — por um fio, e será terrivelmente doloroso. Ó, amigo, desejo que você se volte para Deus enquanto Ele ainda o está fustigando com brandura, pois saiba que se não for com a vara, será com o chicote, e se o chicote não servir, será com a faca, e se a faca não funcionar, será com a espada, e aí você sentirá, pois, tão certo quanto Deus é Deus, Ele nunca perderá um de Seus filhos, e Ele o fará em pedaços, por assim dizer, mas salvará sua alma. Ele enfraquecerá o seu corpo com doenças e o fará se jogar no leito da angústia, mas Ele o trará de volta. Queira Deus que a graça o faça voltar por meios mais brandos, antes que as provações se tornem piores.

E, assim, Jonas não pensa em seu Deus durante todo esse tempo. Por fim, o barco começa a ranger e parece a ponto de se despedaçar. Os marinheiros lançam sortes e ela recai sobre Jonas. Ele vai ser lançado ao mar. Nesse momento, um par de mandíbulas enormes se abre, se fecha e o engole. “Onde será que estou?”, diz Jonas, enquanto é levado para as profundezas pelo peixe monstruoso, as algas marinhas começam a se enrolar em sua cabeça e sua vida só é preservada por um milagre. Então, e só então, Jonas se lembra do seu Deus. “Quando, dentro de mim, desfalecia a minha alma”. Ora, por que sua alma desfalecia dentro dele? Não foi porque ele pensou: “Que situação! Nunca vou sair dessa. Como é que não me afoguei? Como essas mandíbulas enormes não me despedaçaram? Que coisa horrível! Logo, logo, vou morrer nesta horrível prisão.”? Ouso dizer que ele pensou que nunca alguém estivera em tal situação; que nunca alguém continuara vivo dentro de um peixe. E como era horrível sentir apenas um frio intenso à sua volta. Ao invés de roupas, ele tinha algas marinhas envoltas na cabeça. Seu coração palpitava e sua cabeça doía. Sem ânimo, sem luz; sem uma voz amiga; sem socorro, sem ajuda; longe da terra seca, no meio das profundezas, sem ninguém que se compadecesse de uma situação tão esquisita como aquela.

Ora, quando um filho de Deus se desvia do caminho, não é raro que Deus o leve a uma situação como essa, em condições em que ele não pode ajudar a si mesmo; desamparado e sem amigos, sem alguém para consolá-lo e aliviar seu sofrimento. Entretanto, um pensamento sombrio sempre irá assombrá-lo: “A culpa é toda minha. Não fui eu mesmo quem causou tudo isso?”. Que frutos pode esperar uma mulher que deixa sua família, abandona seu lar e trai seu gentil e terno marido? Quando estiver a ponto de morrer de fome, o vento estiver soprando por entre suas roupas rasgadas, seu rosto estiver inchado de tanto chorar e sua alma cheia de angústia, ela só terá a si mesma para culpar e dizer: “A culpa é toda minha; quem me dera nunca tivesse deixado meu lar, por mais humilde que fosse; quem me dera nunca tivesse abandonado meu marido, que me amava e me protegia, mesmo que às vezes pudesse ser rude! Ah, se eu tivesse sido mais atenciosa e menos insatisfeita!”. A reflexão tardia sobre o pecado — creio que chamam a isso de remorso. Quando a vergonha por seus pecados tomou conta de Jonas foi que ele pensou em seu Deus.

Ah! Como o Senhor Deus é misericordioso em permitir que pensemos nEle e nos voltemos para Ele quando estamos em condição tão miserável! Certa vez um comerciante disse a um freguês que não era muito grato pelas condições especiais que ele lhe oferecia: “Sei porque está aqui. Você rodou a cidade toda atrás do que queria, mas não encontrou. Agora está de volta, mas não lhe dei nenhum motivo para ter ido embora; por isso, não vou lhe atender.” Não é assim que o Senhor fala conosco. Ele não Se ressente da nossa ingratidão. “Meu filho”, diz Ele, “você foi embora e gastou todo o seu dinheiro; você se alimentou da comida dos porcos; está todo sujo, malcheiroso e maltrapilho, mas ainda é meu filho, e eu o amo”. Sem palavras de recriminação ou olhar de desdém, assim que o pobre pecador volta para casa, o Pai o abraça e lhe dá um beijo de perdão. “Lembro-me bem de ti”, diz Ele, “encobri teus pecados como uma nuvem, e como uma nuvem espessa as tuas iniquidades”. Ora, se há alguém aqui que tenha se desviado do caminho — e sei que há vários — só posso esperar que Deus o leve à mesma situação aflitiva de Jonas. Não sentirei pena de você se Ele o fizer; prefiro ser grato a Ele por tê-lo afligido, pois só assim saberei que Ele ainda o ama. No entanto, quando estiver em situação desesperadora, faça como Jonas — pense no seu Deus. 

Alguém aqui faz alguma objeção? Você acha que pensar em Deus o torna uma pessoa pior? Pense bem, então. Pense que um dia você foi Seu filho, você se desviou, mas Ele o descobriu e sabe onde está. Jonas sentiu que Deus sabia onde ele estava, pois enviou o peixe. Deus sabe por onde você anda, amigo pecador; Ele conhece a situação em que se encontra. Lembre-se de que você ainda está vivo! É maravilhoso que Ele ainda lhe permita ouvir Sua voz dizendo: “Volte, pecador, volte!”. Deus é imutável, Ele não pode mudar. Sua aliança é segura, Ele não irá alterá-la. Se Ele o amou uma vez, Ele ainda o ama. “Se o comprei, Eu o terei.”. Volte para Ele, então. Ele ainda é seu pai — volte! Volte! No entanto, caro ouvinte, talvez você não queira ser Seu filho! Talvez tenha sido hipócrita e feito sua profissão de fé só para se sentir bem. Você se afastou da companhia daqueles que temem ao Senhor porque nunca foi realmente convertido. Se for assim, que a misericórdia do Senhor para com os pecadores o leve a clamar a Ele. E que o martelo da Sua Palavra o faça em pedaços. E que Ele o salve e seja extremamente honrado na sua salvação.

    Muito embora eu tenha tentado atingir os afastados, é mais provável que não tenha conseguido, por melhor que tenha sido minha intenção. Parece horrível que alguns aqui, que conhecem o caminho da esperança, possam perecer em seus pecados! Alguns foram acalentados por joelhos piedosos. Se aqueles que estão no céu agora, olhando para vocês, pudessem chorar, vocês veriam suas lágrimas caindo sobre suas testas. Vocês sabem que houve um tempo em que a esperança de um mundo melhor lhes proporcionava algum tipo de conforto e alegria. De qualquer forma, não creio que naquela época, vocês fossem fingidos; vocês realmente se consideravam pecadores. Pela compaixão do Altíssimo, pelo amor de Deus, rogo-lhes que parem e pensem! Não bebam o cálice dos demônios depois de terem bebido o cálice do Senhor. Não entreguem à condenação a alma que antes parecia oferecer oferta suave por sua salvação. A vida eterna é um prêmio muito valioso para se brincar com ele. Que o Espírito de Deus faça o que eu não posso fazer. Que Ele envie esta mensagem às pessoas a quem ela se destina. 

E, agora, em segundo lugar, temos que lidar com os negligentes, os imprudentes, os dissolutos:

II. AQUELES QUE NUNCA FORAM DESPERTOS — na avaliação moral ou imoral do mundo. Jonas não se lembrou do seu Deus até sua alma estar desfalecida dentro dele; e o pecador negligente, via de regra, nunca se lembra de Deus até estar sob a opressão da lei, ou a aflição da dor e da punição; até sua alma estar prestes a desfalecer dentro dele. Agora, espero que alguns de vocês sejam levados a ter esse sentimento.

Que tipo de desfalecimento geralmente sentem as pessoas que estão sob a disciplina salvadora do Espírito de Deus?

Há o desfalecimento causado pelo horror da sua presente condição. Imagine uma pessoa que se deita à beira de um penhasco e acaba pegando no sono. De repente ela desperta e percebe que se movimentou durante o sono e está a um palmo do precipício; quando olha lá para baixo, vê as rochas escarpadas e o mar agitado. Como será que ficam seus nervos quando ela percebe onde está e o risco que corre? Da mesma forma, muitos pecadores abrem os olhos para a situação perigosa em que se encontram. De repente, eles acordam e descobrem que estão no limiar da ira eterna, diante de um Deus irado que está brandindo uma espada terrível, determinado a cravá-la em seu coração. Cada pessoa não convertida neste recinto está sobre uma prancha que paira sobre a boca do inferno; a prancha está podre; está dependurada apenas por uma corda sobre as mandíbulas da perdição, e os fios da corda podem se romper a qualquer instante. Se alguém reconhece a realidade da sua situação, não é de admirar que desfaleça.

Além disso, o desfalecimento pode surgir do pavor de horrores iminentes. Será possível imaginar o desespero dos pobres passageiros a bordo daquele navio que recentemente naufragou em mar aberto, ante a perspectiva de serem tragados vivos, sem saber para onde iriam? Não deve ter sido fácil manter o ânimo quando sua condenação parecia tão próxima. Assim, quando Deus desperta a alma com o som de uma tempestade, a alma olha para fora e vê o oceano da ira divina prestes a engoli-la. Os gritos das almas perdidas a apavora e ela diz para si mesma: “Logo vou me misturar a elas, minha voz se juntará à sua dolorosa companhia; em poucas horas uma espada flamejante estará em meu calcanhar e serei expulsa da presença de Deus”. Então, a alma alarmada desfalece ante a ideia do julgamento que está por vir.

A alma do pecador desfalece, ainda, devido à sensação de fraqueza. Parece que a ideia que toma conta da pessoa é: “não tenho como evitar essa tragédia”. Sobre o pecador desperto surge tal sensação. Quando um pecador não conhece a si mesmo, pensa que ser salvo é a coisa mais fácil do mundo. Ele supõe que ter a paz de Cristo é tão fácil quanto um estalar de dedos. No entanto, quando Deus começa a trabalhar na sua vida, ele diz: “Eu queria acreditar, mas não posso.”, e então clama: “Ó, Deus, creio que é tão impossível ter fé quanto guardar a Tua lei, a menos que Tu me ajudes!”. Antes, ele achava que poderia reformar a si mesmo e se tornar tão santo quanto um anjo; mas, agora, ele sabe que não pode fazer nada, por isso, clama em sua fraqueza: “Ó, Deus, que criatura pobre, inútil e impotente eu sou!”.

Às vezes, o desfalecimento virá de tal forma que posso dizer que será uma sensação horrível. Lembro-me bem de quando tive essa sensação. Pensei em desistir de orar, pois me parecia uma coisa inútil; mas eu não podia deixar de orar; eu precisava orar, mas para mim era como se não tivesse orado. Achei que nunca mais ia querer ouvir o evangelho; no entanto, havia um fascínio em sua pregação que me fazia querer ouvi-lo. Eu ouvia dizer que Cristo era gracioso para com os pecadores, mas não conseguia acreditar que fosse gracioso para comigo. Pouco importava se eu ouvisse uma promessa ou uma ameaça. Eu gostava mais das ameaças. As ameaças pareciam ser exatamente o que eu merecia e me provocavam algum tipo de reação. No entanto, quando ouvia uma promessa, eu estremecia com a sensação sombria de que não era útil para mim; eu já me sentia condenado. As dores do inferno tomavam conta de mim, tão torturada ficava minha alma com os presságios de uma condenação sem fim. Outro dia, ouvi falar de um jovem ministro que abandonou sua igreja, e orei por ele. Qual, vocês acham, foi minha petição? Pedi para que Deus o fizesse sentir o peso da Sua mão, pois não posso imaginar que alguém que já sentiu o peso da mão de Deus possa, depois disso, duvidar do Seu ser, da Sua soberania ou do Seu poder. Creiam-me, irmãos, a fim de que algumas pessoas abandonem seu amor pelo pecado, sejam purificadas da sua própria justiça e sejam levadas a depender somente Dele, Deus as leva a sentir uma angústia tão indescritível, que elas não poderiam tolerá-la por muito tempo sem se sentir absolutamente insanas. Alguns não podem ser atraídos de outra forma. Posso estar me dirigindo a tais pessoas neste momento. Sinceramente, espero que sim. Vocês podem sentir a mão de Deus. Sentem todo o seu peso e, sob ele, são esmagados como uma mariposa é esmagada pelos dedos de uma pessoa. Assim sendo, tenho uma mensagem de Deus para vocês. Quando Jonas estava na mesma situação, ele se lembrou de seu Deus. Diga-me, pobre coração, “O que dizes — o que dizes para te lembrares do teu Deus?”. 

O caso que vou descrever agora não é exatamente o de John Newton1, mas é da sua experiência que tiro minha ilustração. Havia um rapaz que tinha um pai muito bom, um verdadeiro crente. Quando ficou mais velho, ele não gostava da sua profissão, por isso, disse ao pai: “Embora esteja sob sua autoridade, pretendo seguir meu próprio caminho; outras pessoas se divertem e eu também quero me divertir, mas não posso fazer isso enquanto estiver debaixo do seu teto. Vou seguir meus sonhos.”. Ele se tornou marinheiro. Quando estava no mar, ele descobriu que nem tudo era como ele queria que fosse; o trabalho que tinha a fazer era muito diferente do que estava acostumado; mesmo assim, ele não desistiu. Quando chegaram ao primeiro porto, ele deu vazão às suas paixões. “Ah!”, disse ele, “Isso é que é vida! É muito melhor do que ficar na casa do meu pai e viver sob as rédeas da minha mãe. Cara, esse é o tipo de vida que eu quero!”. Ele embarcou novamente e, onde quer que o navio atracasse, o porto se tornava um escoadouro para seus vícios. Ele era um rapaz que raramente praguejava ou bebia e, quando voltava à Inglaterra, em geral, não falava mal da religião, nem dos escrúpulos de consciência do seu pai. Acontece que, certo dia, ele teve de enfrentar uma grande tormenta. Ele passou horas bombeando a água do navio e, quando parecia que ia terminar, começava tudo de novo, pois o navio estava prestes a naufragar, e todo mundo precisava dar duro durante muitas horas. As rajadas de vento eram fortes e a tempestade era tremenda. Por fim, eles entenderam que nada podia salvá-los; havia rochedos na costa e o navio ia dar contra eles! Ele se amarrou no mastro e flutuou a noite toda, e na seguinte, e na outra, quase sem esperança de se salvar. Durante esse tempo, ele teve alguns lampejos de consciência e não conseguiu deixar de pensar na sua mãe e no seu pai. Mas ele não se deixaria abater por tão pouco. Ele tinha o coração endurecido, e não ia desistir. Ele foi dar na praia, no meio de um povo selvagem. Eles cuidaram dele e lhe deram comida, embora sua refeição fosse bastante escassa. Então, começou a trabalhar como escravo. Seu senhor era muito duro com ele, e sua esposa era especialmente cruel. Ele comia muito pouco e era espancado com frequência. Mesmo assim, ele aguentava firme e esperava por dias melhores. No entanto, exausto e faminto, sua saúde física e mental começou a ficar cada vez mais fraca. Não era de admirar que a febre o tenha assaltado. Quem ele tinha para cuidar dele? Quem ele tinha para se importar com ele? Aquelas pessoas o tratavam como um cão e ninguém ligava para ele. Ele mal conseguia se mexer ou se mover. No meio da noite, em vão ele desejou um gole d’água; parecia que ia morrer de sede. Ele ergueu a voz, mas ninguém o atendeu. Não houve resposta ao seu apelo. Assim, ele pensou: “Ó, Deus, se eu pudesse voltar para a casa de meu pai!”. E foi assim que, quando chegou ao seu limite, é que ele pensou na sua casa.

    Ora, o que aconteceu com John Newton vai acontecer, e acontece, com muitos pecadores. Ele nunca voltaria para Deus; mas, no final, sentiu que não havia outro lugar para ir. Ele foi levado ao completo desespero. Nesse dilema, seu coração disse: “Ah! Que eu possa encontrar o Senhor!”. 

Vou lhes contar uma história. Uma porção de marinheiros ia para o mar. Quando estavam prestes a zarpar, o proprietário do navio lhes disse: “Esperem! Comprei um barco salva-vidas2. Ponham-no a bordo.”. Eles responderam: “Pra quê? Não precisamos disso. A gente não acredita nessas coisas. É só uma tranqueira moderna. Não sabemos como funciona e nunca vamos usá-lo.”. “Coloquem-no a bordo e deixem-no lá.”, disse o capitão. “Ora, capitão”, disse o contramestre, “é só um barco de nada, não é? Não consigo imaginar o que o proprietário quer colocando uma coisa dessas a bordo.”. E os velhos marujos, enquanto caminhavam pelo convés do navio, diziam: “Nunca vimos uma coisa dessas na vida! Imagina o velho Ben Bolt levando um treco desses a bordo! Não acredite em tais geringonças!”. Logo depois, uma brisa forte começou a soprar e se transformou num vendaval — num furacão — num perfeito tornado! Hora de descer o barco salva-vidas, capitão. “Não, não, bobagem!” Desça o barco salva-vidas! “Não, outros barcos saíram e, um após o outro, se romperam e emborcaram.”. Então, eles trouxeram mais um, e ele também não conseguiu enfrentar a tempestade. Lá foi ele, bem na crista das ondas — não aguentou e virou de ponta-cabeça. Para eles, estava tudo acabado! “O que faremos, capitão?”. “Contramestre, tente o barco salva-vidas”. 

Só então; quando todos os recursos se foram, quando todos os outros barcos foram lançados ao mar e quando o navio estava prestes a afundar, eles pegaram o barco salva-vidas. Que assim seja. Que o Senhor atire todos os barcos no mar. Que Deus Se agrade de destruir o seu navio; que Ele faça estremecer cada viga desse navio e faça você embarcar no barco salva-vidas. Receio que alguns aqui só aceitem este conselho quando estiverem no fundo do poço. Que haja, então, uma tormenta tal que os leve a aceitar a Cristo. Isso feito, não haverá mais tormentas a temer. Isso feito, por mais forte que seja o bramido da tempestade, você estará a salvo, pois Cristo estará no barco com você. 

Só mais duas ou três palavrinhas e eu termino. Deus Se agradou de dar o Seu Filho amado, o Seu único Filho, para morrer uma morte terrível, não por justos, mas por pecadores. Jesus Cristo veio ao mundo buscar e salvar aquele que estava perdido. Se você é um pecador, você é o tipo de pessoa que Cristo veio salvar. Se você é um perdido, você é o tipo de pessoa que Cristo veio buscar. Que a sua tristeza lhe sirva de conforto, pois é indicação de que você é o tipo de pessoa que Cristo veio abençoar. Que o seu desespero o livre do desespero, pois quando você se desespera é que há esperança para você. Quando você não puder fazer mais nada, Deus fará tudo. Quando estiver vazio de seus próprios conceitos, haverá lugar para Cristo entrar em seu coração. Quando estiver despido, as vestes de Cristo lhe serão fornecidas. Quando estiver faminto, o pão que desce do céu lhe será dado. Quando estiver com sede, a água da vida será sua. Que esse desespero, esse terror, esse alerta, esse desfalecimento, essa fraqueza, simplesmente o levem a dizer: “Sou aquele a quem Cristo chama para Si. Irei a Ele e, se perecer, perecerei somente ali.”. E, se você crer em Cristo, jamais perecerá, nem será arrebatado da Sua mão. Que você creia nEle, aqui e agora. Amém. 


Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza


NOTAS DO TRADUTOR:

1.  John Newton (1725-1807), pastor anglicano, autor do Hino Amazing Grace, o qual, antes de sua conversão, foi traficante de escravos. Sua história é contada por Brian Edwards no livro De Traficante de Escravos a Pregador, lançado no Brasil pela Editora Fiel.


2. O bote salva-vidas a que Spurgeon se refere foi criado por Maria Beasley (1836-1913). 

"Pouco se sabe sobre a inventora Maria Beasley, apenas que queria criar um bote salva-vidas mais resistente, à prova de fogo e compacto. Sua versão, lançada em 1884 em uma exposição de Nova Orleans, era mais fácil de dobrar e armazenar: até 1870, o bote era basicamente uma tábua de madeira."


(fonte: https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/noticia/2017/03/11-invencoes-importantes-que-foram-criadas-por-mulheres.html)

segunda-feira, 20 de maio de 2024

Cristo Se Manifesta a Seu Povo

                                                                            

                                                       Sermão nº 29

Ministrado na manhã de domingo, 10 de junho de 1855, pelo

Rev. C. H. Spurgeon

em New Park Street Chapel, southwark

 

“Disse-lhe Judas, não o Iscariotes: Donde procede, Senhor, que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?” — João 14:22

Que Mestre bendito foi Jesus! Que familiaridade Ele permitiu que Seus discípulos tivessem com Ele! Mesmo sendo o grande e poderoso Senhor da vida e da glória, além de ser o homem de Nazaré, vejam como Ele fala a Seus discípulos, pescadores pobres e iletrados, como se fossem Seus iguais! Ele não era um dos seus dignatários, que se orgulhavam da própria dignidade — nem um daqueles religiosos cheios de formalidade, que se consideravam acima dos outros, como se de fato não fossem seus semelhantes. Ele fala a Seus discípulos como um pai a seus filhos — com mais carinho até do que um professor a seus alunos. Ele permite que eles Lhe façam perguntas simples e, ao invés de censurá-los por sua liberdade, Ele consente em responder a cada uma delas. Filipe pediu-lhe uma coisa que ninguém de bom senso, e que estivesse com Ele há tanto tempo, sequer pensaria em pedir. Ele disse: “Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta.” (João 14:8). Mas que estupidez! Como se Jesus pudesse mostrar o Pai, ou seja, mostrar Deus a Filipe! No entanto, Jesus gentilmente responde: “Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me tens conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai, como dizes tu: Mostra-nos o Pai? Não crês que eu estou no Pai e que o Pai está em mim?” (João 14:9,10). E aí vem Judas (não o Iscariotes) e também faz uma pergunta muito simples — algo que ele não precisava ter perguntado; e Jesus, ao invés de repreendê-lo, simplesmente muda de assunto e, com toda sabedoria, deixa a pergunta sem resposta, porque Seu silêncio o ensinaria muito mais do que qualquer explicação.

É preciso observar também como o Espírito Santo age de modo específico para que um homem bom não seja confundido com um perverso. Ele diz, “Judas (não o Iscariotes)”. Havia dois discípulos com o mesmo nome, Judas: o que traiu nosso Senhor e o que escreveu a epístola de Judas, o qual realmente tinha de ser chamado de Judas. Algum de nós, ao ler o nome Judas, poderia dizer: “Ah! Quem fez a pergunta foi aquele traidor do Judas Iscariotes!”. No entanto, o Espírito Santo não permitiria que tal engano fosse cometido. Isto mais uma vez nos ensina que não é sem sentido desejar que nosso nome passe para a posteridade. Todos devemos desejar ter um caráter imaculado; devemos querer que a promessa seja cumprida: “A memória do justo é abençoada” (Provérbios 10:7). Eu não gostaria que meu nome fosse confundido com o de um criminoso que se enforcou. Não gostaria que meu nome fosse escrito, nem mesmo por engano, no rol da infâmia. Por mais que agora eu possa ser mal interpretado, um dia se saberá o quanto tenho me esforçado pela glória do meu Mestre, e Deus dirá: “Judas (não o Iscariotes)”. Afinal, o homem não era um impostor.

Mas vamos deixar Judas de lado e passemos a examinar nosso texto. Nele há duas coisas: primeira, um fato importante; segunda, uma pergunta interessante, “Donde procede, Senhor, que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?”. Eis um fato e uma pergunta sobre ele.

I Assim, em primeiro lugar, vem UM GRANDE FATO: Jesus Se revela a Seu povo, mas não ao mundo. O fato está implícito na pergunta. E, mesmo que a Escritura não tivesse feito essa declaração, muitos de nós têm a Escritura gravada no seu coração — a Bíblia da experiência — a qual nos ensina que isso é verdade. Pergunte a qualquer cristão se, antes de ser regenerado, ele teve alguma manifestação particular e maravilhosa de Seu Senhor e Salvador Jesus Cristo como tem agora. Leia a biografia dos grandes santos da história e você encontrará registros de como Jesus Se agradou, de forma muito especial, em falar às suas almas, desvelando as maravilhas da Sua pessoa e deixando-os vislumbrar as glórias incomparáveis da Sua obra. Sim, para que suas almas se enchessem de felicidade a ponto de se imaginarem no céu, mesmo que, embora bem perto, ainda não estivessem lá — pois quando Jesus Se manifesta a Seu povo é o início do céu na terra, é um paraíso em embrião, é o começo da bem-aventurança do glorificado; sim, e será a consumação dessa bem-aventurança quando Jesus Se revelar perfeitamente ante os olhos admirados de todo o Seu povo e eles forem como Ele, e O virem como Ele é.

Portanto, nesta manhã, vamos falar algo a respeito dessa manifestação especial que Jesus concede a Seu povo, e somente a ele. Faremos quatro observações. Em primeiro lugar, falaremos alguma coisa sobre os favorecidos — “a nós”, “não ao mundo”. Em segundo lugar, sobre as ocasiões especiais — “que estás para”. Jesus não estava manifestando a Si mesmo naquele exato momento, mas “estava para” Se manifestar. Há ocasiões especiais. Em terceiro lugar, faremos algumas observações sobre essa maravilhosa manifestação — “estás para manifestar-te a nós e não ao mundo”. E, em quarto lugar, nos deteremos um pouco mais falando sobre os efeitos que essa manifestação produzirá na nossa alma.

1. Primeiramente, então, quem são as pessoas favorecidas a quem Jesus Cristo Se manifesta? “Donde procede, Senhor, que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?”. O texto parece indicar que as pessoas a quem Jesus Cristo Se manifesta de forma tão maravilhosa não pertencem ao mundo. Nesse caso, quem são elas? Tenho certeza de que seria difícil para você ou para mim distingui-las; por isso, vou usar um exemplo fictício e pedirei a algum espírito de um mundo desconhecido para indicar tais indivíduos. “Ó espírito! Eu te dou uma missão. Há um determinado número de pessoas neste mundo que não pertence a ele: vai, descobre-as, volta e dize-me o que encontraste.” Damos tempo ao espírito; ele voa pelo mundo afora e retorna. Ele diz: “Vi uma grande multidão; todos seguiam pelo mesmo caminho, com um único objetivo; eu os vi pisoteando uns aos outros na fúria da sua perseguição; eu os vi correndo atrás de alguma coisa que cada um desejava para si; mas, no meio da multidão, vi algumas pessoas marchando em sentido oposto e, em meio a muitas cotoveladas e forte oposição, iam exatamente na direção contrária. Vi escrito na testa daqueles que seguiam com a multidão a palavra ‘eu’; contudo observei que quem ia na direção contrária tinha inscrito acima das sobrancelhas: ‘Cristo’; e eu os ouvi dizendo para si mesmos: ‘Para nós o viver é Cristo, para nós o morrer é lucro’ (Fp 1.21). Observei aquelas pessoas, vi-as persistindo em seu caminho apesar de todo desafio, indo contra toda oposição. Fiquei me perguntando para onde iam e vi que adiante delas havia um postigo, onde estavam escritas as palavras: ‘Misericórdia para o principal dos pecadores’. Eu as vi entrar ali e as observei enquanto corriam ao longo dos muros da salvação e, acompanhando-as até o seu destino, eu as vi, finalmente, cruzar os braços na morte, fechar os olhos com tranquilidade, enquanto eu ouvia anjos cantando um réquiem e uma voz gritando: ‘Benditos aqueles que morrem no Senhor’. Com certeza, essas devem ser as pessoas que não são do mundo”. “Falaste bem, ó espírito, são elas. O que viste delas, ó espírito? Elas se reuniam e se congregavam, ou se misturavam com o resto da humanidade?”. “Ora”, disse ele, “notei que, uma vez por semana, elas se reuniam em certo lugar que chamavam a Casa de Deus; eu as ouvi entoando canções de louvor e ajoelhadas reverentemente, não só naquele lugar, mas também quando estavam sozinhas; testemunhei seus lamentos, suas lutas e suas agonias; sabia que eram pessoas de oração e amavam a Deus. Eu as vi em reuniões secretas, para dizer o que o Senhor tinha feito por suas almas; reparei que não eram encontradas entre os ímpios. Percebi que não entravam em certas casas. Em uma determinada esquina ficava uma casa bem iluminada, com muitas lâmpadas, e na sua frente havia alguns sinais místicos da Cabala, marcas de males e calamidades. Ali vi gente perversa, cambaleando de um lado para outro; observei sua embriaguez. No entanto, vi como o cristão tapou os olhos com as mãos e passou por aquele lugar. Vi também outro antro do inferno, onde havia muitas coisas que não deveriam ser vistas — gritos de prazer e euforia, mas não cânticos sagrados. Olhei ao redor e não vi uma única daquelas benditas pessoas; elas não se detinham no caminho dos pecadores, não se assentavam na roda dos escarnecedores, nem andavam no conselho dos ímpios (Salmo 1). Reparei que, como frutos da mesma videira — eles encontravam seus companheiros e andavam juntos — construíam seu ninho na mesma árvore e faziam sua habitação debaixo do mesmo teto.” “Sim”, diz o espírito, “ouvi um deles exclamar: ‘o que profere mentiras não permanecerá ante os meus olhos’ (Salmos 101:7). Eu o vi expulsar o mentiroso da sua casa e dizer ao devasso para afastar-se. Eu os observei; vi que eram pessoas distintas e separadas, e disse: certamente é sobre elas que está escrito: ‘eis que é povo que habita só e não será reputado entre as nações’” (Números 23:9). Bem, espírito, tua descrição é correta. Fico me perguntando quantas delas há; pessoas a quem Deus Se revelará, e não ao mundo. Essas pessoas não são mundanas em seus princípios, suas ações, suas conversas, seus desejos, seus objetivos e finalidades. Assim são elas. Não me interessa a graça comum ou as manifestações universais; sempre que eu puder, vou proclamar a livre graça a pessoas específicas, enquanto estiver escrito: “que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo”.

         2. Nossa próxima observação é sobre as ocasiões especiais. As pessoas altamente favorecidas nem sempre veem Cristo da mesma forma. Nem sempre elas mergulham na luz do Seu semblante. Há tempos especiais em que Deus Se agrada de Se revelar a Seu povo. Esses períodos, geralmente, são de dois tipos: tempos de dever e tempos de provação. Nunca vi um cristão preguiçoso ou indiferente ter uma manifestação de Jesus Cristo; nunca ouvi alguém que só se preocupa com seus negócios falar muito sobre manifestações espirituais. Pobre alma, sua religião é suficiente para salvá-lo, mas não o suficiente para fazê-lo perceber as bênçãos espirituais e especiais de um cristão. Para quem faz pouco por Cristo, Cristo também faz pouco por ele em termos de favores especiais. Aqueles que se sentam, cruzam os braços, comem, bebem e ficam satisfeitos, não são os que entram na câmara secreta do Altíssimo e desfrutam da presença do Todo-Poderoso. Os mais zelosos por seu Mestre compreendem muito melhor a Sua bondade e desfrutam as bênçãos mais ricas do Senhor. Pergunte a um cristão quando ele é mais feliz e ele lhe dirá que é quando está trabalhando. Eu sei porque é assim comigo. Ainda não tentei descansar e, sem dúvida, encontrarei algo para fazer além do descanso. Quando passo um dia sem pregar o nome do meu Mestre, sinto que não fiz o que deveria ter feito, e não me sinto satisfeito até estar novamente atrás do púlpito. Quando trabalhamos com mais afinco, sentimos que a graça é mais abundante; quando cavamos mais fundo, alcançamos água mais doce. Para quem trabalha mais o pão fica mais macio; e acredite, gotas de suor são uma bênção para amolecer o pão seco. O trabalho árduo por Cristo sempre trará felicidade genuína. Para Issacar, “jumento de fortes ossos, de repouso entre os rebanhos de ovelhas” (Gn 49:14-15) — homem que faz pouco — a promessa é: “O açoite é para o cavalo, o freio, para o jumento, e a vara, para as costas dos insensatos.” (Provérbios 26:3). O homem indolente deve ser fustigado; mas aquele que serve a Deus pode se regozijar, pois Deus o tratará com as delícias reais (Gn 49.20); Ele lhe dará a sua porção misturada com mel; Ele dirá: “Tomei o teu pão e mergulhei-o no meu próprio prato; toma-o, come-o, pois tu és aquele que trabalha na minha própria vinha”. As ocasiões especiais serão nos tempos de dever, ou, como eu disse, nos tempos de provação, pois não podemos supor que, quando um cristão é afastado das suas obrigações, ele não está fazendo nada. Não pense que sua enfermidade é um desperdício. Não é só para o seu próprio benefício, mas você realmente serve a Deus no seu sofrimento, se o suportar com paciência. Você conhece aquele texto que diz que “Nós preenchemos o que resta das aflições de Cristo em nossa carne, a favor do Seu corpo, que é a igreja”? (Cl. 1.24). O corpo místico de Cristo é composto da cabeça e de todos os membros. A cabeça já teve o seu sofrimento — já acabou; mas o corpo tem certa porção a suportar também; e, quanto mais você sofre, menos sofrimento há para outra pessoa. Há certa quantidade de provação que toda a igreja tem de suportar antes de chegar ao céu; pois, assim como Cristo foi afligido, também todo o Seu povo deve ter comunhão com Seus sofrimentos. Há um cálice cheio de mistura, e o justo deve beber dele; todos precisamos beber um gole; mas, se algum de nós puder beber um pouco mais, e fazê-lo com paciência, haverá muito menos para os outros. Portanto, não vamos nos queixar, pois é nos momentos de tribulação que aprendemos mais de Jesus. Antes de Israel guerrear contra Amaleque, Deus lhes deu água da rocha e lhes enviou o maná do céu; e, antes de Jacó se encontrar com Esaú, o anjo de Deus lutou com ele no vau do Jaboque e hostes de anjos o encontraram em Maanaim. Antes da tribulação, geralmente se espera um tempo de alegria; e, quando essa época acaba, você pode dizer: “Agora deve vir alguma aflição, pois já recebemos muitas alegrias”. Mas, quando a tribulação vier, regozije-se nela, pois nossos problemas geralmente são proporcionais às nossas alegrias, e nossas alegrias costumam ser proporcionais aos nossos problemas. Quanto mais amargo for o vaso da aflição, mais doce será o cálice da consolação; quanto mais pesada a tribulação neste mundo, mais brilhante a coroa de glória no futuro. Na verdade, no hebraico, a mesma palavra significa tanto “peso” quanto “glória”. Um peso de tribulação é uma glória para o cristão, pois é uma honra para ele; e a glória é um peso, pois muitas vezes o põe de joelhos e o faz prostrar-se aos pés do seu Mestre. Pergunto a meus irmãos e irmãs quando foi que sentiram mais a presença de Jesus — quando andavam pelo jardim das delícias ou quando sentiam o amargor do remédio na boca? Suas experiências com Jesus não foram melhores quando estavam sendo assaltados pela dor do que quando estava tudo bem? Quando o celeiro está repleto, o tonel de azeite estourando e o vinho transbordando, é aí que muitas vezes o santuário de Deus é abandonado e o gabinete da Sua benevolência quase esquecido. No entanto, quando a figueira não floresce e não há rebanhos no aprisco, então Deus Se aproxima de Seus filhos e revela mais de Si a eles.

         3. A próxima consideração é a própria manifestação extraordinária. Jesus manifesta a Si mesmo. Existem muitas manifestações de Deus a Seus filhos, mas esta é a mais preciosa de todas. Há manifestações que não queremos ter novamente. Por exemplo, aquela sensação horrível da nossa pecaminosidade ao sermos regenerados: nós deixamos isso com Deus, mas não oramos para sentir de novo. Mas há uma manifestação que gostaríamos de ter todos os dias. “Eu me manifestarei a ele”. E Ele o faz de diferentes formas. Há tempos tenho experimentado uma manifestação de Seus sofrimentos no Getsêmani; há meses venho meditando sobre as Suas agonias; parece até que estou comendo as ervas amargas que crescem junto ao ribeiro do Cedrom e bebendo das suas águas escuras. Às vezes subo os degraus sozinho, coloco-me na posição em que Jesus estava e penso que poderia dividir com Ele os Seus sofrimentos. Para mim, é como se visse as gotas de sangue do Seu suor caindo no chão. É uma visão tão doce do meu Salvador em Suas agonias, que espero um dia ser capaz de segui-lo ainda mais e vêlO no Calvário, e ouvir Seu grito de morte “Eli, Eli, lamá sabactâni?” (Mateus 27:46). Sei que alguns aqui já viram Jesus com tanta clareza com os olhos da fé que foi quase como se O estivessem vendo com seus próprios olhos. Puderam ver seu Salvador pendurado na cruz. Acharam que estavam vendo a própria coroa de espinhos em Sua cabeça e as gotas de sangue escorrendo por Sua face; ouviram-nO gritar; viram Seu lado ensanguentado; viram os cravos e correram para tirá-los e envolvê-lO em linho e especiarias, carregaram Seu corpo e o lavaram com lágrimas e o ungiram com unguento precioso. Em outras ocasiões, tiveram uma manifestação de Cristo naquilo que Ele lhes deu. Viram o tremendo sacrifício que Ele ofereceu, a fumaça do braseiro subindo aos céus e todos os seus pecados sendo ali queimados; viram claramente a Sua retidão justificadora sendo-lhes imputada e, ao olharem para si mesmos, disseram: 

Estranhamente, minh’alma, foste vestida

Pela gloriosa Trindade Santa

Em doce e suave harmonia

Tudo que há em mim canta

Há ocasiões, também, em que sentem grande alegria ante a exaltação de Cristo demonstrada em Seus méritos. Vocês O veem triunfante, com um pé sobre Satanás e outro sobre a morte. Podem contemplá-lO marchando para o céu à frente das resplandecentes hostes celestiais; e, no devido tempo, irão ter uma manifestação na própria alma, dAquele que se assentou no trono do Pai até seus inimigos serem postos por estrado dos Seus pés. (Hebreus 10:13). E a fé, às vezes, ultrapassa de tal forma as asas do tempo, que podemos trazer o futuro para o presente e ver aquela grande e suntuosa aparição do Rei assentado no grande trono branco, empunhando o Seu cetro (Apocalipse 20.11), quando Seus santos estarão diante dEle entoando o seu louvor. Se fosse um pouco mais além, eu seria acusado de fanatismo, e talvez eu seja mesmo fanático; mas, mesmo assim, quero acreditar que há ocasiões em que o cristão vive às portas do céu. Se não adentro um centímetro os portões de pérola, não estou aqui. Se não sinto o cheiro dos incensários dos glorificados e ouço a música de suas harpas, acho que não estou vivo. Há ocasiões, também, de alegria estática, quando escalo as montanhas mais altas e ouço sussurros vindos do trono. Você já teve esse tipo de manifestação? Se não teve, não vou condená-lo, mas creio que a maioria dos cristãos as têm e, se forem comprometidos com o trabalho do Mestre e estiverem em grande sofrimento, é certo que terão. Esse tipo de coisa não é dado a todos, só para alguns, mas quem tem sabe qual é o significado da sua fé. Há poucos dias eu estava lendo sobre o Sr. Tennant (1). Certa noite ele estava pronto para pregar, quando pensou em dar um passeio. Enquanto caminhava pelo bosque, ele sentiu uma manifestação tão poderosa da presença de Cristo que teve de se por de joelhos, e não conseguiram achá-lo no momento em que ele tinha de pregar. Ele continuou ali por horas, sem saber se estava no corpo ou fora dele e, quando o acordaram, seu rosto brilhava e ele parecia alguém que estivera com Jesus. Ele disse que nunca se esqueceria daquele dia, daquele período de comunhão, quando, embora não pudesse ver a Cristo, Ele estava lá, tendo intimidade com ele, coração com coração, da forma mais doce. Deve ter sido uma demonstração maravilhosa. Você deve conhecer algo a esse respeito. Caso contrário, não terá avançado muito na carreira espiritual. Que Deus o ensine mais e o leve ainda mais fundo! “Conheçamos e prossigamos em conhecer ao Senhor”. (Oseias 6.3)

         4. Portanto, quais serão os efeitos naturais dessa manifestação espiritual? O primeiro será a humildade. Se alguém diz que “tudo o que faz é espiritual e, por isso, ele é uma boa pessoa”, é porque não há nada de espiritual nele; pois “O Senhor atenta para os humildes; os soberbos, ele os conhece de longe” (Salmo 138.6). Ele não deseja se aproximar para se relacionar com eles, e nunca lhes fará visitas de amor. O segundo será a  felicidade, pois feliz é aquele que vive perto de Deus. Além disso, há também a santidade. Quem não tem santidade é porque nunca teve esse tipo de manifestação. Algumas pessoas dizem muitas coisas; mas não acredite nelas, a menos que suas ações correspondam ao que elas dizem. “Não vos enganeis: de Deus não se zomba”. (Gálatas 6.7) Ele não concederá Seus favores aos perversos; pois “Ele não rejeita ao íntegro, nem toma pela mão os malfeitores” (Jó 8.20). Portanto, haverá três efeitos da proximidade com Jesus: humildade, felicidade e santidade (2). Que Deus nos conceda todos eles!

         II Agora, passemos ao segundo ponto: UMA PERGUNTA INTERESSANTE. Judas disse: “Donde procede, Senhor, que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?”. O que esta pergunta sugere e como ela foi respondida.

Primeiramente, a pergunta sugere ignorância. O pobre Judas deve ter pensado: “Como Jesus pode Se manifestar a nós e não ao mundo?. Ora, se Ele vier novamente, o mundo O verá tão bem quanto nós. Como Ele fará? Suponhamos que Ele venha numa carruagem de fogo ou numa coluna de nuvem: se nós O virmos, o mundo também O verá”. E, na sua ignorância, ele perguntou: “Como pode ser isso, Senhor?”.  Pode ser também que a pergunta tenha sido feita em razão da sua grande bondade: “Ah, Senhor, como pode ser que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?”. Ele era ligeiramente arminiano, queria  que todos tivessem a mesma coisa, e disse: “Como é que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?”. “Ó Senhor, gostaria que fosse para todos. Sou benevolente”. Ah, meu amado, não precisamos ser mais benevolentes que Deus. Alguns dizem: “Se todos os pecadores fossem salvos, isso glorificaria ainda mais a Deus”. Mas Deus, com certeza, sabe muito melhor que nós quantos pecadores irão glorificá-lO; temos de deixar o número por conta dEle e não nos metermos naquilo que não é da nossa conta. A Escritura diz: “todo insensato se mete em rixas” (Provérbios 20.3), e insensato é aquele que se mete naquilo que não lhe diz respeito. Mas, seja como for, Judas disse: “Donde procede, Senhor, que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?”. Pode ser, ainda, que ele tenha feito a pergunta por amor ao Mestre. “Ó, Senhor, achei que virias e serias Rei sobre todos, mas parece que serás apenas sobre alguns”. Ele queria que o domínio de Cristo fosse universal. Queria ver o trono do Salvador em cada coração. Desejava que todos se curvassem diante Dele, e esse desejo era justo e louvável. Por isso, ele perguntou a Cristo: “Como pode ser, Senhor, que não conquistarás tudo?”. Jesus nunca respondeu à pergunta. Foi uma pergunta louvável, mas só teremos a resposta quando chegarmos lá em cima; se é que teremos. A pergunta pode ter sido feita, ainda, por admiração. “Oh”, disse ele, “Como  é que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?”. Ele poderia ter dito de si mesmo: “O que sou eu? E o irmão Pedro? Apenas um pescador. E João? Também um pescador. E quanto a Mateus? Ele era publicano e enganou uma porção de gente. E Zaqueu? Quantas casas de viúva ele não devorou?”. E, mesmo assim, o senhor diz que “estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?”. E quanto a Maria, a pecadora — o que ela fez para que Te manifestes a ela? E, Maria Madalena, então, que tinha sete demônios? “Senhor, donde procede que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?”. Não é essa pergunta que todos fazemos a nós mesmos?

Pausa, minh’alma, adora e admira;

Pergunta: “Por que por mim tanto amor?”

 E a única resposta que podemos dar é: 

A graça me colocou entre os membros

Da família do Salvador

Venha e me pergunte: “Por que sou cristão, senhor? Por que Deus me ama?”. Devo lhe dizer que é “porque Ele o ama”. “Mas, por que Ele me ama?”. A única resposta que posso lhe dar é “porque Ele quis amá-lo”. Pois está escrito: “Ele terá misericórdia de quem Lhe aprouver ter misericórdia”. Certamente poderíamos nos admirar e dizer: “Por que, Senhor, por que Te manifestas a nós, e não ao mundo?”. “Ora”, alguns diriam, “porque vocês são melhores que o mundo; é por isso. Com certeza, sua natureza é melhor que a do mundo!”. Natureza melhor que a do mundo? Ora, alguns de nós éramos o pior tipo de gente. Alguns aqui se entregavam a todo tipo de vício, e ficariam envergonhados só de mencionar os pecados que cometeram. No entanto, Deus Se manifesta a vocês e não ao mundo. A graça soberana de Deus sempre será motivo de admiração.

         Contudo, qual é a resposta? Por que Cristo Se manifesta a algumas pessoas e não ao mundo? A pergunta não foi respondida; pois era irrespondível. Nosso Senhor prosseguiu, dizendo: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra; e meu Pai o amará, e viremos para ele e faremos nele morada”. Ele não disse a Judas a razão pela qual Ele Se manifestaria a eles e não ao mundo. Muitas vezes faço essa pergunta a mim mesmo: “Você diz que Deus Se manifesta a algumas pessoas e não a outras — pode me dizer por quê?”. Bem, Cristo não disse, e não se espera que eu diga mais do que Ele disse. No entanto, minha pergunta é: você tem alguma objeção quanto a isso? O que Ele disse não é suficiente? Ele declarou que “tem direito sobre a massa, para do mesmo barro fazer um vaso para honra e outro, para desonra” (Romanos 9.21), e se alguém O critica, Ele diz: “Quem és tu, ó homem? Porventura, pode o objeto perguntar a quem o fez: Por que me fizeste assim?”. Que pessoa perguntaria a seu pai: “Por que você me concebeu?”. “Será que não sou Deus e não posso fazer o que quiser com aquilo que é meu?”. Mas o questionador diz, “não é injustiça da parte de Deus manifestar-Se a uns e não a outros?”. Deus responde: “Tu me acusas de injustiça? A respeito de quê? Eu te devo alguma coisa? Traga-me a conta e eu te pagarei. Será que te devo graça? Então, a graça não seria graça; seria dívida. Se Eu te devo graça, tu a terás.” “Meu irmão também não deveria tê-la? Ele é tão mau quanto eu”. E o Rei diz: “Disponho daquilo que é meu da forma como me apraz”. Se dois mendigos estão à tua porta, não tens o direito de mandar um embora e dar ao outro alguma coisa? Não posso fazer o mesmo com aquilo que é meu? “Terei misericórdia de quem me aprouver ter misericórdia e compadecer-me-ei de quem me aprouver ter compaixão”. “Ora”, continua o questionador, “Suponha que eu peça e suplique por alguma coisa; eu a terei?”. “Sim, terás”, diz Deus, pois assim diz a promessa: “todo o que pede recebe; o que busca encontra; e, a quem bate, abrir-se-lhe-á.” (Mateus 7.8). “Mas não a terei, a menos que esteja escrito que a terei”. “Sim, mas se pedires é porque está escrito que pedirás; os meios são ordenados da mesma forma que os fins; tu não podes pedir a menos que eu tenha te inclinado a isso. Portanto, não me fales de injustiça. Eu te pergunto se há uma passagem sequer na minha palavra onde eu tenha prometido dar graça a todos. Pobre desprezível! Não te rebelaste contra mim? Teu destino é ir para o inferno para sempre. Será que não mereces?”. “Sim, eu mereço”. “Então, quem és tu que te atreves a me acusar de injustiça? Se tenho cinquenta homens no cadafalso para serem enforcados, será que não tenho o direito de perdoar a quem eu quiser, e punir todos os demais? Não aceitarás isso?”. “Não”, diz o contestador, “nunca aceitarei”. “Então, meu amigo, não esperes ter salvação até que o aceites”. Alguém aqui se opõe à soberania divina? Esta é uma doutrina difícil; e se não é aceita, isso demonstra que a pessoa ainda é dominada pelo orgulho. Se pregarmos apenas a soberania divina, alguns dirão: “Esse sujeito é antinomiano e hipercalvinista”. Isso é calúnia e merece o nosso desprezo; e lembramos que a acusação cai muito bem contra o próprio caluniador. Antinomiano é aquele que se rebela contra a soberania divina. No entanto, quem aceita esta doutrina irá ao trono, dizendo

Talvez Ele aceite minha súplica

Talvez Ele ouça minha prece

Mas, se tiver de morrer, rogarei

E morrerei apenas ali.(3)

         E agora, amigos, o que me dizem? Sei o que alguns diriam. Eles diriam em alto e bom som: “Quanta besteira! Cremos que a religião é muito boa para manter as pessoas na linha; mas quanto a essas manifestações e êxtases, não acreditamos em nada disso.” Muito bem, meus amados, acabei de demonstrar a veracidade daquilo que o texto diz. Deus não Se manifesta ao mundo e, se alguém não tem nenhum tipo de manifestação é uma prova para si mesmo de que ele é do mundo. No entanto, temos aqui alguns cristãos que dizem, “Não conhecemos muito sobre essas manifestações.” Sim, eu sei que não conhecem. Nos últimos anos, a igreja tem entrado num estado de desnutrição; Deus tem enviado pouquíssimos pregadores que falam sobre essas verdades especiais, e a igreja tem se tornado cada vez mais anêmica. Não sei dizer o que seria de nós se ainda não houvesse um pouco do sal de Deus espalhado sobre a massa em decomposição. Alguns de nós têm vivido nos lugares baixos, quando poderiam estar nos lugares altos. Ficam no vale de Baca (Salmo 84.6, ACF, ARC, NVI), quando poderiam muito bem estar vivendo no topo do Carmelo. Eu não gostaria de morar no vale se pudesse construir minha casa no alto das montanhas. Ó, cristão! Levanta-te! Que os teus pés sejam iluminados uma vez mais. Que cruzem ligeiros a planície turbulenta, cheguem ao Calvário e subam até o seu cume; e, de lá, eu te digo que poderás ver para além da planície até o próprio céu. E, se puderes alcançar o cimo de Pisga, cantarás,

Lindos campos para além da enchente

Revestidos de grama verdejante

E seu espírito será como os carros de Amminadab (4). Busquem, meus irmãos, essas manifestações espirituais, se nunca as tiveram; e, se já tiveram o privilégio de desfrutá-las, procurem ter mais; pois, o que há de melhor para tornar a vida feliz e prepará-lo para o céu do que essas revelações de Jesus Cristo? Ah! Do fundo do meu coração, sinto pena daqueles que desprezam daquilo que desfrutamos. Cuidado para que a primeira manifestação que tiverem de Cristo não seja quando Ele for revelado em chamas de fogo, vingando-se de Seus inimigos, pois Ele não estará Se revelando em misericórdia, mas em justiça. Que Deus lhe conceda graça para que você O veja no Calvário antes vê-lO no Sinai, para contemplá-lo como o Salvador dos pecadores antes de vê-lO como o Juiz dos vivos e dos mortos. Que Deus os abençoe e os conduza sempre a essas manifestações! Amém.


Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza

Notas do tradutor:

(1) 1829-1905, famoso político e orador inglês da época de Spurgeon e George Whitefield

(2) No original: “all beginning with the letter h—humility, happiness, and holiness” — “todas começando com a letra”, o que não é possível ser traduzido para o português.

(3) cf. Ester 4.16

(4) cf. Cantares 6.12, Versão Católica, a única versão em português que traz o nome