quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

O primeiro e o último apelo de Cristo

 

Sermão nº 329

Ministrado na manhã de domingo, 19 de agosto de 1860, pelo

Rev. Charles H. Spurgeon,

em Exeter Hall, Strand

Daí por diante, passou Jesus a pregar e a dizer: Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus. — Mateus 4.17

 e que em seu nome se pregasse arrependimento para remissão de pecados a todas as nações, começando de Jerusalém. — Lucas 24.27


De acordo com estes dois textos, parece que o arrependimento foi o primeiro apelo do Redentor; e também o último, quando, em Seus momentos finais, Ele o recomendou veementemente a Seus discípulos. Ele iniciou Seu ministério apregoando: “Arrependei-vos”; e o encerrou, dizendo aos apóstolos, Seus sucessores: “pregai o arrependimento para remissão de pecados a todas as nações, começando de Jerusalém”. Isto me parece muito interessante e, além de interessante, muito instrutivo. Jesus Cristo dá início ao Seu ministério pregando o arrependimento. Mas, por quê? Será que Ele não está nos ensinando que o arrependimento é tão importante que, desde que abre a boca pela primeira vez, Ele diz: “Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus.”? Será que Ele não sente que pregar sobre arrependimento é necessário antes mesmo de pregar sobre a fé em Si mesmo, uma vez que a alma deve arrepender-se primeiro de seu pecado antes de buscar o Salvador, ou se preocupar em saber se há um Salvador? Não será, ainda, porque Ele está indicando que, como o arrependimento foi a primeira lição do ensino divino, nós, se quisermos ser Seus discípulos, devemos começar sentando-nos no banquinho do arrependimento (NT1), antes de podermos ascender a formas mais elevadas de fé e convicção? 

Jesus começa pregando sobre o arrependimento, para que este seja o Alfa, a primeira letra do alfabeto espiritual que todos os crentes devem aprender. E, quando conclui sua pregação divina com o arrependimento, não é porque Ele quer dizer que este continua sendo um assunto de extrema importância? Ele prega o arrependimento com seu primeiro suspiro, e também com o último; com isto Ele começa, com isto Ele termina. Ele sabia que, para a vida espiritual, o arrependimento era o Alfa e o Ômega — um dever do princípio e um dever do fim. Ele parecia dizer: “O arrependimento que preguei há três anos, quando vim ao mundo pela primeira vez para pregar publicamente, era tão indispensável e necessário para aqueles que me ouviram e obedeceram à minha voz naquele momento, quanto é para vocês, que estão comigo desde o princípio. Não pensem que esta seja uma questão esgotada e fora de moda; vocês também devem começar e terminar seu ministério com a mesma exortação: ‘Arrependei-vos e convertei-vos, porque está próximo o reino dos céus.’” 

Parece-me que nada poderia descrever melhor o alto conceito de Jesus sobre o valor do arrependimento do que Ele começar e terminar dizendo: “arrependei-vos” — como a ideia predominante do Seu ministério; pregando esse dever antes de desenvolver plenamente todo o mistério da piedade — e que Ele devesse encerrar a canção da Sua vida como um bom compositor deve fazer, com a primeira nota-chave, ordenando a Seus discípulos: “que em seu nome se pregasse arrependimento para remissão de pecados”. Por isso, sinto que não preciso dar maiores explicações para chamar sua atenção para a questão do arrependimento salvador. E, enquanto estivermos falando sobre isso, que o Espírito Santo de Deus sopre em nossa alma, e que possamos nos arrepender diante dEle e encontrar as bênçãos que Ele promete aos penitentes. 

Há quatro coisas que vamos falar a respeito do arrependimento: sua origem; seus elementos essenciais; seus companheiros; e suas qualidades.

I. Arrependimento — SUA ORIGEM

Quando pregamos “arrependam-se e sejam convertidos”, alguns tolos dizem que somos legalistas. Ora, para iniciar este primeiro ponto, afirmamos que o arrependimento é proveniente do evangelho. Ele não nasceu nos arredores do Monte Sinai. Sua origem não é outra senão o Monte Sião. É óbvio que o arrependimento é um dever — um dever natural — pois, quando alguém peca, quem teria a ousadia de dizer que não é seu dever sagrado arrepender-se do que fez? É um dever que a própria natureza ensinaria. No entanto, o arrependimento do evangelho nunca foi dado como uma questão de dever. Ele não foi gerado na alma por exigência da lei. Na verdade, a lei nem pode, a não ser como instrumento da graça, sequer conduzir a alma ao arrependimento salvífico. O mais incrível é que a própria lei não dá margem para o arrependimento. A lei diz: “Faze isso e viverás; quebra o meu mandamento e morrerás”. Não há nada sobre contrição; não há oferta de perdão para aqueles que se arrependem. A lei pronuncia sua maldição mortal apenas uma vez sobre aquele que peca e não oferece uma forma de escape ou saída para que ele seja restaurado. O terreno estéril do Sinai não tem solo fértil para nutrir a adorável planta do arrependimento. O orvalho da misericórdia jamais caiu sobre o Sinai. Seus relâmpagos e trovões afastaram o anjo da Misericórdia de uma vez por todas. Ali, a Justiça se assenta com sua espada flamejante sobre o majestoso trono de rocha, jamais se propondo a embainhar a espada e perdoar o ofensor. Leia atentamente o capítulo 20 de Êxodo. Todos os mandamentos trovejam com voz de trombeta; não há pausa entre eles para que a Misericórdia intervenha e diga, com voz pungente: “Mas, se quebrares a lei, Deus terá misericórdia de ti, e será gracioso se te arrependeres.” Digo que não há palavras de arrependimento pronunciadas pela lei; não há promessas para os penitentes, nem assistência aos que desejam ser perdoados. Arrependimento é uma graça do evangelho. Cristo o pregou, Moisés não. Moisés não pode, e nem vai, ajudar uma alma a se arrepender. Só Jesus pode usar a lei como meio de convicção e argumento para o arrependimento. Jesus perdoa aqueles que o buscam com choro e lágrimas; mas Moisés não conhece tal coisa. Se o arrependimento deve ser alcançado pelo pecador, deve ser encontrado aos pés da cruz, não nos dez mandamentos estilhaçados aos pés do Sinai.

E, como o arrependimento é proveniente do evangelho, agora faço minha segunda observação, ou seja, que ele também tem origem na graça. O arrependimento nunca foi produzido no coração humano à parte da graça de Deus. Assim como não se espera que um leopardo se desculpe pelo sangue que mancha suas presas e que o leão da floresta abandone sua tirania cruel sobre os animais da planície, também não se espera que um pecador confesse seus pecados, ou se arrependa de alguma forma que seja aceita por Deus, a menos que a graça renove primeiramente o seu coração. Esperar que alguém endurecido pelo pecado chore lágrimas de arrependimento é o mesmo que esperar que a calota polar se derreta com a nossa respiração. Esperar que um apelo eloquente seja capaz de perfurar o impenetrável coração humano sem a assistência da graça divina é o mesmo que tentar dividir a terra e perfurar suas entranhas com os dedos de uma criança. O homem pode pecar e continuar pecando, mas, para deixar esse estado deplorável, ele precisa do poder divino. Como a correnteza de um rio desce em direção às cataratas, saltando furiosamente sobre as rochas, assim é o pecador em seu pecado, descendo cada vez mais rápido, mais intenso e mais impetuoso em seu curso infernal. Nada, exceto a graça divina, pode impedir esse curso ou fazer retroceder as águas pelo caminho que elas mesmas cavaram por entre as rochas. Nada, a não ser o poder que criou o mundo e cavou as fundações do grande abismo, pode tornar o coração do homem uma fonte de vida da qual possam jorrar as torrentes do arrependimento. 

Portanto, alma, se um dia te arrependeres, o arrependimento deve ser proveniente da graça, não da sua própria natureza. A natureza pode imitar o arrependimento, pode produzir remorso, pode gerar uma resolução fraca, pode até levar a uma reforma prática e parcial; mas, sem ajuda, ela não pode tocar as partes vitais da alma e torná-la uma nova criação. A natureza pode fazer os olhos chorarem, mas não pode fazer o coração sangrar. A natureza pode pedir que você corrija o seu caminho, mas não pode renovar o seu coração. Não, pecador, você precisa olhar para cima; precisa olhar para Aquele que é capaz de salvar até mesmo o pior pecador. Das Suas mãos, você deve receber um espírito manso e suave; dos Seus dedos deve vir o toque que destrói a rocha; dos Seus olhos deve vir o lampejo de luz e amor que pode dissipar as trevas da sua impenitência. Portanto, desde o início, lembre-se de que, por um lado, o verdadeiro arrependimento provém do evangelho, não da lei; e, por outro, provém da graça, não da criatura.

II. No entanto, para passarmos deste para o segundo tópico, devemos observar quais são os elementos ESSENCIAIS do verdadeiro arrependimento. Os teólogos antigos adotaram diversos métodos para explicá-lo. Alguns diziam que era um remédio precioso composto por seis elementos. Contudo, observando a divisão feita por eles, senti que o efeito seria o mesmo se o dividisse em quatro. Esse vaso de bálsamo precioso deve ser quebrado sobre a cabeça do Salvador antes que o suave aroma da paz possa ser sentido na alma — o bálsamo é composto de quatro das mais raras e caras especiarias. Deus nos dá cada uma delas e depois nos dá a própria mistura preparada pela mão do Mestre. Assim, o verdadeiro arrependimento é composto de: iluminação, humilhação, abominação e transformação. 

Vamos examiná-los um por um. O primeiro elemento que compõe o verdadeiro arrependimento é a iluminação. O homem, por natureza, é impenitente, pois não sente que é culpado. Ele não consegue enxergar o pecado naquilo que faz e, mesmo quando seus erros são grandes e flagrantes, ele sabe que está errado, mas não percebe a profundidade, a enormidade do pecado envolvido em seus atos. Um dos primeiros remédios aplicados por Jesus à alma é o colírio (Ap. 3.18). Jesus toca o olho com entendimento e a pessoa se torna culpada a seus próprios olhos, como sempre foi diante de Deus. Transgressões há muito esquecidas começam a sair do túmulo onde tinham sido sepultadas pelo esquecimento; pecados antes não considerados como tal subitamente mostram seu verdadeiro caráter; e atitudes antes consideradas perfeitas agora se mostram tão entremeadas por desejos malignos que estão longe de serem aceitáveis a Deus. O olho não está mais cego e, por isso, o coração já não é orgulhoso, pois o olho que vê torna o coração humilde. 

Se pudesse fazer um retrato desta primeira fase do arrependimento, eu pintaria um homem com uma venda nos olhos andando por um caminho infestado de cobras extremamente venenosas. Elas estariam enroladas ao redor da sua cintura e penduradas em seus pulsos. O homem está tão cego que não sabe onde está e nem imagina o que usa como adorno. Então, eu tiraria a venda de seus olhos e pediria que você visse o horror e o espanto em seu rosto ao descobrir onde ele está e quem ele realmente é. Ele olha para trás e vê ninhadas de víboras por onde passou; olha para diante e vê como o seu futuro está infestado dessas bestas venenosas. Ele olha ao redor e vê que, de dentro do seu coração culpado, está saindo a cabeça de uma serpente, cujo corpo está todo enroscado em seus órgãos vitais. Se pudesse, eu tentaria colocar em seu rosto todo o horror, espanto, pavor e tristeza que está ele sentindo, desejando ardentemente escapar e se livrar daquelas coisas que irão destruí-lo a menos que ele encontre uma saída. 

E, agora, caro ouvinte, pergunto se você já foi objeto da iluminação divina. Será que o mesmo Deus que disse ao mundo ainda informe: “Haja luz!”, também disse: “Haja luz!” à sua pobre alma obscurecida? Você sabe que suas melhores obras nada valem e que seus atos pecaminosos são bem piores do que imagina? Não creio que você tenha se arrependido, a menos que, primeiramente, tenha sido iluminado pela luz divina. Da mesma forma que não se espera que um olho cego veja a sujeira na mão, também não se espera que um entendimento não iluminado perceba o pecado que mancha a nossa vida diária. 

Depois da iluminação, vem a humilhação. A alma, tendo visto a si mesma como ela realmente é, curva-se diante de Deus, despoja-se de toda sua ostentação e se prostra ante o trono de misericórdia. Antes, ela podia falar orgulhosamente sobre mérito, mas agora nem ousa pronunciar tal palavra. Antes, ela se gabava diante de Deus, dizendo: “Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens” (Lucas 18.11), mas agora permanece a distância, esmurra o peito e clama: “Ó Deus, sê propício a mim, pecador!” (Lc. 18.13). Agora, o olhar altivo e arrogante, que Deus abomina, é abandonado; os olhos se tornam uma torrente perpétua de lágrimas, chorando e lamentando; e a alma clama dia e noite diante de Deus, pois está aborrecida consigo mesma por ter aborrecido o Espírito Santo; está triste consigo mesma por ter entristecido o Altíssimo. 

Neste ponto, se eu pudesse retratar o arrependimento, eu tomaria emprestada a figura dos homens de Calais diante do nosso rei conquistador (NT2). Ali, eles estão de joelhos, com a corda no pescoço, vestidos de pano de saco e com cinzas na cabeça, confessando que merecem a morte. No entanto, de mãos estendidas, eles imploram por misericórdia. E alguém, que parece a personificação do anjo de misericórdia, ou melhor, de Jesus Cristo, o Deus da misericórdia — está de pé diante do rei, suplicando a ele que poupe suas vidas.

Pecador, não estarás realmente arrependido até sentires essa corda espiritual em teu pescoço, até reconheceres que o inferno é exatamente aquilo que conquistaste e que, se Deus te banir para sempre da Sua presença, para o lugar onde jamais haverá paz e esperança, Ele estará apenas te dando a paga por aquilo que ricamente granjeaste. Se não sentires que as chamas do inferno são exatamente o que os teus pecados merecem, então, ainda não te arrependeste. É preciso reconhecer tanto a justiça da punição quanto a culpa pelo pecado, ou tudo não passará de um arrependimento falso e fingido. Humilha-te, pecador; despoja-te dos teus ornamentos, para que Ele saiba o que fazer contigo. Não unjas a tua cabeça, nem laves a tua face, mas jejua, abaixa a cabeça e lamenta. Tu fizeste o céu chorar, deixaste a terra entristecida e cavaste o inferno para ti mesmo. Confessa a tua iniquidade com vergonha e constrangimento; curva-te diante do Deus clemente e reconhece que, se Ele te poupar, será exclusivamente pela Sua misericórdia; mas, se te destruir, tu não terás uma palavra a dizer contra a justiça da solene sentença. 

Tal é o despojamento dado pelo Espírito Santo, quando Ele conduz as pessoas ao arrependimento, ao qual, muitas vezes, elas sucumbem quase até a morte a fim de escapar do peso infligido pela humilhação da alma. Não desejo que sintam esse terror, mas oro para que deixem de lado a vanglória, fiquem calados e sintam como se agora tivesse chegado o dia e a hora do julgamento, e vocês tivessem de ficar de boca fechada, mesmo que Deus dissesse: “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno” (Mt. 25.41). Sem isso, digo, não há verdadeiro arrependimento, conforme o evangelho.

O terceiro ingrediente é a abominação. A alma precisa ir além da mera tristeza, ela precisa odiar o pecado, odiar até mesmo a sua sombra, odiar os lugares onde ela e o pecado foram companheiros de orgia, odiar o leito de prazeres e a tapeçaria reluzente; sim, odiar as próprias vestes manchadas pela carne. Não há arrependimento onde a pessoa pode falar levianamente sobre pecado, muito menos onde ela pode falar dele com amor e ternura. 

Quando o pecado se aproximar de ti, confiante como Agague, dizendo: “Certamente, já se foi a amargura da morte.” (1Sm 15.32), se o teu arrependimento for verdadeiro, ele se levantará contra o teu Agague, como fez Samuel, e o despedaçará diante do Senhor. Enquanto abrigares um ídolo em teu coração, Deus jamais habitará nele. Tu precisas quebrar não só os ídolos de madeira e de pedra, mas também os de ouro e de prata; sim, o próprio bezerro de ouro, que tem sido a tua principal idolatria, deve ser reduzido a pó e misturado à água amarga da penitência, para que sejas obrigado a beber dela (Êxodo 32.20). 

Na alma do verdadeiro penitente existe uma aversão tão grande ao pecado que ele nem pode ouvir essa palavra. Se fosse forçado a conviver com o pecado, ele se sentiria repugnante. Um penitente não tolera lugares profanos. É como se o mundo fosse desabar sobre ele. Numa reunião de ímpios, ele seria como um pombo no meio de aves de rapina. O penitente não sente prazer no pecado, do mesmo modo que uma ovelha não sente prazer em lamber sangue junto a um lobo ou uma pomba em banquetear-se de carniça junto a um abutre. Pode ser que, num momento de fraqueza, ele dê um passo em falso e caia em pecado, mas, pela graça de Deus, ele se levantará e abominará até mesmo as roupas com as quais caiu na lama (Jó 9:31). O pecador impenitente, como o porco, gosta de chafurdar na lama; mas o penitente, como a andorinha, pode até molhar a ponta das asas no lago da iniquidade, mas alça voo novamente, gorjeando tristes palavras de arrependimento, pois lamenta ter se rebaixado tanto e pecado contra o seu Deus. 

Caro ouvinte, se tu não odeias teus pecados a ponto de abandoná-los — se não estás disposto a pendurá-los na forca de Hamã (Ester 7.9), a mais de vinte metros de altura — se não podes sacudi-los de ti como Paulo fez com a víbora em sua mão (Atos 28.5) e lançá-los no fogo da abominação, então, eu te digo que não conheces realmente a graça de Deus; pois, se amas o pecado, não amas nem a Deus, nem a ti mesmo, mas preferes a tua própria condenação. Estás flertando com a morte e fazendo aliança com o inferno. Que Deus te livre desse miserável estado de coração e te leve a odiar o teu pecado.

    Ainda falta mais um ingrediente. Já temos a iluminação, a humilhação e a abominação. No entanto, é preciso haver mais uma coisa, ou seja, uma completa transformação, pois — 

Arrepender-se é abandonar

Os pecados que um dia amamos

E com profunda tristeza demonstrar

Que nunca mais seremos o que fomos.

O penitente corrige toda a sua vida. A correção não é parcial, é profunda, é total, é no coração. A fraqueza pode afetá-la, mas a graça estará sempre lutando contra a fraqueza humana, e a pessoa odiará e abandonará todo caminho errado. 

Tu, comerciante desonesto, não me digas que estás arrependido enquanto ainda há preços exorbitantes nas tuas mercadorias. Tu, que já foste um bêbado inveterado, não digas que te converteste a Deus se ainda amas um copo e te excedes na bebida. Não digas, ó, avarento miserável: “estou arrependido”, se ainda devoras cada centavo dos comerciantes indefesos que caem na tua teia. E tu, não venhas me dizer que foste perdoado se ainda alimentas desejo de vingança contra teu irmão e falas mal do filho da tua mãe. Tu mentes para a tua própria vergonha. A tua cara de pau é como a da meretriz que diz: “eu me arrependi”, quando teus braços continuam mergulhados até os cotovelos na imundície da tua iniquidade. 

Não, homem, Deus não perdoará sua luxúria enquanto você estiver se divertindo em seu leito de impureza. E não pense que Ele perdoará suas bebedeiras enquanto você estiver assentado na mesa dos beberrões! Será que Ele perdoará sua irreverência enquanto sua língua ainda treme quando faz juramentos? Você acha que Deus perdoará suas transgressões quando você continua repetindo o seu pecado e mergulhando voluntariamente na lama? Ele te lavará, mas não para permitir que caias novamente e te contamines mais uma vez.

“Bem”, você diz, “sinto que estou mudando”. Fico feliz em ouvir isso, caro amigo, mas preciso lhe dizer mais uma coisa. A transformação divina não se limita apenas a atitudes, ela se dá na própria alma. O novo homem não só não peca como antes, mas não quer mais pecar como antes. As panelas do Egito às vezes exalam um cheiro delicioso e, quando ele passa por uma casa onde sente o aroma de seus temperos, ele quase deseja voltar ao cativeiro egípcio, mas, na mesma hora, ele se controla e diz: “Não, não, o maná celestial é melhor; a água saída da rocha é mais pura que as águas do Nilo; não posso voltar à escravidão do meu antigo tirano.”

Talvez Satanás faça algumas insinuações, mas sua alma as rejeita e se esforça para afastá-las. Seu próprio coração anseia para se ver livre de todo pecado e, se pudesse ser perfeito, ele seria. Ele não pouparia uma só transgressão. Se quiser agradar seu coração, é só não lhe pedir para ir a lugares condenáveis; isso lhe causaria uma dor insuportável. O que muda em você não são apenas as maneiras e os costumes, mas a sua própria natureza. Não é apenas folhagem nova, a raiz também é nova. Não são apenas ramos novos, há um tronco totalmente novo e nova seiva, e haverá novos frutos como resultado dessa mudança. Uma transformação gloriosa é operada por um Deus gracioso. O arrependimento é tão real e tão completo que a pessoa não é mais a mesma que costumava ser. Ela é uma nova criatura em Cristo Jesus. Se você foi renovado pela graça e tivesse de se encontrar com seu antigo eu, tenho certeza de que ficaria ansioso para se livrar da sua companhia.

— Não quero mais sua companhia!

— Por quê? Você costumava gostar tanto de falar palavrões!

— Mas agora não falo mais.

— Bem, você e eu somos chegados.

— Sim, sei que somos, mas queria que não fôssemos. Todo dia, você me arranja uma porção de encrenca. Gostaria de me livrar de você de uma vez por todas.

— Ora — diz seu antigo Eu — você costumava beber bastante também.

— Sim, eu sei disso. Na verdade, quem bebia era você. Você cantava com a mesma euforia de qualquer um; estava sempre à frente de todo tipo de imoralidade; mas agora não tenho mais nada a ver com isso. Você é do velho Adão, eu sou do novo. Você é do seu antigo pai, o diabo, mas eu tenho outro: meu Pai, que está no céu. 

Digo-lhe, irmão, não há ninguém no mundo a quem você odiará tanto quanto o seu antigo eu, e não há ninguém de quem desejará tanto se livrar quanto da pessoa que antes o arrastava para o inferno, e que vai continuar tentando arrastá-lo todos os dias da sua vida, e vai conseguir, a menos que a graça divina, que fez de você um novo homem, o mantenha um novo homem até o fim. 

Rowland Hill, em “Village Dialogues” (NT3), dá ao cristão, a quem ele descreve na primeira parte do livro, o nome de Thomas Newman. Todo aquele que vai para o céu também precisa ter o nome new-man (novo homem). Não podemos esperar ir para lá, a menos que sejamos “criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (Efésios 2.10). 

Assim sendo, mesmo enfrentando sérias distrações em minha própria mente, esforcei-me para explicar, da melhor forma possível, a essência do verdadeiro arrependimento — iluminação, humilhação, abominação e transformação. As terminações das palavras, embora sejam palavras longas, podem chamar sua atenção e ajudá-lo a guardá-las.

III. E, agora, em terceiro lugar, permitam-me falar rapidamente sobre os COMPANHEIROS do verdadeiro arrependimento. 

    Seu primeiro companheiro é a . Os antigos teólogos puritanos fizeram a seguinte pergunta: “O que vem primeiro, a fé ou o arrependimento?”. Alguns disseram que ninguém se arrepende realmente de seus pecados até crer em Deus e sentir, de alguma forma, o amor do Salvador. Outros disseram que não é possível alguém ter fé antes de se arrepender de seus pecados, pois precisa odiar o pecado antes de confiar em Cristo. Por isso, um velho ministro fez a seguinte observação: “Irmãos, não creio que possam resolver essa questão. Seria como perguntar o que é observável primeiro no nascimento de uma criança: a circulação do sangue ou o batimento do coração?”. E acrescentou: “Parece-me que a fé e o arrependimento são simultâneos. Eles ocorrem ao mesmo tempo. Sem fé, não pode haver verdadeiro arrependimento. E nunca houve arrependimento sincero sem fé.” 

Endossamos essa opinião. Creio que arrependimento e fé são como irmãos siameses; eles nascem juntos e não podem viver separados, e perecem se tentarmos separá-los (NT 4). A Fé sempre anda lado a lado com seu irmão lacrimejante, o verdadeiro Arrependimento. Eles nasceram na mesma casa, na mesma hora e viverão sempre todos os dias no mesmo coração; e, quando a pessoa estiver no seu leito de morte, de um lado terá a fé para abrir a cortina para o mundo vindouro e, de outro, terá o arrependimento, com suas lágrimas, cerrando a cortina para o mundo deixado para trás. Até o último instante, haverá lágrimas pelos pecados, mas, mesmo assim, o lugar onde elas serão lavadas poderá ser visto através delas. Alguns dizem que no céu não há fé. Talvez não haja. Se não houver, então não haverá arrependimento; mas, se houver, haverá arrependimento, pois onde vive um, vive o outro também. Eles são tão unidos, tão entrelaçados e ligados, que nunca poderão ser separados, nem no tempo, nem na eternidade. E, então, tu tens fé em Jesus? Tua alma olha para cima e se entrega em Suas mãos? Se sim, então, tens o arrependimento do qual não precisas te arrepender.

    Há também uma coisa doce que sempre acompanha o arrependimento. Assim como Arão andava com Moisés para ser seu porta-voz, pois sabemos que Moisés era “pesado de língua” (Ex. 4.10), o mesmo acontece com o arrependimento. O arrependimento tem belos olhos, mas lábios gaguejantes. Na verdade, acontece que o arrependimento fala geralmente com os olhos, mas não consegue falar com os lábios, exceto quando sua amiga — a qual é uma boa porta-voz — está por perto; ela se chama Dona Confissão. Esta senhora é notória por sua franqueza. Ela conhece a si mesma e conta tudo o que sabe sobre si diante do trono de Deus. A confissão não guarda segredos. O arrependimento suspira devido ao pecado — a confissão o revela. O arrependimento sente o peso interior do pecado — a confissão arranco-o do peito e o denuncia diante do trono de Deus. O arrependimento é a alma em trabalho de parto — a confissão é o parto. O arrependimento incendeia meus ossos e meu coração fica prestes a explodir — a confissão dá vazão ao fogo celestial e minha alma arde diante de Deus. O arrependimento, por si só, solta gemidos inexprimíveis — a confissão é a voz que expressa esses gemidos. E agora? Já confessaste o teu pecado — não aos homens, mas a Deus? Se confessaste, então, creia que o teu arrependimento vem dEle, e é uma tristeza santa que não precisa ser lamentada.

A santidade é outra amiga íntima do arrependimento. Anjo formoso, vestido de puro linho branco, ela ama uma boa companhia e nunca ficará em um coração onde o arrependimento é um estranho. O arrependimento precisa cavar a fundação, mas a santidade erguerá a estrutura e colocará o topo do edifício. O arrependimento remove o lixo do antigo templo de pecado; a santidade constrói o novo templo que nosso Senhor herdará. Arrependimento e desejo de santidade não podem ser separados.

E, por fim — onde quer que haja arrependimento, a paz vem com ele. Assim como Jesus andou sobre as águas do mar da Galileia e disse: “Acalma-te, emudece!” (Mc. 4.39), a paz também anda sobre as águas do arrependimento e traz calma e quietude à alma. Se quiseres saciar a sede da tua alma, o arrependimento deve ser o cálice do qual deves beber e, então, o efeito bendito será a paz. O pecado é um companheiro tão incômodo que sempre te dará dor de cabeça, até que te livres dele com arrependimento. Só então teu coração descansará e ficará em paz. O pecado é como as rajadas de vento que assolam a floresta e balançam os galhos das árvores, mas depois que o arrependimento vem à alma, o vento se aquieta e tudo fica calmo, e os passarinhos cantam nos galhos que rangiam sob a tempestade. A paz sempre toma conta da pessoa que se arrepende.

E agora? O que dizes, caro ouvinte? Aplica cada ponto diretamente a ti mesmo. Tu tens paz com Deus? Se não tens, não descanses até que tenhas, e não creias que sejas salvo até que te sintas reconciliado com Ele. Não te contentes com a simples confissão racional, mas pede que “a paz que excede todo o entendimento guarde o vosso coração e a vossa mente em Cristo Jesus” (Filipenses 4.7).

    IV. E, agora, chegamos ao meu quarto e último ponto, ou seja, as QUALIDADES do arrependimento.

Creio que vou surpreendê-los ao dizer que uma das excelências do arrependimento é sua doçura. “Como assim?”, você diz, “o arrependimento é amargo!”. Não, não é, ele é doce. É amargo quando está sozinho, como as águas de Mara; mas quando colocamos nele a árvore chamada cruz, ele se torna doce e potável. Em uma escola para deficientes surdos-mudos, a professora fez a seguinte pergunta às suas alunas: “Qual é a emoção mais doce?”. Tão logo as crianças compreenderam a pergunta, elas pegaram suas lousas e escreveram suas respostas. Uma das meninas rapidamente escreveu: “alegria”. Quando a professora viu a resposta, achou que todas iriam escrever o mesmo; no entanto, outra menina, mais pensativa, colocou a mão na testa e escreveu “esperança”. Na verdade, ela não estava longe da realidade. Outra, quando levantou sua lousa, havia escrito “gratidão”, e ela também não estava errada. Outra, ainda, escreveu “amor”, e tenho certeza de que ela estava certa. Contudo, outra menina escreveu com letras bem grandes — e, quando levantou sua lousa, seus olhos estavam cheios de lágrimas, mostrando o que ela sentia — “arrependimento é a emoção mais doce”. Creio que ela é que estava certa. Na verdade, no meu próprio caso, depois de um longo período de seca, talvez maior que os três anos da época de Elias (1Reis 18), durante os quais os céus não derramaram chuva, quando vi uma única lágrima de arrependimento saindo da minha alma endurecida — foi uma grande alegria! Há momentos em que sabemos que estamos errados, mas, quando podemos chorar por causa disso, nós ficamos felizes. Da mesma forma que alguém chora quando nasce o primeiro filho, nós choramos devido ao nosso pecado e, nesse mesmo momento, temos a paz e a alegria restauradas. Sou uma testemunha viva de que o arrependimento é extremamente doce quando misturado com a esperança divina. No entanto, arrependimento sem esperança é o inferno! É um inferno lamentar-se sobre o pecado, com a angústia de um amargo remorso, e ainda saber que o perdão nunca virá e a misericórdia nunca será concedida. Arrependimento, com a cruz diante dos olhos, é o próprio céu. Pelo menos, se ainda não é o céu, está tão perto dele que, estando em seu limiar, posso olhar para dentro dos portais de pérola e cantar a canção dos anjos que se regozijam lá dentro. O arrependimento, então, tem essa excelência, que é ser doce à alma que fica à sombra da cruz.

    Além disso, o arrependimento é tão doce para Deus quanto para os homens. “Coração compungido e contrito, não o desprezarás, ó Deus.” (Sl. 51.17). Quando Santo Agostinho estava em seu leito de morte, havia um versículo colocado em suas cortinas para que, sempre que acordasse, ele pudesse lê-lo: “Coração compungido e contrito, não o desprezarás, ó Deus.”. Quando desprezamos a nós mesmos, Deus nos honra, mas, quando honramos a nós mesmos, Deus nos despreza. Um coração ileso não tem cheiro; mas, quando está ferido e contrito, é como aquela especiaria preciosa que era queimada como incenso no antigo tabernáculo. Quando o sangue de Jesus é aspergido sobre ele, nem as canções dos anjos, nem os frascos cheios de aroma suave que sobem diante do trono do Altíssimo são mais agradáveis do que os suspiros, gemidos e lágrimas de uma alma quebrantada. Então, se queres ser agradável a Deus, apresenta-te a Ele com muitas e muitas lágrimas: 

Da alma humilde e coração quebrantado

Deus, com Sua graça, está sempre ao lado

Seu amor dá graça e perdão

Ao homem em profunda contrição

Ele conta suas lágrimas e gemidos

O Filho, sua alma da morte, redime

O Espírito cura os ossos partidos

E o homem, o seu louvor, exprime 

Na peça “Siege of Mansoul” (NT5), quando os habitantes derrotados da cidade estavam em busca de perdão, John Bunyan dá o nome de Mr. Wet-eyes (Sr. Olhos Lacrimejantes) ao intercessor junto ao rei. Wet-eyes — excelente palavra saxã! Espero que todos nós o conheçamos e que ele esteja sempre presente em nossa casa, pois mesmo que não possa interceder junto a Deus, Olhos Lacrimejantes é um grande amigo do Senhor Jesus Cristo, e Cristo se encarregará do nosso caso, e então seremos bem-sucedidos. 

Desta forma, então, procurei demonstrar algumas, embora poucas, qualidades do arrependimento. E vocês, caros ouvintes, já se arrependeram do seu pecado? 

Ó, alma impenitente, se não derramares tuas lágrimas agora, terás de derramá-las para sempre. O coração que não é dilacerado agora será dilacerado por toda a eternidade na roda da vingança divina. Tu precisas te arrepender agora, senão sofrerás para sempre. Mudar ou queimar — esta é a única alternativa da Bíblia. Se te arrependeres, os portões da misericórdia estarão totalmente abertos. Só o Espírito de Deus pode te colocar de joelhos em auto-humilhação, pois a cruz de Cristo está diante de ti, e Aquele que sangrou sobre ela te convida a olhar para Ele. Ó, pecador, obedece à ordem divina. No entanto, se teu coração estiver endurecido, como os obstinados judeus da época de Moisés, toma cuidado, pois

O Senhor de vingança vestido

Levantará a cabeça e dirá: —

Tu desprezaste meu descanso prometido

Portanto, porção ali não terás

De qualquer forma, pecador, se não te arrependeres, há alguém aqui que se arrepende, e esse alguém sou eu. Eu me arrependo de não pregar com maior ardor nesta manhã, empenhando toda a minha alma em implorar a você que se arrependa. O Senhor, a quem sirvo, é minha testemunha de que não há coisa que eu mais deseje do que ver o seu coração dilacerado devido ao seu pecado. E nada alegra mais meu coração do que ver tantos exemplos das maravilhas de Deus concedidas neste lugar. Muitas pessoas que aqui estão há anos não entravam em um lugar de culto, e o Senhor as encontrou; e creio que, se lhes desse a palavra, centenas se levantariam e diriam: “Foi o Senhor quem veio ao meu encontro. Eu era o pior dos pecadores; o martelo bateu em meu coração e o despedaçou, e ele foi refeito pelos dedos da divina misericórdia. E digo a vocês, pecadores, e diante da congregação reunida, existe misericórdia mais profunda que a minha iniquidade.” Hoje uma alma será liberta, hoje haverá, sem dúvida, a despeito da minha fraqueza, uma demonstração da força de Deus e do poder do Espírito Santo. Alguém, escravizado pelo álcool, será liberto; alguma alma, que tremia nas próprias mandíbulas do inferno, olhará para Aquele que é a esperança do pecador e encontrará paz e perdão — sim, neste exato momento. Que assim seja, ó, Senhor, e tua será a glória, para todo o sempre.

Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza


Notas da tradutora

NT1. “Stool of repentance”, cuja tradução literal é banco do arrependimento, foi um instrumento usado nas igrejas reformadas da Escócia até o início do século XIX. A prática consistia em um banco colocado abaixo do púlpito, onde eram disciplinados publicamente os membros da igreja que cometiam pecados públicos, tais como adultério e relações sexuais ilícitas.

fontes: https://encyclopedia.thefreedictionary.com/Stool+of+repentance

https://intarch.ac.uk/journal/issue30/2/exp/7.5.html#:~:text=It%20is%20Todd's%20understanding%20that,be%20high%3B%20some%20even%20requiring acesso em 16.10.24

NT2 O cerco de Calais, associado à batalha de Crecy, em 1346, faz parte da primeira fase da Guerra dos Cem Anos entre Inglaterra e França. 

https://www.alamy.com/an-illumination-depicting-the-siege-of-calais-the-chief-citizens-of-calais-kneeling-before-edward-iii-handing-over-the-keys-to-the-city-after-their-defeat-image377033286.html

NT3. Na época de Spurgeon (século XIX), ainda não havia técnicas seguras para separação de gêmeos siameses.

NT4. “Village Dialogues”, foi escrito pelo pastor inglês Rowland Hill (1744-1833), e é uma coleção de diálogos entre um pastor e seus paroquianos em um vilarejo rural inglês. Os diálogos cobrem uma porção de tópicos, incluindo religião, moralidade e outros assuntos. (https://www.amazon.com.br/Village-Dialogues-Rowland-Hill-Sir/dp/1164106856#detailBullets_feature_div)

NT5. “Siege of Mansoul”, peça em cinco atos baseada no livro “A Guerra Santa”, de John Bunyan

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