sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

O Rei dos Judeus

 Sermão nº 3123

ministrado por C. H. Spurgeon em 06 de dezembro de 1874, na noite de domingo, no Tabernáculo Metropolitano de Londres, e publicado em 17 de dezembro de 1908

Pilatos escreveu também um título e o colocou no cimo da cruz; o que estava escrito era: JESUS NAZARENO, O REI DOS JUDEUS. (João 19.19)


Na época de Jesus, quando um homem era condenado à morte por crucificação, era costume dos romanos afixar na cruz, em algum lugar visível, uma placa com a descrição do seu crime. Ali eram colocados seu nome e qualificação, bem como a acusação feita contra ele, a fim de que todos os que passassem pelo local pudessem ler a razão pela qual estava sendo submetido a uma morte tão desonrosa. Nosso Salvador, portanto, ao ser contado com os malfeitores, devia ter o mesmo tratamento. Se a acusação deles foi publicada, a Dele também deveria ser publicada entre os filhos dos homens. Como foi admirável a condescendência dAquele que os céus adoravam como o bendito Filho do Altíssimo em ser pendurado no madeiro e ter Sua acusação escrita acima da Sua cabeça, como se fosse um malfeitor qualquer!

Gostaria que percebêssemos tanto a dignidade da pessoa de Cristo, quanto a vergonha à qual Ele foi exposto. Se tivéssemos essa percepção, nosso coração se encheria de pesar e de gratidão a Ele por condescender em morrer a morte de cruz. Queria que nos fosse possível, por um instante, estar ao pé da cruz com Maria, João e os outros discípulos, ouvindo toda zombaria e escárnio, e, então, elevar os olhos e ver aquela face triste, aquele corpo torturado e ler, em hebraico, grego e latim: “Jesus de Nazaré, o Rei dos Judeus”. É incrível que Pilatos tenha escrito, como registrado por Mateus e Lucas: “Este é o Rei dos Judeus”, e nem sequer fiquemos admirados pelo fato dos principais sacerdotes terem dito a ele: “Não escrevas: Rei dos judeus, e sim que ele disse: Sou o rei dos judeus.” (Jo. 19.21), e Pilatos tenha respondido: “O que escrevi, escrevi.” (Jo 19.22). 

É interessante como a divina Providência sempre dá um jeito. Não importa quem sejam as pessoas envolvidas, Deus sabe como fazer prevalecer a Sua vontade. Era Seu propósito que Seu Filho não morresse na cruz sem uma proclamação pública da Sua inocência e um reconhecimento oficial de que Ele era quem dizia ser, ou seja, o Rei dos Judeus. E, quem poderia colocar tal inscrição acima da Sua cabeça enquanto Ele estava pendurado lá? Bem que Pedro poderia ter tentado alguma barganha para fazê-lo, mas, com certeza, não teria conseguido, pois os soldados romanos vigiavam atentamente cada centímetro do local da execução. Mesmo João, por mais ousado que fosse naquele momento de crise, não teria conseguido. O ideal era que fosse feito por uma autoridade, por um governador romano, com pena oficial, para que nenhum sumo sacerdote invejoso ousasse derrubá-la, e nenhum escarnecedor se erguesse para apagar seu testemunho. Aquela inscrição era privilegiada, pois foi escrita pela pena de um oficial romano, e ali devia ficar, sob a autoridade da lei romana, enquanto o corpo de Jesus permanecesse pendurado na cruz. Veja como Deus faz as coisas. Ele fez o hesitante Pilatos se tornar obstinado e fê-lo resolver fazer aquilo que todos pensavam que seria a última coisa que ele faria. Embora, provavelmente, fosse sua intenção ridicularizar o Salvador, tudo foi feito como Deus queria que fosse, e Jesus, pendurado na cruz, foi proclamado pela autoridade romana como “o Rei dos Judeus”.

À primeira vista, talvez isso pareça um fato sem importância, mas creio que posso lhes mostrar que não é, se vocês se sentarem agora ao pé da cruz, olharem para o Senhor crucificado e lerem novamente a inscrição. Peço que a leiam sob duas perspectivas diferentes. A primeira, com relação ao homem, e a segunda, com relação ao próprio Jesus Cristo.

I Em primeiro lugar, veja a proclamação de Pilatos COM RELAÇÃO AO HOMEM.

Este é um retrato de como o mundo rejeita o Salvador. O Salvador realmente veio ao mundo. Para ser conhecido como um Salvador, Ele teve de receber o nome de Jesus, ou seja, Salvador. Para ser conhecido como um homem extremamente manso e humilde, Ele teve de condescender em viver entre o tipo mais humilde de pessoas, ou seja, teve de escolher viver em Nazaré e ser chamado de Nazareno. Assim, Ele foi conhecido como Jesus, o Salvador, e Jesus de Nazaré, um Salvador acessível e humilde. Jesus veio ao mundo para salvar os homens; e Ele iniciou Sua missão salvando muitas pessoas de doenças consideradas incuráveis. Ele abriu os olhos aos cegos, desimpediu os ouvidos aos surdos, fez os mudos falarem, purificou leprosos e até ressuscitou mortos. Também houve muitos a quem Ele curou de enfermidades espirituais, pois deu fé aos que não tinham fé e santidade e caráter excelente àqueles que, até então, viviam em pecado.

Ele era, de fato, Jesus, o Salvador, mas como os homens O receberam? Será que eles se achegaram a Ele e caíram a Seus pés, beijando o próprio chão em que Ele pisava? Não seria surpresa se o fizessem, mas eles não o fizeram. Será que todos os doentes O rodearam alegremente, ansiosos por tocar a orla de Suas vestes e serem curados? Alguns poucos sim; “um remanescente segundo a eleição da graça” (Rm 11.5), e àqueles que O receberam, Ele “deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu nome” (Jo 1.12). Contudo, não foi assim com a grande multidão, que via nEle algo estranho e singular, e não inimizade, furor, orgulho ou amargura, somente um grande amor. Apesar disso, eles tinham de tratá-lo da forma mais vil, pois Sua vida foi passada em pobreza e reprovação, e, finalmente, Ele foi condenado à morte na cruz maldita. O mundo O crucificou como criminoso e, ao fazê-lo, os homens disseram: “Este é o Salvador, o Nazareno, e é assim que nós O tratamos. Não queremos ser salvos do pecado, pois nós o amamos. Não queremos ser salvos da rebelião e ser reconciliados com Deus por meio de Jesus Cristo. Assim, isso é o que fazemos com o Embaixador de Deus. É assim que servimos Aquele que vem com palavras de reconciliação e graça nos lábios. Nós O penduramos para morrer, pois não O queremos”. Isto é apenas uma mostra daquilo que os corações pecaminosos fazem. Até serem transformados pela graça, eles não terão o Salvador para governá-los.

No entanto, alguém diz: “Sua acusação contra mim é muito cruel!” Será mesmo? Você já recebeu Jesus? Você crê nele? Ele já se tornou seu Salvador? Se não, por que não? Você pode me dar uma boa razão para não crer nele e rejeitá-lo? A mim me parece que, e deixo isso por conta da sua consciência, ao continuar descrente, você praticamente está dizendo: “Prefiro ser condenado para sempre a crer em Jesus Cristo.” De qualquer forma, essa é sua escolha neste momento; e, se alguém demonstra tal objeção a Cristo a ponto de desejar ser lançado no inferno antes de Jesus poder salvá-lo, podemos acreditar que em seu coração haja suficiente inimizade contra Cristo para crucificá-lo novamente se Ele estivesse aqui outra vez. Cristo seria crucificado amanhã mesmo, se viesse entre corações não regenerados; sim, pelas mesmas pessoas que andam com crucifixos de marfim pendurados no pescoço, que os guardam em seus livros de oração e os penduram em suas paredes. Eles gritariam, da mesma forma que seus antepassados: “Fora! Fora! Crucifica-o!” Até hoje, quando se prega a morte substitutiva, o sangue propiciatório e a salvação somente pela fé em Jesus Cristo, não por meio de “sacramentos”, sacerdotes e boas obras, as pessoas ficam com raiva, pois ainda odeiam o Cristo, o único Salvador dos filhos dos homens.

Vejo também que o homem mata o Deus encarnado: “Jesus de Nazaré, o Rei dos Judeus”. Quer Pilatos tivesse ou não a intenção de dizer que Jesus era o Messias, os judeus viram que esse seria o significado atribuído à inscrição acima da cabeça de Cristo; seria dito que seu Messias tinha sido crucificado; consequentemente, eles queriam que a inscrição fosse alterada, mas Pilatos não iria alterá-la. Ora, o Messias dos judeus não era outro senão Deus em carne humana. Isaías não falou dele como Emanuel, o Deus conosco? Ele era o prometido “descendente da mulher”, que devia esmagar a cabeça da antiga serpente. Foi dele que Davi disse: “Disse o Senhor ao meu senhor: Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos debaixo dos teus pés.” (Salmo 110.1). Ele era o Filho de Davi, e também o Senhor de Davi; e lá está Ele: Ele veio aos homens e, como Deus, veio para tabernacular em carne humana e habitar entre os homens. 

A história nos conta como Ele foi encontrado ainda bebê numa manjedoura de Belém, onde os pastores foram adorá-lO; como Ele cresceu entre os homens como qualquer outro homem, trabalhando na carpintaria de Seu pai adotivo; e como, durante todo o tempo, Ele foi o Deus oculto sob a humilde forma do Filho de Maria. Mesmo quando chegou o tempo da Sua manifestação a Israel, Ele ainda estava oculto, embora Sua divindade por vezes brilhasse através do véu da Sua humanidade. Ele ordenou ao mar que se aquietasse, quando suas ondas ameaçaram engolir o navio em que Ele estava com Seus discípulos. Ele operou maravilhas tais que era evidente que todas as coisas Lhe obedeciam. Cardumes vieram das profundezas para a rede que Ele havia ordenado a Seus discípulos lançar ao mar; pães e peixes foram multiplicados em Suas mãos, e nas dos discípulos, pelo Seu poder milagroso. As pessoas não podiam deixar de ver que Ele era muito mais que um homem comum, e que, de fato, era o Filho de Deus, como afirmava ser. Contudo, os lavradores, a quem Ele foi enviado pelo Pai para receber a sua parte no aluguel da vinha que fora arrendada a eles, disseram: “Este é o herdeiro; ora, vamos, matemo-lo e apoderemo-nos da sua herança.” (Mateus 21.38). Em outras palavras, eles disseram: “Este é Deus-Homem, vamos fazer com Ele o que faríamos com Deus, se pudéssemos.” Então, eles O crucificaram como criminoso e colocaram uma inscrição acima da Sua cabeça, como se dissessem ao próprio Deus: “Isto é o que fazemos Àquele que era mais semelhante a Ti do que qualquer homem de que já ouvimos falar, Àquele que diz que Ele e Tu são um”. 

Senhores, este mundo nunca foi tão perverso quanto foi demonstrado naquela ocasião. A essência de todo pecado é a inimizade contra Deus e, quando qualquer pecado é analisado, o que sempre se encontra no seu interior é: “Sem Deus”. O pecado é uma punhalada no coração de Deus. Cada vez que pecamos, é como se disséssemos: “Não queremos a autoridade de Deus; não queremos Suas leis; não queremos Deus.” Certa vez, ouvi um eloquente teólogo, que apontava os grandes pecados da humanidade, terminar sua acusação com uma notável expressão: “este mundo deicida”. Com isso, ele chegou ao clímax da verdade, pois este é um mundo deicida. Na verdade, o mundo não pode matar a Deus; mas, se pudesse, ele o faria. E, ao levar Cristo à morte, o mundo mostrou a inimizade contra Deus que estava em seu coração. O mundo não mataria o seu próprio deus, o deus que as pessoas imaginam; o deus produzido pelo seu próprio intelecto, o deus que é como eles mesmos, de quem lhes falei esta manhã. No entanto, quanto ao Deus da Bíblia, existem milhões de pessoas que, se pudessem, O expulsariam alegremente do seu universo. Mas ainda assim, Ele é Yahweh, o único e verdadeiro Deus.

Observo, ainda, que a principal objeção do homem a Cristo é Sua autoridade, pois o cerne daquela inscrição era “Jesus, o Rei”. Pilatos não escreveu: “Este é Jesus, o Mestre”, ou muitos teriam dito: “Deixem que Ele ensine o que quiser, isso não interessa. Não nos importamos com o que os videntes veem, ou com o que dizem.” Pilatos também não colocou: “Este é Jesus, o Sacerdote”. Muitos teriam ficado contentes em deixá-lO ser o grande Sumo-Sacerdote se eles também pudessem ser sacerdotes. Mas Pilatos escreveu: “Este é Jesus, o Rei”, e esse era o alvo contra o qual eles atiravam todas as flechas. Lembram-se do que diz o escritor do Salmo 2? “Os reis da terra se levantam, e os príncipes conspiram contra o Senhor e contra o seu Ungido, dizendo: Rompamos os seus laços e sacudamos de nós as suas algemas.” A determinação da natureza humana, até que esta seja renovada, é sempre a mesma: “Não queremos que este reine sobre nós.” (Lucas 19.14). As pessoas podem até querer que Cristo as salve, mas não que Ele reine sobre elas. O homem gosta de leis como: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo.” (Mt 22.39), “Perdoarás até setenta vezes sete.” (Mt 18.22), ou seja, leis que falam de amor, bondade e benevolência; mas, quando essas leis se voltam contra ele e refreiam sua ambição, reprimem sua cobiça e condenam sua justiça própria, imediatamente ele se ofende. E, quando Cristo diz: “Passará o céu e a terra, porém as minhas palavras não passarão.” (Mt 24.35), quando Ele começa a ensinar sobre a necessidade de pureza absoluta e a dizer que até mesmo um olhar lascivo é pecado, então as pessoas respondem: “Suas regras não servem para nós”, e O condenam à morte porque não querem se submeter à Sua autoridade.

Mais uma vez aprendemos com essa narrativa que os homens ridicularizam o reino de Cristo. Pilatos não odiava a Cristo; provavelmente nem pensava nele o suficiente para hostilizá-lo. Não tenho dúvidas de que ele via Jesus como um pobre coitado que viveu tanto tempo sozinho que acabou ficando de miolo mole. Jesus era bem-intencionado, e até inteligente, mas, ainda assim, não era o tipo de pessoa com quem um governador romano devesse discutir. Pilatos ficou muito triste por ter de condená-lo à morte, pois havia muita coisa boa naquela criatura para ele deixar que Seus inimigos O destruíssem. Quando surgiu a pergunta sobre o reino de Cristo, nem posso imaginar o quanto Pilatos foi sarcástico ao Lhe perguntar: “És tu o rei dos judeus?”. Quanto desdém ele deve ter sentido ao olhar para aquela pobre criatura emaciada, que parecia ser desprezada por todos, quando Cristo lhe respondeu: “O meu reino não é deste mundo.”, e Pilatos Lhe perguntou, em tom de zombaria: “Logo, tu és rei?”. Pilatos deve ter sentido que podia escarnecer dEle, e não tenho dúvida de que foi nesse espírito que ele escreveu: “Este é Jesus, o Rei dos Judeus”, um tipo de humor sarcástico sombrio, primeiro, em relação aos judeus, depois, em relação ao próprio Cristo, pois era o mesmo que dizer: “Este é o grande Rei esperado pelos judeus. Eles vão lutar contra César e conseguir a liberdade, e este é o líder que vai ajudá-los a derrotar as legiões do glorioso Império Romano.”

Para os ímpios da nossa época, a ideia de um reino espiritual é totalmente incompreensível; eles não conseguem imaginar o que seja isso. A relação entre igreja e Estado não pode ser determinada por estadistas de qualquer partido político. Essa relação é muito singular, mas estado e igreja são tão diferentes quanto matéria e espírito. Apesar de ambos os reinos frequentemente se sobreporem, não é possível traçar uma linha e dizer: “até aqui vai o Estado e até aqui vai a Igreja”. O fato é que a verdadeira igreja de Cristo jamais será subordinada ao Estado; sua esfera de ação é completamente diferente e seu governo é inteiramente distinto. Para algumas pessoas, um reino espiritual significa leis e regulamentos estabelecidos por bispos, sínodos e concílios, mas esse tipo de reino não é mais espiritual do que um decreto aprovado pela Câmara dos Comuns e pela Câmara dos Lordes. Este é apenas outro reino da carne, um estado eclesiástico semelhante ao estado secular. O reino espiritual de Cristo, no entanto, não é algo que se possa ver com os olhos ou entender com a mente humana; para se entrar nele, ou até mesmo para vê-lo, “é preciso nascer de novo”. Ele é sublime demais para ser controlado pela legislação dos homens. É um poder tremendo que Cristo estabeleceu neste mundo, um poder mais forte que todos os estados seculares combinados; um reino como a pedra cortada do monte sem o auxílio de mãos (Daniel 2.44-45), que esmiuçará todos os outros poderes e encherá toda a terra no tempo designado por Deus. Oh, que pudéssemos ver mais manifestações do seu poder no coração dos nossos contemporâneos. O poder do reino em que Cristo é Rei, este bendito livro é a lei, o Espírito Santo é o grande executivo e cada um de nós é um servo nas cortes do grande Rei, vivendo e agindo segundo a Sua vontade.

“Mas”, você diz, “isso é simplesmente ridículo!”. Sim, achei que diria isso; isso é o que o mundo sempre diz a respeito do reino de Cristo, que ele é ridículo. As pessoas podem entender um reino no qual há um líder como o Papa, onde existem cardeais, bispos e sacerdotes. Elas podem entender o Arcebispo de Cantuária ou o Arcebispo de York, e tudo o que está relacionado ao Episcopalismo; mas saber que somos um com Cristo, que Ele nos fez reino e sacerdotes para Deus e Seu Pai, que os santos vão reinar com Ele para todo o sempre, e que “as armas da nossa milícia não são carnais, e sim poderosas em Deus, para destruir fortalezas” (2Co 10.4), elas não entendem, e nem querem entender. E é por isso que elas ainda crucificam a Cristo, o Rei, e dizem: “Se esse é o Seu reino, não queremos pertencer a ele, nem acreditamos nele. Chega, esse reino não é digno da nossa consideração, só gente vulgar fará parte de um reino como esse.” Foi assim no início e é assim agora, mas não “será para sempre, por toda a eternidade”, pois o Rei está vindo, pela segunda vez, em todo o esplendor da Sua glória, e fará com que todos saibam que, embora Seu reino não seja como os demais, e não seja mantido por ouro, pompa, posição, dignidade e força física, é um reino que subsistirá a todos os príncipes e tronos da terra, onde todos os que pertencem a ele terão uma coroa e serão cheios de glória, diante do que toda a pompa deste mundo perderá seu valor para sempre.

II. Agora, em segundo lugar, tenho que pedir sua atenção para o assunto de uma forma totalmente diferente, ou seja, COM RELAÇÃO A CRISTO. Qual o significado daquela inscrição acima da Sua cabeça?

Primeiramente, o significado era que a honra de Cristo era evidente. Olhe para a inscrição acima do ladrão crucificado ao lado de Jesus. “Condenado à morte por roubo nas montanhas, onde foi pego em flagrante, tendo esfaqueado um dos guardas que tentava prendê-lo.” A inscrição é clara. Agora, passe para a inscrição acima da cabeça de Jesus, para saber qual foi o Seu crime; com certeza, devem ter escrito a pior coisa que Ele fez. Ali estão os principais sacerdotes e escribas, e uma multidão de judeus, tentando ver o que está escrito, e eis Pilatos querendo desculpar sua própria consciência. Se ele puder escrever algo que o isente da culpa pela morte de Jesus, com certeza ele escreverá. Então, ele pega sua pena e escreve: “Este é Jesus de Nazaré, o Rei dos Judeus”. E aí você diz: “Ora, será que é só isso que eles podiam dizer contra Jesus, que Ele era Jesus de Nazaré, o rei dos Judeus?”. Sim, essa era a Sua única ofensa; Sua culpa não poderia ser resumida em outras palavras. Seu crime era ser o que Ele é, um Salvador que morava em Nazaré, e que Ele era o Rei dos Judeus. Ora, nada poderia ser melhor para isentar de culpa o Seu caráter do que esta acusação oficial. E, se a acusação não tem nada a dizer contra Ele, imagine o quanto Seus amigos têm a dizer a Seu favor! Quando alguém é levado perante um juiz, seu acusador faz o possível para dizer tudo o que pode contra ele e, quando Cristo estava prestes a ser morto, os responsáveis por aquele crime hediondo fizeram a pior acusação possível contra Ele. No entanto, isso era tudo o que eles podiam fazer, não havia outra acusação, exceto a de que Ele era Jesus de Nazaré, o Rei dos Judeus. Veja, então, como o Cordeiro da nossa páscoa era absolutamente sem defeito e sem mancha. Veja como Ele “não conheceu pecado”, embora tenha sido feito oferta pelo pecado “para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus.” (2Co 5.21). Exultem, cristãos, neste testemunho público e oficial da pureza imaculada de toda a Sua vida e caráter.

A seguir, no que diz respeito a Cristo, podemos ver essa inscrição como a explicação da sua morte, bem como do Seu caráter imaculado. Mantenha a inscrição claramente em sua mente: “Jesus de Nazaré, o Rei dos Judeus”. Esta é a razão pela qual Ele morreu. Jesus morreu, primeiro porque Ele era Jesus, porque era o Salvador. Esse é o verdadeiro significado, não que simplesmente fosse um exemplo, não que somente desse testemunho da verdade, mas aquela morte cruel significava expiação, e salvação por expiação. Olhemos para Ele na cruz. Se já fizemos isso antes, olhemos novamente e digamos: “Sim, bendito Salvador, vemos que Tu morreste, que Tu morreste para nos salvar; e nós Te engrandecemos porque esta foi a causa da Tua morte, que eras o Salvador.” O título dado por Pilatos significava que Cristo era o Messias, e que Ele morreu por ser o Messias. “Será cortado o Messias, mas não para si mesmo” (Dn 9.26, ACF). Esta é a maravilhosa linguagem do profeta Daniel, “cortado, mas não para si mesmo”, cortado porque era o Enviado de Deus, o Ungido do Altíssimo. O profeta Zacarias também registrou as palavras de Yahweh: “Desperta, ó espada, contra o meu pastor e contra o homem que é o meu companheiro, diz o Senhor dos Exércitos” (Zc 13.7). Naquela inscrição, amado, você tem a razão para a morte de Cristo condensada em uma única frase. Jesus morre porque é o Salvador, o Messias ungido e profetizado, enviado por Deus para ser o Rei dos Judeus, e também dos gentios.

Ainda com relação a Cristo, a inscrição sobre a Sua cabeça foi uma reivindicação feita e proclamada naquele exato momento. Ele está pendurado na cruz, não há arauto para proclamar Sua realeza; mas Ele não precisa de arauto, pois os mesmos soldados que prendem Suas mãos no madeiro, colocam acima dele uma inscrição que não poderia ser melhor, pois é escrita em três línguas diferentes, para que toda humanidade possa ler: “Este é Jesus, o Rei dos Judeus”. Ele afirma ser Rei, por isso peço-lhe que fique ao pé da cruz e aceite Sua reivindicação. Se você quer que Jesus seja seu Salvador, você precisa aceitá-lo também como Rei; precisa se submeter ao Seu governo, pois Ele reivindica o direito de governar sobre todos os que O reconhecem como Jesus; sim, e ainda mais, Ele reivindica o direito de governar sobre toda a humanidade, pois todo poder é dado a Ele tanto no céu como na terra, e somos ordenados a proclamar o Seu reino por todo o mundo, e a dizer a todos os homens: Jesus de Nazaré é Rei, prostrem-se diante Dele. Sim, reis, prostrem-se diante Dele, pois Ele é o Reis dos reis; sim, nobres e senhores, prostrem-se diante Dele, pois Ele é o Senhor dos senhores; e todos os filhos e filhas dos homens, prostrem-se a Seus pés, pois Ele reina; e, mesmo que você seja Seu inimigo, Ele reina sobre você também; a despeito de toda sua inimizade e oposição, você deve prostrar-se a Seus pés. As reivindicações de Jesus, portanto, foram proclamadas até mesmo na cruz onde Ele morreu; por isso, não resistam, entreguem-se voluntariamente a Jesus agora, e deixem que Ele reine sobre vocês agora e para sempre.

E, assim, com a fixação daquele título, não apenas a reivindicação da Sua soberania foi imediata, mas a proclamação do Seu reino também. Em uma monarquia terrena, tão logo um rei deixe o trono, é comum que seu sucessor seja proclamado; e, pela acusação escrita acima da cabeça de Cristo, foi proclamado em toda a terra que Jesus assumira o trono, e também que Ele nunca deixou de reinar. Ele foi para o Pai, voltou à terra, onde ficou por quarenta dias e, então, Seus pés deixaram o monte das Oliveiras e Ele ascendeu ao trono, onde está assentado “aguardando, daí em diante, até que os seus inimigos sejam postos por estrado dos seus pés” (Hb 10.13). Seu reino já está estabelecido. Você pertence a ele? É um reino que, em certo sentido, foi reconhecido na cruz pela proclamação de Pilatos, embora já existisse há muito tempo, por ser um reino eterno. Você pertence a ele, ou está do lado de fora, contra ou indiferente a ele? Lembre-se de que quem não é por Cristo é contra Ele. Ele considera que quem não está a Seu lado está do outro lado. Irmãos, vocês estão no reino do Senhor Jesus Cristo? Se estiverem, sei que olham com deleite para aquela inscrição; e, quando confiam na purificação efetuada pelo sangue de Cristo, elevam os olhos para aquela cabeça querida, coroada de espinhos, e se alegram em pensar que Jesus de Nazaré, o Rei dos Judeus, é também seu Rei, Senhor e Salvador.

Quero fazer só mais uma observação sobre essa inscrição. Uma vez que Pilatos não quis alterá-la, parece-me que Deus mostrou à humanidade que ela jamais seria alterada. Pilatos poderia muito bem ter mandado alguém pegar a inscrição e, com apenas alguns traços da sua pena, ter inserido as palavras que o sumo sacerdote tanto queria: “Ele disse, eu sou o Rei dos Judeus”. Mas ele não quis fazer isso; e o sumo sacerdote não podia fazer, e nem o diabo ou todos os demônios do inferno e até mesmo os homens mais perversos da terra, com toda a sua ira, ainda não podem fazê-lo. Da mesma forma que Pilatos, Deus disse: “O que escrevi, escrevi.” “Eu, porém, constituí o meu Rei sobre o meu santo monte Sião.” (Sl 2.6). Ele deve reinar e nenhum poder jamais poderá tirar Dele o Seu reino! Sua Igreja ainda ora: “Venha o Teu reino”, e esse reino virá em toda a sua plenitude quando todo Israel for reunido e aceitá-lo como seu Senhor e Rei. Sim, e mais ainda, pois “Ele também dominará de mar a mar e desde o rio até aos confins da terra. Curvem-se diante dele os habitantes do deserto, e os seus inimigos lambam o pó.  E todos os reis se prostrem perante ele; todas as nações o sirvam.” (Sl 72.8-9, 11).

Caros amigos, esta é a conclusão da questão: aceitemos alegremente Jesus como nosso Rei. Já fizemos isso? Então, tentemos levar Suas conquistas ainda mais longe e procuremos alargar as fronteiras do Seu reino. Já fazem isso? Então, façam-no com mais empenho, e com o instrumento certo, pois a grande arma da conquista é a cruz. Foi na cruz que a proclamação foi levantada pela primeira vez e é pela cruz que ela deve ser levada até os confins da terra; não pela eloquência ou erudição humana, não pelo suborno ou ajuda do Estado e nem sei mais o que, mas pela apresentação clara do Cristo crucificado entre os filhos dos homens. A cruz é o seu próprio martelo e arma de guerra (Jr 51.20). “Com este sinal vencerás” (1). Que a igreja pregue mais a Cristo e viva mais de Cristo, e então a proclamação do Seu reino, que foi primeiramente fixada naquela cruz, será exaltada em todo o mundo, e o poder do Seu reino será sentido até nos confins da terra.

Olhei na escuridão e pensei ter visto diante de mim uma cruz, e vi Aquele que uma vez foi pendurado nela; mas, enquanto eu olhava, aquela cruz parecia crescer. Ela parecia transformar-se em uma árvore, e vi suas raízes aprofundando-se cada vez mais, até tocarem e abençoarem as profundezas da miséria humana. Então eu a vi subir nas alturas, perfurar as nuvens e passar pelo firmamento acima das estrelas; ela erguia sobre si os crentes e, com seu poder majestoso, levava-os ao próprio trono de Deus. Depois, eu a vi estender seus poderosos galhos para todos os lados. Sua sombra caía sobre as terras da nossa pátria e também sobre as terras do outro lado do mar. Enquanto eu observava, os benditos galhos se estendiam por toda Europa, Ásia, África, América e Australásia também. Eu a vi crescer até se tornar tão grande que sua sombra parecia encobrir toda a terra, e eu bendisse e adorei o Deus do céu que havia instituído um poder tão grande para bênção dos filhos dos homens. Ó, Jesus, um dia crucificado, mas agora exaltado, que assim seja, que sejamos Teus humildes instrumentos na propagação do Teu reino bendito; e para sempre Te adoraremos, como o fazemos agora, não apenas como “Jesus de Nazaré, o Rei dos Judeus”, mas como o bendito e único Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores; a quem seja honra e poder eterno. Amém! (1Tm 6.15-16)


Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza

(1) Nota do tradutor. “In this sign shalt thou conquer.”, “Com este sinal vencerás”, é a tradução da frase latina “In hoc signo vinces”, que, segundo o historiador Eusébio de Cesareia, foi vista no céu pelo Imperador Constantino, ao por-do-sol do dia 27 de outubro de 312, ao lado das letras “X” (qui) e “P” (ro), iniciais do nome de Cristo.

fonte: https://pt.aleteia.org/2016/04/05/com-este-sinal-venceras-quando-uma-revelacao-do-ceu-converteu-um-imperio

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

O primeiro e o último apelo de Cristo

 

Sermão nº 329

Ministrado na manhã de domingo, 19 de agosto de 1860, pelo

Rev. Charles H. Spurgeon,

em Exeter Hall, Strand

Daí por diante, passou Jesus a pregar e a dizer: Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus. — Mateus 4.17

 e que em seu nome se pregasse arrependimento para remissão de pecados a todas as nações, começando de Jerusalém. — Lucas 24.27


De acordo com estes dois textos, parece que o arrependimento foi o primeiro apelo do Redentor; e também o último, quando, em Seus momentos finais, Ele o recomendou veementemente a Seus discípulos. Ele iniciou Seu ministério apregoando: “Arrependei-vos”; e o encerrou, dizendo aos apóstolos, Seus sucessores: “pregai o arrependimento para remissão de pecados a todas as nações, começando de Jerusalém”. Isto me parece muito interessante e, além de interessante, muito instrutivo. Jesus Cristo dá início ao Seu ministério pregando o arrependimento. Mas, por quê? Será que Ele não está nos ensinando que o arrependimento é tão importante que, desde que abre a boca pela primeira vez, Ele diz: “Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus.”? Será que Ele não sente que pregar sobre arrependimento é necessário antes mesmo de pregar sobre a fé em Si mesmo, uma vez que a alma deve arrepender-se primeiro de seu pecado antes de buscar o Salvador, ou se preocupar em saber se há um Salvador? Não será, ainda, porque Ele está indicando que, como o arrependimento foi a primeira lição do ensino divino, nós, se quisermos ser Seus discípulos, devemos começar sentando-nos no banquinho do arrependimento (NT1), antes de podermos ascender a formas mais elevadas de fé e convicção? 

Jesus começa pregando sobre o arrependimento, para que este seja o Alfa, a primeira letra do alfabeto espiritual que todos os crentes devem aprender. E, quando conclui sua pregação divina com o arrependimento, não é porque Ele quer dizer que este continua sendo um assunto de extrema importância? Ele prega o arrependimento com seu primeiro suspiro, e também com o último; com isto Ele começa, com isto Ele termina. Ele sabia que, para a vida espiritual, o arrependimento era o Alfa e o Ômega — um dever do princípio e um dever do fim. Ele parecia dizer: “O arrependimento que preguei há três anos, quando vim ao mundo pela primeira vez para pregar publicamente, era tão indispensável e necessário para aqueles que me ouviram e obedeceram à minha voz naquele momento, quanto é para vocês, que estão comigo desde o princípio. Não pensem que esta seja uma questão esgotada e fora de moda; vocês também devem começar e terminar seu ministério com a mesma exortação: ‘Arrependei-vos e convertei-vos, porque está próximo o reino dos céus.’” 

Parece-me que nada poderia descrever melhor o alto conceito de Jesus sobre o valor do arrependimento do que Ele começar e terminar dizendo: “arrependei-vos” — como a ideia predominante do Seu ministério; pregando esse dever antes de desenvolver plenamente todo o mistério da piedade — e que Ele devesse encerrar a canção da Sua vida como um bom compositor deve fazer, com a primeira nota-chave, ordenando a Seus discípulos: “que em seu nome se pregasse arrependimento para remissão de pecados”. Por isso, sinto que não preciso dar maiores explicações para chamar sua atenção para a questão do arrependimento salvador. E, enquanto estivermos falando sobre isso, que o Espírito Santo de Deus sopre em nossa alma, e que possamos nos arrepender diante dEle e encontrar as bênçãos que Ele promete aos penitentes. 

Há quatro coisas que vamos falar a respeito do arrependimento: sua origem; seus elementos essenciais; seus companheiros; e suas qualidades.

I. Arrependimento — SUA ORIGEM

Quando pregamos “arrependam-se e sejam convertidos”, alguns tolos dizem que somos legalistas. Ora, para iniciar este primeiro ponto, afirmamos que o arrependimento é proveniente do evangelho. Ele não nasceu nos arredores do Monte Sinai. Sua origem não é outra senão o Monte Sião. É óbvio que o arrependimento é um dever — um dever natural — pois, quando alguém peca, quem teria a ousadia de dizer que não é seu dever sagrado arrepender-se do que fez? É um dever que a própria natureza ensinaria. No entanto, o arrependimento do evangelho nunca foi dado como uma questão de dever. Ele não foi gerado na alma por exigência da lei. Na verdade, a lei nem pode, a não ser como instrumento da graça, sequer conduzir a alma ao arrependimento salvífico. O mais incrível é que a própria lei não dá margem para o arrependimento. A lei diz: “Faze isso e viverás; quebra o meu mandamento e morrerás”. Não há nada sobre contrição; não há oferta de perdão para aqueles que se arrependem. A lei pronuncia sua maldição mortal apenas uma vez sobre aquele que peca e não oferece uma forma de escape ou saída para que ele seja restaurado. O terreno estéril do Sinai não tem solo fértil para nutrir a adorável planta do arrependimento. O orvalho da misericórdia jamais caiu sobre o Sinai. Seus relâmpagos e trovões afastaram o anjo da Misericórdia de uma vez por todas. Ali, a Justiça se assenta com sua espada flamejante sobre o majestoso trono de rocha, jamais se propondo a embainhar a espada e perdoar o ofensor. Leia atentamente o capítulo 20 de Êxodo. Todos os mandamentos trovejam com voz de trombeta; não há pausa entre eles para que a Misericórdia intervenha e diga, com voz pungente: “Mas, se quebrares a lei, Deus terá misericórdia de ti, e será gracioso se te arrependeres.” Digo que não há palavras de arrependimento pronunciadas pela lei; não há promessas para os penitentes, nem assistência aos que desejam ser perdoados. Arrependimento é uma graça do evangelho. Cristo o pregou, Moisés não. Moisés não pode, e nem vai, ajudar uma alma a se arrepender. Só Jesus pode usar a lei como meio de convicção e argumento para o arrependimento. Jesus perdoa aqueles que o buscam com choro e lágrimas; mas Moisés não conhece tal coisa. Se o arrependimento deve ser alcançado pelo pecador, deve ser encontrado aos pés da cruz, não nos dez mandamentos estilhaçados aos pés do Sinai.

E, como o arrependimento é proveniente do evangelho, agora faço minha segunda observação, ou seja, que ele também tem origem na graça. O arrependimento nunca foi produzido no coração humano à parte da graça de Deus. Assim como não se espera que um leopardo se desculpe pelo sangue que mancha suas presas e que o leão da floresta abandone sua tirania cruel sobre os animais da planície, também não se espera que um pecador confesse seus pecados, ou se arrependa de alguma forma que seja aceita por Deus, a menos que a graça renove primeiramente o seu coração. Esperar que alguém endurecido pelo pecado chore lágrimas de arrependimento é o mesmo que esperar que a calota polar se derreta com a nossa respiração. Esperar que um apelo eloquente seja capaz de perfurar o impenetrável coração humano sem a assistência da graça divina é o mesmo que tentar dividir a terra e perfurar suas entranhas com os dedos de uma criança. O homem pode pecar e continuar pecando, mas, para deixar esse estado deplorável, ele precisa do poder divino. Como a correnteza de um rio desce em direção às cataratas, saltando furiosamente sobre as rochas, assim é o pecador em seu pecado, descendo cada vez mais rápido, mais intenso e mais impetuoso em seu curso infernal. Nada, exceto a graça divina, pode impedir esse curso ou fazer retroceder as águas pelo caminho que elas mesmas cavaram por entre as rochas. Nada, a não ser o poder que criou o mundo e cavou as fundações do grande abismo, pode tornar o coração do homem uma fonte de vida da qual possam jorrar as torrentes do arrependimento. 

Portanto, alma, se um dia te arrependeres, o arrependimento deve ser proveniente da graça, não da sua própria natureza. A natureza pode imitar o arrependimento, pode produzir remorso, pode gerar uma resolução fraca, pode até levar a uma reforma prática e parcial; mas, sem ajuda, ela não pode tocar as partes vitais da alma e torná-la uma nova criação. A natureza pode fazer os olhos chorarem, mas não pode fazer o coração sangrar. A natureza pode pedir que você corrija o seu caminho, mas não pode renovar o seu coração. Não, pecador, você precisa olhar para cima; precisa olhar para Aquele que é capaz de salvar até mesmo o pior pecador. Das Suas mãos, você deve receber um espírito manso e suave; dos Seus dedos deve vir o toque que destrói a rocha; dos Seus olhos deve vir o lampejo de luz e amor que pode dissipar as trevas da sua impenitência. Portanto, desde o início, lembre-se de que, por um lado, o verdadeiro arrependimento provém do evangelho, não da lei; e, por outro, provém da graça, não da criatura.

II. No entanto, para passarmos deste para o segundo tópico, devemos observar quais são os elementos ESSENCIAIS do verdadeiro arrependimento. Os teólogos antigos adotaram diversos métodos para explicá-lo. Alguns diziam que era um remédio precioso composto por seis elementos. Contudo, observando a divisão feita por eles, senti que o efeito seria o mesmo se o dividisse em quatro. Esse vaso de bálsamo precioso deve ser quebrado sobre a cabeça do Salvador antes que o suave aroma da paz possa ser sentido na alma — o bálsamo é composto de quatro das mais raras e caras especiarias. Deus nos dá cada uma delas e depois nos dá a própria mistura preparada pela mão do Mestre. Assim, o verdadeiro arrependimento é composto de: iluminação, humilhação, abominação e transformação. 

Vamos examiná-los um por um. O primeiro elemento que compõe o verdadeiro arrependimento é a iluminação. O homem, por natureza, é impenitente, pois não sente que é culpado. Ele não consegue enxergar o pecado naquilo que faz e, mesmo quando seus erros são grandes e flagrantes, ele sabe que está errado, mas não percebe a profundidade, a enormidade do pecado envolvido em seus atos. Um dos primeiros remédios aplicados por Jesus à alma é o colírio (Ap. 3.18). Jesus toca o olho com entendimento e a pessoa se torna culpada a seus próprios olhos, como sempre foi diante de Deus. Transgressões há muito esquecidas começam a sair do túmulo onde tinham sido sepultadas pelo esquecimento; pecados antes não considerados como tal subitamente mostram seu verdadeiro caráter; e atitudes antes consideradas perfeitas agora se mostram tão entremeadas por desejos malignos que estão longe de serem aceitáveis a Deus. O olho não está mais cego e, por isso, o coração já não é orgulhoso, pois o olho que vê torna o coração humilde. 

Se pudesse fazer um retrato desta primeira fase do arrependimento, eu pintaria um homem com uma venda nos olhos andando por um caminho infestado de cobras extremamente venenosas. Elas estariam enroladas ao redor da sua cintura e penduradas em seus pulsos. O homem está tão cego que não sabe onde está e nem imagina o que usa como adorno. Então, eu tiraria a venda de seus olhos e pediria que você visse o horror e o espanto em seu rosto ao descobrir onde ele está e quem ele realmente é. Ele olha para trás e vê ninhadas de víboras por onde passou; olha para diante e vê como o seu futuro está infestado dessas bestas venenosas. Ele olha ao redor e vê que, de dentro do seu coração culpado, está saindo a cabeça de uma serpente, cujo corpo está todo enroscado em seus órgãos vitais. Se pudesse, eu tentaria colocar em seu rosto todo o horror, espanto, pavor e tristeza que está ele sentindo, desejando ardentemente escapar e se livrar daquelas coisas que irão destruí-lo a menos que ele encontre uma saída. 

E, agora, caro ouvinte, pergunto se você já foi objeto da iluminação divina. Será que o mesmo Deus que disse ao mundo ainda informe: “Haja luz!”, também disse: “Haja luz!” à sua pobre alma obscurecida? Você sabe que suas melhores obras nada valem e que seus atos pecaminosos são bem piores do que imagina? Não creio que você tenha se arrependido, a menos que, primeiramente, tenha sido iluminado pela luz divina. Da mesma forma que não se espera que um olho cego veja a sujeira na mão, também não se espera que um entendimento não iluminado perceba o pecado que mancha a nossa vida diária. 

Depois da iluminação, vem a humilhação. A alma, tendo visto a si mesma como ela realmente é, curva-se diante de Deus, despoja-se de toda sua ostentação e se prostra ante o trono de misericórdia. Antes, ela podia falar orgulhosamente sobre mérito, mas agora nem ousa pronunciar tal palavra. Antes, ela se gabava diante de Deus, dizendo: “Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens” (Lucas 18.11), mas agora permanece a distância, esmurra o peito e clama: “Ó Deus, sê propício a mim, pecador!” (Lc. 18.13). Agora, o olhar altivo e arrogante, que Deus abomina, é abandonado; os olhos se tornam uma torrente perpétua de lágrimas, chorando e lamentando; e a alma clama dia e noite diante de Deus, pois está aborrecida consigo mesma por ter aborrecido o Espírito Santo; está triste consigo mesma por ter entristecido o Altíssimo. 

Neste ponto, se eu pudesse retratar o arrependimento, eu tomaria emprestada a figura dos homens de Calais diante do nosso rei conquistador (NT2). Ali, eles estão de joelhos, com a corda no pescoço, vestidos de pano de saco e com cinzas na cabeça, confessando que merecem a morte. No entanto, de mãos estendidas, eles imploram por misericórdia. E alguém, que parece a personificação do anjo de misericórdia, ou melhor, de Jesus Cristo, o Deus da misericórdia — está de pé diante do rei, suplicando a ele que poupe suas vidas.

Pecador, não estarás realmente arrependido até sentires essa corda espiritual em teu pescoço, até reconheceres que o inferno é exatamente aquilo que conquistaste e que, se Deus te banir para sempre da Sua presença, para o lugar onde jamais haverá paz e esperança, Ele estará apenas te dando a paga por aquilo que ricamente granjeaste. Se não sentires que as chamas do inferno são exatamente o que os teus pecados merecem, então, ainda não te arrependeste. É preciso reconhecer tanto a justiça da punição quanto a culpa pelo pecado, ou tudo não passará de um arrependimento falso e fingido. Humilha-te, pecador; despoja-te dos teus ornamentos, para que Ele saiba o que fazer contigo. Não unjas a tua cabeça, nem laves a tua face, mas jejua, abaixa a cabeça e lamenta. Tu fizeste o céu chorar, deixaste a terra entristecida e cavaste o inferno para ti mesmo. Confessa a tua iniquidade com vergonha e constrangimento; curva-te diante do Deus clemente e reconhece que, se Ele te poupar, será exclusivamente pela Sua misericórdia; mas, se te destruir, tu não terás uma palavra a dizer contra a justiça da solene sentença. 

Tal é o despojamento dado pelo Espírito Santo, quando Ele conduz as pessoas ao arrependimento, ao qual, muitas vezes, elas sucumbem quase até a morte a fim de escapar do peso infligido pela humilhação da alma. Não desejo que sintam esse terror, mas oro para que deixem de lado a vanglória, fiquem calados e sintam como se agora tivesse chegado o dia e a hora do julgamento, e vocês tivessem de ficar de boca fechada, mesmo que Deus dissesse: “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno” (Mt. 25.41). Sem isso, digo, não há verdadeiro arrependimento, conforme o evangelho.

O terceiro ingrediente é a abominação. A alma precisa ir além da mera tristeza, ela precisa odiar o pecado, odiar até mesmo a sua sombra, odiar os lugares onde ela e o pecado foram companheiros de orgia, odiar o leito de prazeres e a tapeçaria reluzente; sim, odiar as próprias vestes manchadas pela carne. Não há arrependimento onde a pessoa pode falar levianamente sobre pecado, muito menos onde ela pode falar dele com amor e ternura. 

Quando o pecado se aproximar de ti, confiante como Agague, dizendo: “Certamente, já se foi a amargura da morte.” (1Sm 15.32), se o teu arrependimento for verdadeiro, ele se levantará contra o teu Agague, como fez Samuel, e o despedaçará diante do Senhor. Enquanto abrigares um ídolo em teu coração, Deus jamais habitará nele. Tu precisas quebrar não só os ídolos de madeira e de pedra, mas também os de ouro e de prata; sim, o próprio bezerro de ouro, que tem sido a tua principal idolatria, deve ser reduzido a pó e misturado à água amarga da penitência, para que sejas obrigado a beber dela (Êxodo 32.20). 

Na alma do verdadeiro penitente existe uma aversão tão grande ao pecado que ele nem pode ouvir essa palavra. Se fosse forçado a conviver com o pecado, ele se sentiria repugnante. Um penitente não tolera lugares profanos. É como se o mundo fosse desabar sobre ele. Numa reunião de ímpios, ele seria como um pombo no meio de aves de rapina. O penitente não sente prazer no pecado, do mesmo modo que uma ovelha não sente prazer em lamber sangue junto a um lobo ou uma pomba em banquetear-se de carniça junto a um abutre. Pode ser que, num momento de fraqueza, ele dê um passo em falso e caia em pecado, mas, pela graça de Deus, ele se levantará e abominará até mesmo as roupas com as quais caiu na lama (Jó 9:31). O pecador impenitente, como o porco, gosta de chafurdar na lama; mas o penitente, como a andorinha, pode até molhar a ponta das asas no lago da iniquidade, mas alça voo novamente, gorjeando tristes palavras de arrependimento, pois lamenta ter se rebaixado tanto e pecado contra o seu Deus. 

Caro ouvinte, se tu não odeias teus pecados a ponto de abandoná-los — se não estás disposto a pendurá-los na forca de Hamã (Ester 7.9), a mais de vinte metros de altura — se não podes sacudi-los de ti como Paulo fez com a víbora em sua mão (Atos 28.5) e lançá-los no fogo da abominação, então, eu te digo que não conheces realmente a graça de Deus; pois, se amas o pecado, não amas nem a Deus, nem a ti mesmo, mas preferes a tua própria condenação. Estás flertando com a morte e fazendo aliança com o inferno. Que Deus te livre desse miserável estado de coração e te leve a odiar o teu pecado.

    Ainda falta mais um ingrediente. Já temos a iluminação, a humilhação e a abominação. No entanto, é preciso haver mais uma coisa, ou seja, uma completa transformação, pois — 

Arrepender-se é abandonar

Os pecados que um dia amamos

E com profunda tristeza demonstrar

Que nunca mais seremos o que fomos.

O penitente corrige toda a sua vida. A correção não é parcial, é profunda, é total, é no coração. A fraqueza pode afetá-la, mas a graça estará sempre lutando contra a fraqueza humana, e a pessoa odiará e abandonará todo caminho errado. 

Tu, comerciante desonesto, não me digas que estás arrependido enquanto ainda há preços exorbitantes nas tuas mercadorias. Tu, que já foste um bêbado inveterado, não digas que te converteste a Deus se ainda amas um copo e te excedes na bebida. Não digas, ó, avarento miserável: “estou arrependido”, se ainda devoras cada centavo dos comerciantes indefesos que caem na tua teia. E tu, não venhas me dizer que foste perdoado se ainda alimentas desejo de vingança contra teu irmão e falas mal do filho da tua mãe. Tu mentes para a tua própria vergonha. A tua cara de pau é como a da meretriz que diz: “eu me arrependi”, quando teus braços continuam mergulhados até os cotovelos na imundície da tua iniquidade. 

Não, homem, Deus não perdoará sua luxúria enquanto você estiver se divertindo em seu leito de impureza. E não pense que Ele perdoará suas bebedeiras enquanto você estiver assentado na mesa dos beberrões! Será que Ele perdoará sua irreverência enquanto sua língua ainda treme quando faz juramentos? Você acha que Deus perdoará suas transgressões quando você continua repetindo o seu pecado e mergulhando voluntariamente na lama? Ele te lavará, mas não para permitir que caias novamente e te contamines mais uma vez.

“Bem”, você diz, “sinto que estou mudando”. Fico feliz em ouvir isso, caro amigo, mas preciso lhe dizer mais uma coisa. A transformação divina não se limita apenas a atitudes, ela se dá na própria alma. O novo homem não só não peca como antes, mas não quer mais pecar como antes. As panelas do Egito às vezes exalam um cheiro delicioso e, quando ele passa por uma casa onde sente o aroma de seus temperos, ele quase deseja voltar ao cativeiro egípcio, mas, na mesma hora, ele se controla e diz: “Não, não, o maná celestial é melhor; a água saída da rocha é mais pura que as águas do Nilo; não posso voltar à escravidão do meu antigo tirano.”

Talvez Satanás faça algumas insinuações, mas sua alma as rejeita e se esforça para afastá-las. Seu próprio coração anseia para se ver livre de todo pecado e, se pudesse ser perfeito, ele seria. Ele não pouparia uma só transgressão. Se quiser agradar seu coração, é só não lhe pedir para ir a lugares condenáveis; isso lhe causaria uma dor insuportável. O que muda em você não são apenas as maneiras e os costumes, mas a sua própria natureza. Não é apenas folhagem nova, a raiz também é nova. Não são apenas ramos novos, há um tronco totalmente novo e nova seiva, e haverá novos frutos como resultado dessa mudança. Uma transformação gloriosa é operada por um Deus gracioso. O arrependimento é tão real e tão completo que a pessoa não é mais a mesma que costumava ser. Ela é uma nova criatura em Cristo Jesus. Se você foi renovado pela graça e tivesse de se encontrar com seu antigo eu, tenho certeza de que ficaria ansioso para se livrar da sua companhia.

— Não quero mais sua companhia!

— Por quê? Você costumava gostar tanto de falar palavrões!

— Mas agora não falo mais.

— Bem, você e eu somos chegados.

— Sim, sei que somos, mas queria que não fôssemos. Todo dia, você me arranja uma porção de encrenca. Gostaria de me livrar de você de uma vez por todas.

— Ora — diz seu antigo Eu — você costumava beber bastante também.

— Sim, eu sei disso. Na verdade, quem bebia era você. Você cantava com a mesma euforia de qualquer um; estava sempre à frente de todo tipo de imoralidade; mas agora não tenho mais nada a ver com isso. Você é do velho Adão, eu sou do novo. Você é do seu antigo pai, o diabo, mas eu tenho outro: meu Pai, que está no céu. 

Digo-lhe, irmão, não há ninguém no mundo a quem você odiará tanto quanto o seu antigo eu, e não há ninguém de quem desejará tanto se livrar quanto da pessoa que antes o arrastava para o inferno, e que vai continuar tentando arrastá-lo todos os dias da sua vida, e vai conseguir, a menos que a graça divina, que fez de você um novo homem, o mantenha um novo homem até o fim. 

Rowland Hill, em “Village Dialogues” (NT3), dá ao cristão, a quem ele descreve na primeira parte do livro, o nome de Thomas Newman. Todo aquele que vai para o céu também precisa ter o nome new-man (novo homem). Não podemos esperar ir para lá, a menos que sejamos “criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (Efésios 2.10). 

Assim sendo, mesmo enfrentando sérias distrações em minha própria mente, esforcei-me para explicar, da melhor forma possível, a essência do verdadeiro arrependimento — iluminação, humilhação, abominação e transformação. As terminações das palavras, embora sejam palavras longas, podem chamar sua atenção e ajudá-lo a guardá-las.

III. E, agora, em terceiro lugar, permitam-me falar rapidamente sobre os COMPANHEIROS do verdadeiro arrependimento. 

    Seu primeiro companheiro é a . Os antigos teólogos puritanos fizeram a seguinte pergunta: “O que vem primeiro, a fé ou o arrependimento?”. Alguns disseram que ninguém se arrepende realmente de seus pecados até crer em Deus e sentir, de alguma forma, o amor do Salvador. Outros disseram que não é possível alguém ter fé antes de se arrepender de seus pecados, pois precisa odiar o pecado antes de confiar em Cristo. Por isso, um velho ministro fez a seguinte observação: “Irmãos, não creio que possam resolver essa questão. Seria como perguntar o que é observável primeiro no nascimento de uma criança: a circulação do sangue ou o batimento do coração?”. E acrescentou: “Parece-me que a fé e o arrependimento são simultâneos. Eles ocorrem ao mesmo tempo. Sem fé, não pode haver verdadeiro arrependimento. E nunca houve arrependimento sincero sem fé.” 

Endossamos essa opinião. Creio que arrependimento e fé são como irmãos siameses; eles nascem juntos e não podem viver separados, e perecem se tentarmos separá-los (NT 4). A Fé sempre anda lado a lado com seu irmão lacrimejante, o verdadeiro Arrependimento. Eles nasceram na mesma casa, na mesma hora e viverão sempre todos os dias no mesmo coração; e, quando a pessoa estiver no seu leito de morte, de um lado terá a fé para abrir a cortina para o mundo vindouro e, de outro, terá o arrependimento, com suas lágrimas, cerrando a cortina para o mundo deixado para trás. Até o último instante, haverá lágrimas pelos pecados, mas, mesmo assim, o lugar onde elas serão lavadas poderá ser visto através delas. Alguns dizem que no céu não há fé. Talvez não haja. Se não houver, então não haverá arrependimento; mas, se houver, haverá arrependimento, pois onde vive um, vive o outro também. Eles são tão unidos, tão entrelaçados e ligados, que nunca poderão ser separados, nem no tempo, nem na eternidade. E, então, tu tens fé em Jesus? Tua alma olha para cima e se entrega em Suas mãos? Se sim, então, tens o arrependimento do qual não precisas te arrepender.

    Há também uma coisa doce que sempre acompanha o arrependimento. Assim como Arão andava com Moisés para ser seu porta-voz, pois sabemos que Moisés era “pesado de língua” (Ex. 4.10), o mesmo acontece com o arrependimento. O arrependimento tem belos olhos, mas lábios gaguejantes. Na verdade, acontece que o arrependimento fala geralmente com os olhos, mas não consegue falar com os lábios, exceto quando sua amiga — a qual é uma boa porta-voz — está por perto; ela se chama Dona Confissão. Esta senhora é notória por sua franqueza. Ela conhece a si mesma e conta tudo o que sabe sobre si diante do trono de Deus. A confissão não guarda segredos. O arrependimento suspira devido ao pecado — a confissão o revela. O arrependimento sente o peso interior do pecado — a confissão arranco-o do peito e o denuncia diante do trono de Deus. O arrependimento é a alma em trabalho de parto — a confissão é o parto. O arrependimento incendeia meus ossos e meu coração fica prestes a explodir — a confissão dá vazão ao fogo celestial e minha alma arde diante de Deus. O arrependimento, por si só, solta gemidos inexprimíveis — a confissão é a voz que expressa esses gemidos. E agora? Já confessaste o teu pecado — não aos homens, mas a Deus? Se confessaste, então, creia que o teu arrependimento vem dEle, e é uma tristeza santa que não precisa ser lamentada.

A santidade é outra amiga íntima do arrependimento. Anjo formoso, vestido de puro linho branco, ela ama uma boa companhia e nunca ficará em um coração onde o arrependimento é um estranho. O arrependimento precisa cavar a fundação, mas a santidade erguerá a estrutura e colocará o topo do edifício. O arrependimento remove o lixo do antigo templo de pecado; a santidade constrói o novo templo que nosso Senhor herdará. Arrependimento e desejo de santidade não podem ser separados.

E, por fim — onde quer que haja arrependimento, a paz vem com ele. Assim como Jesus andou sobre as águas do mar da Galileia e disse: “Acalma-te, emudece!” (Mc. 4.39), a paz também anda sobre as águas do arrependimento e traz calma e quietude à alma. Se quiseres saciar a sede da tua alma, o arrependimento deve ser o cálice do qual deves beber e, então, o efeito bendito será a paz. O pecado é um companheiro tão incômodo que sempre te dará dor de cabeça, até que te livres dele com arrependimento. Só então teu coração descansará e ficará em paz. O pecado é como as rajadas de vento que assolam a floresta e balançam os galhos das árvores, mas depois que o arrependimento vem à alma, o vento se aquieta e tudo fica calmo, e os passarinhos cantam nos galhos que rangiam sob a tempestade. A paz sempre toma conta da pessoa que se arrepende.

E agora? O que dizes, caro ouvinte? Aplica cada ponto diretamente a ti mesmo. Tu tens paz com Deus? Se não tens, não descanses até que tenhas, e não creias que sejas salvo até que te sintas reconciliado com Ele. Não te contentes com a simples confissão racional, mas pede que “a paz que excede todo o entendimento guarde o vosso coração e a vossa mente em Cristo Jesus” (Filipenses 4.7).

    IV. E, agora, chegamos ao meu quarto e último ponto, ou seja, as QUALIDADES do arrependimento.

Creio que vou surpreendê-los ao dizer que uma das excelências do arrependimento é sua doçura. “Como assim?”, você diz, “o arrependimento é amargo!”. Não, não é, ele é doce. É amargo quando está sozinho, como as águas de Mara; mas quando colocamos nele a árvore chamada cruz, ele se torna doce e potável. Em uma escola para deficientes surdos-mudos, a professora fez a seguinte pergunta às suas alunas: “Qual é a emoção mais doce?”. Tão logo as crianças compreenderam a pergunta, elas pegaram suas lousas e escreveram suas respostas. Uma das meninas rapidamente escreveu: “alegria”. Quando a professora viu a resposta, achou que todas iriam escrever o mesmo; no entanto, outra menina, mais pensativa, colocou a mão na testa e escreveu “esperança”. Na verdade, ela não estava longe da realidade. Outra, quando levantou sua lousa, havia escrito “gratidão”, e ela também não estava errada. Outra, ainda, escreveu “amor”, e tenho certeza de que ela estava certa. Contudo, outra menina escreveu com letras bem grandes — e, quando levantou sua lousa, seus olhos estavam cheios de lágrimas, mostrando o que ela sentia — “arrependimento é a emoção mais doce”. Creio que ela é que estava certa. Na verdade, no meu próprio caso, depois de um longo período de seca, talvez maior que os três anos da época de Elias (1Reis 18), durante os quais os céus não derramaram chuva, quando vi uma única lágrima de arrependimento saindo da minha alma endurecida — foi uma grande alegria! Há momentos em que sabemos que estamos errados, mas, quando podemos chorar por causa disso, nós ficamos felizes. Da mesma forma que alguém chora quando nasce o primeiro filho, nós choramos devido ao nosso pecado e, nesse mesmo momento, temos a paz e a alegria restauradas. Sou uma testemunha viva de que o arrependimento é extremamente doce quando misturado com a esperança divina. No entanto, arrependimento sem esperança é o inferno! É um inferno lamentar-se sobre o pecado, com a angústia de um amargo remorso, e ainda saber que o perdão nunca virá e a misericórdia nunca será concedida. Arrependimento, com a cruz diante dos olhos, é o próprio céu. Pelo menos, se ainda não é o céu, está tão perto dele que, estando em seu limiar, posso olhar para dentro dos portais de pérola e cantar a canção dos anjos que se regozijam lá dentro. O arrependimento, então, tem essa excelência, que é ser doce à alma que fica à sombra da cruz.

    Além disso, o arrependimento é tão doce para Deus quanto para os homens. “Coração compungido e contrito, não o desprezarás, ó Deus.” (Sl. 51.17). Quando Santo Agostinho estava em seu leito de morte, havia um versículo colocado em suas cortinas para que, sempre que acordasse, ele pudesse lê-lo: “Coração compungido e contrito, não o desprezarás, ó Deus.”. Quando desprezamos a nós mesmos, Deus nos honra, mas, quando honramos a nós mesmos, Deus nos despreza. Um coração ileso não tem cheiro; mas, quando está ferido e contrito, é como aquela especiaria preciosa que era queimada como incenso no antigo tabernáculo. Quando o sangue de Jesus é aspergido sobre ele, nem as canções dos anjos, nem os frascos cheios de aroma suave que sobem diante do trono do Altíssimo são mais agradáveis do que os suspiros, gemidos e lágrimas de uma alma quebrantada. Então, se queres ser agradável a Deus, apresenta-te a Ele com muitas e muitas lágrimas: 

Da alma humilde e coração quebrantado

Deus, com Sua graça, está sempre ao lado

Seu amor dá graça e perdão

Ao homem em profunda contrição

Ele conta suas lágrimas e gemidos

O Filho, sua alma da morte, redime

O Espírito cura os ossos partidos

E o homem, o seu louvor, exprime 

Na peça “Siege of Mansoul” (NT5), quando os habitantes derrotados da cidade estavam em busca de perdão, John Bunyan dá o nome de Mr. Wet-eyes (Sr. Olhos Lacrimejantes) ao intercessor junto ao rei. Wet-eyes — excelente palavra saxã! Espero que todos nós o conheçamos e que ele esteja sempre presente em nossa casa, pois mesmo que não possa interceder junto a Deus, Olhos Lacrimejantes é um grande amigo do Senhor Jesus Cristo, e Cristo se encarregará do nosso caso, e então seremos bem-sucedidos. 

Desta forma, então, procurei demonstrar algumas, embora poucas, qualidades do arrependimento. E vocês, caros ouvintes, já se arrependeram do seu pecado? 

Ó, alma impenitente, se não derramares tuas lágrimas agora, terás de derramá-las para sempre. O coração que não é dilacerado agora será dilacerado por toda a eternidade na roda da vingança divina. Tu precisas te arrepender agora, senão sofrerás para sempre. Mudar ou queimar — esta é a única alternativa da Bíblia. Se te arrependeres, os portões da misericórdia estarão totalmente abertos. Só o Espírito de Deus pode te colocar de joelhos em auto-humilhação, pois a cruz de Cristo está diante de ti, e Aquele que sangrou sobre ela te convida a olhar para Ele. Ó, pecador, obedece à ordem divina. No entanto, se teu coração estiver endurecido, como os obstinados judeus da época de Moisés, toma cuidado, pois

O Senhor de vingança vestido

Levantará a cabeça e dirá: —

Tu desprezaste meu descanso prometido

Portanto, porção ali não terás

De qualquer forma, pecador, se não te arrependeres, há alguém aqui que se arrepende, e esse alguém sou eu. Eu me arrependo de não pregar com maior ardor nesta manhã, empenhando toda a minha alma em implorar a você que se arrependa. O Senhor, a quem sirvo, é minha testemunha de que não há coisa que eu mais deseje do que ver o seu coração dilacerado devido ao seu pecado. E nada alegra mais meu coração do que ver tantos exemplos das maravilhas de Deus concedidas neste lugar. Muitas pessoas que aqui estão há anos não entravam em um lugar de culto, e o Senhor as encontrou; e creio que, se lhes desse a palavra, centenas se levantariam e diriam: “Foi o Senhor quem veio ao meu encontro. Eu era o pior dos pecadores; o martelo bateu em meu coração e o despedaçou, e ele foi refeito pelos dedos da divina misericórdia. E digo a vocês, pecadores, e diante da congregação reunida, existe misericórdia mais profunda que a minha iniquidade.” Hoje uma alma será liberta, hoje haverá, sem dúvida, a despeito da minha fraqueza, uma demonstração da força de Deus e do poder do Espírito Santo. Alguém, escravizado pelo álcool, será liberto; alguma alma, que tremia nas próprias mandíbulas do inferno, olhará para Aquele que é a esperança do pecador e encontrará paz e perdão — sim, neste exato momento. Que assim seja, ó, Senhor, e tua será a glória, para todo o sempre.

Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza


Notas da tradutora

NT1. “Stool of repentance”, cuja tradução literal é banco do arrependimento, foi um instrumento usado nas igrejas reformadas da Escócia até o início do século XIX. A prática consistia em um banco colocado abaixo do púlpito, onde eram disciplinados publicamente os membros da igreja que cometiam pecados públicos, tais como adultério e relações sexuais ilícitas.

fontes: https://encyclopedia.thefreedictionary.com/Stool+of+repentance

https://intarch.ac.uk/journal/issue30/2/exp/7.5.html#:~:text=It%20is%20Todd's%20understanding%20that,be%20high%3B%20some%20even%20requiring acesso em 16.10.24

NT2 O cerco de Calais, associado à batalha de Crecy, em 1346, faz parte da primeira fase da Guerra dos Cem Anos entre Inglaterra e França. 

https://www.alamy.com/an-illumination-depicting-the-siege-of-calais-the-chief-citizens-of-calais-kneeling-before-edward-iii-handing-over-the-keys-to-the-city-after-their-defeat-image377033286.html

NT3. Na época de Spurgeon (século XIX), ainda não havia técnicas seguras para separação de gêmeos siameses.

NT4. “Village Dialogues”, foi escrito pelo pastor inglês Rowland Hill (1744-1833), e é uma coleção de diálogos entre um pastor e seus paroquianos em um vilarejo rural inglês. Os diálogos cobrem uma porção de tópicos, incluindo religião, moralidade e outros assuntos. (https://www.amazon.com.br/Village-Dialogues-Rowland-Hill-Sir/dp/1164106856#detailBullets_feature_div)

NT5. “Siege of Mansoul”, peça em cinco atos baseada no livro “A Guerra Santa”, de John Bunyan