segunda-feira, 20 de maio de 2024

Cristo Se Manifesta a Seu Povo

                                                                            

                                                       Sermão nº 29

Ministrado na manhã de domingo, 10 de junho de 1855, pelo

Rev. C. H. Spurgeon

em New Park Street Chapel, southwark

 

“Disse-lhe Judas, não o Iscariotes: Donde procede, Senhor, que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?” — João 14:22

Que Mestre bendito foi Jesus! Que familiaridade Ele permitiu que Seus discípulos tivessem com Ele! Mesmo sendo o grande e poderoso Senhor da vida e da glória, além de ser o homem de Nazaré, vejam como Ele fala a Seus discípulos, pescadores pobres e iletrados, como se fossem Seus iguais! Ele não era um dos seus dignatários, que se orgulhavam da própria dignidade — nem um daqueles religiosos cheios de formalidade, que se consideravam acima dos outros, como se de fato não fossem seus semelhantes. Ele fala a Seus discípulos como um pai a seus filhos — com mais carinho até do que um professor a seus alunos. Ele permite que eles Lhe façam perguntas simples e, ao invés de censurá-los por sua liberdade, Ele consente em responder a cada uma delas. Filipe pediu-lhe uma coisa que ninguém de bom senso, e que estivesse com Ele há tanto tempo, sequer pensaria em pedir. Ele disse: “Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta.” (João 14:8). Mas que estupidez! Como se Jesus pudesse mostrar o Pai, ou seja, mostrar Deus a Filipe! No entanto, Jesus gentilmente responde: “Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me tens conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai, como dizes tu: Mostra-nos o Pai? Não crês que eu estou no Pai e que o Pai está em mim?” (João 14:9,10). E aí vem Judas (não o Iscariotes) e também faz uma pergunta muito simples — algo que ele não precisava ter perguntado; e Jesus, ao invés de repreendê-lo, simplesmente muda de assunto e, com toda sabedoria, deixa a pergunta sem resposta, porque Seu silêncio o ensinaria muito mais do que qualquer explicação.

É preciso observar também como o Espírito Santo age de modo específico para que um homem bom não seja confundido com um perverso. Ele diz, “Judas (não o Iscariotes)”. Havia dois discípulos com o mesmo nome, Judas: o que traiu nosso Senhor e o que escreveu a epístola de Judas, o qual realmente tinha de ser chamado de Judas. Algum de nós, ao ler o nome Judas, poderia dizer: “Ah! Quem fez a pergunta foi aquele traidor do Judas Iscariotes!”. No entanto, o Espírito Santo não permitiria que tal engano fosse cometido. Isto mais uma vez nos ensina que não é sem sentido desejar que nosso nome passe para a posteridade. Todos devemos desejar ter um caráter imaculado; devemos querer que a promessa seja cumprida: “A memória do justo é abençoada” (Provérbios 10:7). Eu não gostaria que meu nome fosse confundido com o de um criminoso que se enforcou. Não gostaria que meu nome fosse escrito, nem mesmo por engano, no rol da infâmia. Por mais que agora eu possa ser mal interpretado, um dia se saberá o quanto tenho me esforçado pela glória do meu Mestre, e Deus dirá: “Judas (não o Iscariotes)”. Afinal, o homem não era um impostor.

Mas vamos deixar Judas de lado e passemos a examinar nosso texto. Nele há duas coisas: primeira, um fato importante; segunda, uma pergunta interessante, “Donde procede, Senhor, que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?”. Eis um fato e uma pergunta sobre ele.

I Assim, em primeiro lugar, vem UM GRANDE FATO: Jesus Se revela a Seu povo, mas não ao mundo. O fato está implícito na pergunta. E, mesmo que a Escritura não tivesse feito essa declaração, muitos de nós têm a Escritura gravada no seu coração — a Bíblia da experiência — a qual nos ensina que isso é verdade. Pergunte a qualquer cristão se, antes de ser regenerado, ele teve alguma manifestação particular e maravilhosa de Seu Senhor e Salvador Jesus Cristo como tem agora. Leia a biografia dos grandes santos da história e você encontrará registros de como Jesus Se agradou, de forma muito especial, em falar às suas almas, desvelando as maravilhas da Sua pessoa e deixando-os vislumbrar as glórias incomparáveis da Sua obra. Sim, para que suas almas se enchessem de felicidade a ponto de se imaginarem no céu, mesmo que, embora bem perto, ainda não estivessem lá — pois quando Jesus Se manifesta a Seu povo é o início do céu na terra, é um paraíso em embrião, é o começo da bem-aventurança do glorificado; sim, e será a consumação dessa bem-aventurança quando Jesus Se revelar perfeitamente ante os olhos admirados de todo o Seu povo e eles forem como Ele, e O virem como Ele é.

Portanto, nesta manhã, vamos falar algo a respeito dessa manifestação especial que Jesus concede a Seu povo, e somente a ele. Faremos quatro observações. Em primeiro lugar, falaremos alguma coisa sobre os favorecidos — “a nós”, “não ao mundo”. Em segundo lugar, sobre as ocasiões especiais — “que estás para”. Jesus não estava manifestando a Si mesmo naquele exato momento, mas “estava para” Se manifestar. Há ocasiões especiais. Em terceiro lugar, faremos algumas observações sobre essa maravilhosa manifestação — “estás para manifestar-te a nós e não ao mundo”. E, em quarto lugar, nos deteremos um pouco mais falando sobre os efeitos que essa manifestação produzirá na nossa alma.

1. Primeiramente, então, quem são as pessoas favorecidas a quem Jesus Cristo Se manifesta? “Donde procede, Senhor, que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?”. O texto parece indicar que as pessoas a quem Jesus Cristo Se manifesta de forma tão maravilhosa não pertencem ao mundo. Nesse caso, quem são elas? Tenho certeza de que seria difícil para você ou para mim distingui-las; por isso, vou usar um exemplo fictício e pedirei a algum espírito de um mundo desconhecido para indicar tais indivíduos. “Ó espírito! Eu te dou uma missão. Há um determinado número de pessoas neste mundo que não pertence a ele: vai, descobre-as, volta e dize-me o que encontraste.” Damos tempo ao espírito; ele voa pelo mundo afora e retorna. Ele diz: “Vi uma grande multidão; todos seguiam pelo mesmo caminho, com um único objetivo; eu os vi pisoteando uns aos outros na fúria da sua perseguição; eu os vi correndo atrás de alguma coisa que cada um desejava para si; mas, no meio da multidão, vi algumas pessoas marchando em sentido oposto e, em meio a muitas cotoveladas e forte oposição, iam exatamente na direção contrária. Vi escrito na testa daqueles que seguiam com a multidão a palavra ‘eu’; contudo observei que quem ia na direção contrária tinha inscrito acima das sobrancelhas: ‘Cristo’; e eu os ouvi dizendo para si mesmos: ‘Para nós o viver é Cristo, para nós o morrer é lucro’ (Fp 1.21). Observei aquelas pessoas, vi-as persistindo em seu caminho apesar de todo desafio, indo contra toda oposição. Fiquei me perguntando para onde iam e vi que adiante delas havia um postigo, onde estavam escritas as palavras: ‘Misericórdia para o principal dos pecadores’. Eu as vi entrar ali e as observei enquanto corriam ao longo dos muros da salvação e, acompanhando-as até o seu destino, eu as vi, finalmente, cruzar os braços na morte, fechar os olhos com tranquilidade, enquanto eu ouvia anjos cantando um réquiem e uma voz gritando: ‘Benditos aqueles que morrem no Senhor’. Com certeza, essas devem ser as pessoas que não são do mundo”. “Falaste bem, ó espírito, são elas. O que viste delas, ó espírito? Elas se reuniam e se congregavam, ou se misturavam com o resto da humanidade?”. “Ora”, disse ele, “notei que, uma vez por semana, elas se reuniam em certo lugar que chamavam a Casa de Deus; eu as ouvi entoando canções de louvor e ajoelhadas reverentemente, não só naquele lugar, mas também quando estavam sozinhas; testemunhei seus lamentos, suas lutas e suas agonias; sabia que eram pessoas de oração e amavam a Deus. Eu as vi em reuniões secretas, para dizer o que o Senhor tinha feito por suas almas; reparei que não eram encontradas entre os ímpios. Percebi que não entravam em certas casas. Em uma determinada esquina ficava uma casa bem iluminada, com muitas lâmpadas, e na sua frente havia alguns sinais místicos da Cabala, marcas de males e calamidades. Ali vi gente perversa, cambaleando de um lado para outro; observei sua embriaguez. No entanto, vi como o cristão tapou os olhos com as mãos e passou por aquele lugar. Vi também outro antro do inferno, onde havia muitas coisas que não deveriam ser vistas — gritos de prazer e euforia, mas não cânticos sagrados. Olhei ao redor e não vi uma única daquelas benditas pessoas; elas não se detinham no caminho dos pecadores, não se assentavam na roda dos escarnecedores, nem andavam no conselho dos ímpios (Salmo 1). Reparei que, como frutos da mesma videira — eles encontravam seus companheiros e andavam juntos — construíam seu ninho na mesma árvore e faziam sua habitação debaixo do mesmo teto.” “Sim”, diz o espírito, “ouvi um deles exclamar: ‘o que profere mentiras não permanecerá ante os meus olhos’ (Salmos 101:7). Eu o vi expulsar o mentiroso da sua casa e dizer ao devasso para afastar-se. Eu os observei; vi que eram pessoas distintas e separadas, e disse: certamente é sobre elas que está escrito: ‘eis que é povo que habita só e não será reputado entre as nações’” (Números 23:9). Bem, espírito, tua descrição é correta. Fico me perguntando quantas delas há; pessoas a quem Deus Se revelará, e não ao mundo. Essas pessoas não são mundanas em seus princípios, suas ações, suas conversas, seus desejos, seus objetivos e finalidades. Assim são elas. Não me interessa a graça comum ou as manifestações universais; sempre que eu puder, vou proclamar a livre graça a pessoas específicas, enquanto estiver escrito: “que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo”.

         2. Nossa próxima observação é sobre as ocasiões especiais. As pessoas altamente favorecidas nem sempre veem Cristo da mesma forma. Nem sempre elas mergulham na luz do Seu semblante. Há tempos especiais em que Deus Se agrada de Se revelar a Seu povo. Esses períodos, geralmente, são de dois tipos: tempos de dever e tempos de provação. Nunca vi um cristão preguiçoso ou indiferente ter uma manifestação de Jesus Cristo; nunca ouvi alguém que só se preocupa com seus negócios falar muito sobre manifestações espirituais. Pobre alma, sua religião é suficiente para salvá-lo, mas não o suficiente para fazê-lo perceber as bênçãos espirituais e especiais de um cristão. Para quem faz pouco por Cristo, Cristo também faz pouco por ele em termos de favores especiais. Aqueles que se sentam, cruzam os braços, comem, bebem e ficam satisfeitos, não são os que entram na câmara secreta do Altíssimo e desfrutam da presença do Todo-Poderoso. Os mais zelosos por seu Mestre compreendem muito melhor a Sua bondade e desfrutam as bênçãos mais ricas do Senhor. Pergunte a um cristão quando ele é mais feliz e ele lhe dirá que é quando está trabalhando. Eu sei porque é assim comigo. Ainda não tentei descansar e, sem dúvida, encontrarei algo para fazer além do descanso. Quando passo um dia sem pregar o nome do meu Mestre, sinto que não fiz o que deveria ter feito, e não me sinto satisfeito até estar novamente atrás do púlpito. Quando trabalhamos com mais afinco, sentimos que a graça é mais abundante; quando cavamos mais fundo, alcançamos água mais doce. Para quem trabalha mais o pão fica mais macio; e acredite, gotas de suor são uma bênção para amolecer o pão seco. O trabalho árduo por Cristo sempre trará felicidade genuína. Para Issacar, “jumento de fortes ossos, de repouso entre os rebanhos de ovelhas” (Gn 49:14-15) — homem que faz pouco — a promessa é: “O açoite é para o cavalo, o freio, para o jumento, e a vara, para as costas dos insensatos.” (Provérbios 26:3). O homem indolente deve ser fustigado; mas aquele que serve a Deus pode se regozijar, pois Deus o tratará com as delícias reais (Gn 49.20); Ele lhe dará a sua porção misturada com mel; Ele dirá: “Tomei o teu pão e mergulhei-o no meu próprio prato; toma-o, come-o, pois tu és aquele que trabalha na minha própria vinha”. As ocasiões especiais serão nos tempos de dever, ou, como eu disse, nos tempos de provação, pois não podemos supor que, quando um cristão é afastado das suas obrigações, ele não está fazendo nada. Não pense que sua enfermidade é um desperdício. Não é só para o seu próprio benefício, mas você realmente serve a Deus no seu sofrimento, se o suportar com paciência. Você conhece aquele texto que diz que “Nós preenchemos o que resta das aflições de Cristo em nossa carne, a favor do Seu corpo, que é a igreja”? (Cl. 1.24). O corpo místico de Cristo é composto da cabeça e de todos os membros. A cabeça já teve o seu sofrimento — já acabou; mas o corpo tem certa porção a suportar também; e, quanto mais você sofre, menos sofrimento há para outra pessoa. Há certa quantidade de provação que toda a igreja tem de suportar antes de chegar ao céu; pois, assim como Cristo foi afligido, também todo o Seu povo deve ter comunhão com Seus sofrimentos. Há um cálice cheio de mistura, e o justo deve beber dele; todos precisamos beber um gole; mas, se algum de nós puder beber um pouco mais, e fazê-lo com paciência, haverá muito menos para os outros. Portanto, não vamos nos queixar, pois é nos momentos de tribulação que aprendemos mais de Jesus. Antes de Israel guerrear contra Amaleque, Deus lhes deu água da rocha e lhes enviou o maná do céu; e, antes de Jacó se encontrar com Esaú, o anjo de Deus lutou com ele no vau do Jaboque e hostes de anjos o encontraram em Maanaim. Antes da tribulação, geralmente se espera um tempo de alegria; e, quando essa época acaba, você pode dizer: “Agora deve vir alguma aflição, pois já recebemos muitas alegrias”. Mas, quando a tribulação vier, regozije-se nela, pois nossos problemas geralmente são proporcionais às nossas alegrias, e nossas alegrias costumam ser proporcionais aos nossos problemas. Quanto mais amargo for o vaso da aflição, mais doce será o cálice da consolação; quanto mais pesada a tribulação neste mundo, mais brilhante a coroa de glória no futuro. Na verdade, no hebraico, a mesma palavra significa tanto “peso” quanto “glória”. Um peso de tribulação é uma glória para o cristão, pois é uma honra para ele; e a glória é um peso, pois muitas vezes o põe de joelhos e o faz prostrar-se aos pés do seu Mestre. Pergunto a meus irmãos e irmãs quando foi que sentiram mais a presença de Jesus — quando andavam pelo jardim das delícias ou quando sentiam o amargor do remédio na boca? Suas experiências com Jesus não foram melhores quando estavam sendo assaltados pela dor do que quando estava tudo bem? Quando o celeiro está repleto, o tonel de azeite estourando e o vinho transbordando, é aí que muitas vezes o santuário de Deus é abandonado e o gabinete da Sua benevolência quase esquecido. No entanto, quando a figueira não floresce e não há rebanhos no aprisco, então Deus Se aproxima de Seus filhos e revela mais de Si a eles.

         3. A próxima consideração é a própria manifestação extraordinária. Jesus manifesta a Si mesmo. Existem muitas manifestações de Deus a Seus filhos, mas esta é a mais preciosa de todas. Há manifestações que não queremos ter novamente. Por exemplo, aquela sensação horrível da nossa pecaminosidade ao sermos regenerados: nós deixamos isso com Deus, mas não oramos para sentir de novo. Mas há uma manifestação que gostaríamos de ter todos os dias. “Eu me manifestarei a ele”. E Ele o faz de diferentes formas. Há tempos tenho experimentado uma manifestação de Seus sofrimentos no Getsêmani; há meses venho meditando sobre as Suas agonias; parece até que estou comendo as ervas amargas que crescem junto ao ribeiro do Cedrom e bebendo das suas águas escuras. Às vezes subo os degraus sozinho, coloco-me na posição em que Jesus estava e penso que poderia dividir com Ele os Seus sofrimentos. Para mim, é como se visse as gotas de sangue do Seu suor caindo no chão. É uma visão tão doce do meu Salvador em Suas agonias, que espero um dia ser capaz de segui-lo ainda mais e vêlO no Calvário, e ouvir Seu grito de morte “Eli, Eli, lamá sabactâni?” (Mateus 27:46). Sei que alguns aqui já viram Jesus com tanta clareza com os olhos da fé que foi quase como se O estivessem vendo com seus próprios olhos. Puderam ver seu Salvador pendurado na cruz. Acharam que estavam vendo a própria coroa de espinhos em Sua cabeça e as gotas de sangue escorrendo por Sua face; ouviram-nO gritar; viram Seu lado ensanguentado; viram os cravos e correram para tirá-los e envolvê-lO em linho e especiarias, carregaram Seu corpo e o lavaram com lágrimas e o ungiram com unguento precioso. Em outras ocasiões, tiveram uma manifestação de Cristo naquilo que Ele lhes deu. Viram o tremendo sacrifício que Ele ofereceu, a fumaça do braseiro subindo aos céus e todos os seus pecados sendo ali queimados; viram claramente a Sua retidão justificadora sendo-lhes imputada e, ao olharem para si mesmos, disseram: 

Estranhamente, minh’alma, foste vestida

Pela gloriosa Trindade Santa

Em doce e suave harmonia

Tudo que há em mim canta

Há ocasiões, também, em que sentem grande alegria ante a exaltação de Cristo demonstrada em Seus méritos. Vocês O veem triunfante, com um pé sobre Satanás e outro sobre a morte. Podem contemplá-lO marchando para o céu à frente das resplandecentes hostes celestiais; e, no devido tempo, irão ter uma manifestação na própria alma, dAquele que se assentou no trono do Pai até seus inimigos serem postos por estrado dos Seus pés. (Hebreus 10:13). E a fé, às vezes, ultrapassa de tal forma as asas do tempo, que podemos trazer o futuro para o presente e ver aquela grande e suntuosa aparição do Rei assentado no grande trono branco, empunhando o Seu cetro (Apocalipse 20.11), quando Seus santos estarão diante dEle entoando o seu louvor. Se fosse um pouco mais além, eu seria acusado de fanatismo, e talvez eu seja mesmo fanático; mas, mesmo assim, quero acreditar que há ocasiões em que o cristão vive às portas do céu. Se não adentro um centímetro os portões de pérola, não estou aqui. Se não sinto o cheiro dos incensários dos glorificados e ouço a música de suas harpas, acho que não estou vivo. Há ocasiões, também, de alegria estática, quando escalo as montanhas mais altas e ouço sussurros vindos do trono. Você já teve esse tipo de manifestação? Se não teve, não vou condená-lo, mas creio que a maioria dos cristãos as têm e, se forem comprometidos com o trabalho do Mestre e estiverem em grande sofrimento, é certo que terão. Esse tipo de coisa não é dado a todos, só para alguns, mas quem tem sabe qual é o significado da sua fé. Há poucos dias eu estava lendo sobre o Sr. Tennant (1). Certa noite ele estava pronto para pregar, quando pensou em dar um passeio. Enquanto caminhava pelo bosque, ele sentiu uma manifestação tão poderosa da presença de Cristo que teve de se por de joelhos, e não conseguiram achá-lo no momento em que ele tinha de pregar. Ele continuou ali por horas, sem saber se estava no corpo ou fora dele e, quando o acordaram, seu rosto brilhava e ele parecia alguém que estivera com Jesus. Ele disse que nunca se esqueceria daquele dia, daquele período de comunhão, quando, embora não pudesse ver a Cristo, Ele estava lá, tendo intimidade com ele, coração com coração, da forma mais doce. Deve ter sido uma demonstração maravilhosa. Você deve conhecer algo a esse respeito. Caso contrário, não terá avançado muito na carreira espiritual. Que Deus o ensine mais e o leve ainda mais fundo! “Conheçamos e prossigamos em conhecer ao Senhor”. (Oseias 6.3)

         4. Portanto, quais serão os efeitos naturais dessa manifestação espiritual? O primeiro será a humildade. Se alguém diz que “tudo o que faz é espiritual e, por isso, ele é uma boa pessoa”, é porque não há nada de espiritual nele; pois “O Senhor atenta para os humildes; os soberbos, ele os conhece de longe” (Salmo 138.6). Ele não deseja se aproximar para se relacionar com eles, e nunca lhes fará visitas de amor. O segundo será a  felicidade, pois feliz é aquele que vive perto de Deus. Além disso, há também a santidade. Quem não tem santidade é porque nunca teve esse tipo de manifestação. Algumas pessoas dizem muitas coisas; mas não acredite nelas, a menos que suas ações correspondam ao que elas dizem. “Não vos enganeis: de Deus não se zomba”. (Gálatas 6.7) Ele não concederá Seus favores aos perversos; pois “Ele não rejeita ao íntegro, nem toma pela mão os malfeitores” (Jó 8.20). Portanto, haverá três efeitos da proximidade com Jesus: humildade, felicidade e santidade (2). Que Deus nos conceda todos eles!

         II Agora, passemos ao segundo ponto: UMA PERGUNTA INTERESSANTE. Judas disse: “Donde procede, Senhor, que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?”. O que esta pergunta sugere e como ela foi respondida.

Primeiramente, a pergunta sugere ignorância. O pobre Judas deve ter pensado: “Como Jesus pode Se manifestar a nós e não ao mundo?. Ora, se Ele vier novamente, o mundo O verá tão bem quanto nós. Como Ele fará? Suponhamos que Ele venha numa carruagem de fogo ou numa coluna de nuvem: se nós O virmos, o mundo também O verá”. E, na sua ignorância, ele perguntou: “Como pode ser isso, Senhor?”.  Pode ser também que a pergunta tenha sido feita em razão da sua grande bondade: “Ah, Senhor, como pode ser que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?”. Ele era ligeiramente arminiano, queria  que todos tivessem a mesma coisa, e disse: “Como é que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?”. “Ó Senhor, gostaria que fosse para todos. Sou benevolente”. Ah, meu amado, não precisamos ser mais benevolentes que Deus. Alguns dizem: “Se todos os pecadores fossem salvos, isso glorificaria ainda mais a Deus”. Mas Deus, com certeza, sabe muito melhor que nós quantos pecadores irão glorificá-lO; temos de deixar o número por conta dEle e não nos metermos naquilo que não é da nossa conta. A Escritura diz: “todo insensato se mete em rixas” (Provérbios 20.3), e insensato é aquele que se mete naquilo que não lhe diz respeito. Mas, seja como for, Judas disse: “Donde procede, Senhor, que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?”. Pode ser, ainda, que ele tenha feito a pergunta por amor ao Mestre. “Ó, Senhor, achei que virias e serias Rei sobre todos, mas parece que serás apenas sobre alguns”. Ele queria que o domínio de Cristo fosse universal. Queria ver o trono do Salvador em cada coração. Desejava que todos se curvassem diante Dele, e esse desejo era justo e louvável. Por isso, ele perguntou a Cristo: “Como pode ser, Senhor, que não conquistarás tudo?”. Jesus nunca respondeu à pergunta. Foi uma pergunta louvável, mas só teremos a resposta quando chegarmos lá em cima; se é que teremos. A pergunta pode ter sido feita, ainda, por admiração. “Oh”, disse ele, “Como  é que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?”. Ele poderia ter dito de si mesmo: “O que sou eu? E o irmão Pedro? Apenas um pescador. E João? Também um pescador. E quanto a Mateus? Ele era publicano e enganou uma porção de gente. E Zaqueu? Quantas casas de viúva ele não devorou?”. E, mesmo assim, o senhor diz que “estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?”. E quanto a Maria, a pecadora — o que ela fez para que Te manifestes a ela? E, Maria Madalena, então, que tinha sete demônios? “Senhor, donde procede que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?”. Não é essa pergunta que todos fazemos a nós mesmos?

Pausa, minh’alma, adora e admira;

Pergunta: “Por que por mim tanto amor?”

 E a única resposta que podemos dar é: 

A graça me colocou entre os membros

Da família do Salvador

Venha e me pergunte: “Por que sou cristão, senhor? Por que Deus me ama?”. Devo lhe dizer que é “porque Ele o ama”. “Mas, por que Ele me ama?”. A única resposta que posso lhe dar é “porque Ele quis amá-lo”. Pois está escrito: “Ele terá misericórdia de quem Lhe aprouver ter misericórdia”. Certamente poderíamos nos admirar e dizer: “Por que, Senhor, por que Te manifestas a nós, e não ao mundo?”. “Ora”, alguns diriam, “porque vocês são melhores que o mundo; é por isso. Com certeza, sua natureza é melhor que a do mundo!”. Natureza melhor que a do mundo? Ora, alguns de nós éramos o pior tipo de gente. Alguns aqui se entregavam a todo tipo de vício, e ficariam envergonhados só de mencionar os pecados que cometeram. No entanto, Deus Se manifesta a vocês e não ao mundo. A graça soberana de Deus sempre será motivo de admiração.

         Contudo, qual é a resposta? Por que Cristo Se manifesta a algumas pessoas e não ao mundo? A pergunta não foi respondida; pois era irrespondível. Nosso Senhor prosseguiu, dizendo: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra; e meu Pai o amará, e viremos para ele e faremos nele morada”. Ele não disse a Judas a razão pela qual Ele Se manifestaria a eles e não ao mundo. Muitas vezes faço essa pergunta a mim mesmo: “Você diz que Deus Se manifesta a algumas pessoas e não a outras — pode me dizer por quê?”. Bem, Cristo não disse, e não se espera que eu diga mais do que Ele disse. No entanto, minha pergunta é: você tem alguma objeção quanto a isso? O que Ele disse não é suficiente? Ele declarou que “tem direito sobre a massa, para do mesmo barro fazer um vaso para honra e outro, para desonra” (Romanos 9.21), e se alguém O critica, Ele diz: “Quem és tu, ó homem? Porventura, pode o objeto perguntar a quem o fez: Por que me fizeste assim?”. Que pessoa perguntaria a seu pai: “Por que você me concebeu?”. “Será que não sou Deus e não posso fazer o que quiser com aquilo que é meu?”. Mas o questionador diz, “não é injustiça da parte de Deus manifestar-Se a uns e não a outros?”. Deus responde: “Tu me acusas de injustiça? A respeito de quê? Eu te devo alguma coisa? Traga-me a conta e eu te pagarei. Será que te devo graça? Então, a graça não seria graça; seria dívida. Se Eu te devo graça, tu a terás.” “Meu irmão também não deveria tê-la? Ele é tão mau quanto eu”. E o Rei diz: “Disponho daquilo que é meu da forma como me apraz”. Se dois mendigos estão à tua porta, não tens o direito de mandar um embora e dar ao outro alguma coisa? Não posso fazer o mesmo com aquilo que é meu? “Terei misericórdia de quem me aprouver ter misericórdia e compadecer-me-ei de quem me aprouver ter compaixão”. “Ora”, continua o questionador, “Suponha que eu peça e suplique por alguma coisa; eu a terei?”. “Sim, terás”, diz Deus, pois assim diz a promessa: “todo o que pede recebe; o que busca encontra; e, a quem bate, abrir-se-lhe-á.” (Mateus 7.8). “Mas não a terei, a menos que esteja escrito que a terei”. “Sim, mas se pedires é porque está escrito que pedirás; os meios são ordenados da mesma forma que os fins; tu não podes pedir a menos que eu tenha te inclinado a isso. Portanto, não me fales de injustiça. Eu te pergunto se há uma passagem sequer na minha palavra onde eu tenha prometido dar graça a todos. Pobre desprezível! Não te rebelaste contra mim? Teu destino é ir para o inferno para sempre. Será que não mereces?”. “Sim, eu mereço”. “Então, quem és tu que te atreves a me acusar de injustiça? Se tenho cinquenta homens no cadafalso para serem enforcados, será que não tenho o direito de perdoar a quem eu quiser, e punir todos os demais? Não aceitarás isso?”. “Não”, diz o contestador, “nunca aceitarei”. “Então, meu amigo, não esperes ter salvação até que o aceites”. Alguém aqui se opõe à soberania divina? Esta é uma doutrina difícil; e se não é aceita, isso demonstra que a pessoa ainda é dominada pelo orgulho. Se pregarmos apenas a soberania divina, alguns dirão: “Esse sujeito é antinomiano e hipercalvinista”. Isso é calúnia e merece o nosso desprezo; e lembramos que a acusação cai muito bem contra o próprio caluniador. Antinomiano é aquele que se rebela contra a soberania divina. No entanto, quem aceita esta doutrina irá ao trono, dizendo

Talvez Ele aceite minha súplica

Talvez Ele ouça minha prece

Mas, se tiver de morrer, rogarei

E morrerei apenas ali.(3)

         E agora, amigos, o que me dizem? Sei o que alguns diriam. Eles diriam em alto e bom som: “Quanta besteira! Cremos que a religião é muito boa para manter as pessoas na linha; mas quanto a essas manifestações e êxtases, não acreditamos em nada disso.” Muito bem, meus amados, acabei de demonstrar a veracidade daquilo que o texto diz. Deus não Se manifesta ao mundo e, se alguém não tem nenhum tipo de manifestação é uma prova para si mesmo de que ele é do mundo. No entanto, temos aqui alguns cristãos que dizem, “Não conhecemos muito sobre essas manifestações.” Sim, eu sei que não conhecem. Nos últimos anos, a igreja tem entrado num estado de desnutrição; Deus tem enviado pouquíssimos pregadores que falam sobre essas verdades especiais, e a igreja tem se tornado cada vez mais anêmica. Não sei dizer o que seria de nós se ainda não houvesse um pouco do sal de Deus espalhado sobre a massa em decomposição. Alguns de nós têm vivido nos lugares baixos, quando poderiam estar nos lugares altos. Ficam no vale de Baca (Salmo 84.6, ACF, ARC, NVI), quando poderiam muito bem estar vivendo no topo do Carmelo. Eu não gostaria de morar no vale se pudesse construir minha casa no alto das montanhas. Ó, cristão! Levanta-te! Que os teus pés sejam iluminados uma vez mais. Que cruzem ligeiros a planície turbulenta, cheguem ao Calvário e subam até o seu cume; e, de lá, eu te digo que poderás ver para além da planície até o próprio céu. E, se puderes alcançar o cimo de Pisga, cantarás,

Lindos campos para além da enchente

Revestidos de grama verdejante

E seu espírito será como os carros de Amminadab (4). Busquem, meus irmãos, essas manifestações espirituais, se nunca as tiveram; e, se já tiveram o privilégio de desfrutá-las, procurem ter mais; pois, o que há de melhor para tornar a vida feliz e prepará-lo para o céu do que essas revelações de Jesus Cristo? Ah! Do fundo do meu coração, sinto pena daqueles que desprezam daquilo que desfrutamos. Cuidado para que a primeira manifestação que tiverem de Cristo não seja quando Ele for revelado em chamas de fogo, vingando-se de Seus inimigos, pois Ele não estará Se revelando em misericórdia, mas em justiça. Que Deus lhe conceda graça para que você O veja no Calvário antes vê-lO no Sinai, para contemplá-lo como o Salvador dos pecadores antes de vê-lO como o Juiz dos vivos e dos mortos. Que Deus os abençoe e os conduza sempre a essas manifestações! Amém.


Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza

Notas do tradutor:

(1) 1829-1905, famoso político e orador inglês da época de Spurgeon e George Whitefield

(2) No original: “all beginning with the letter h—humility, happiness, and holiness” — “todas começando com a letra”, o que não é possível ser traduzido para o português.

(3) cf. Ester 4.16

(4) cf. Cantares 6.12, Versão Católica, a única versão em português que traz o nome


sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

10 de fevereiro, Devocional Matutina

 “sei o que é ter fartura”

Filipenses 4:12 (NVI)

Muitas pessoas que sabem “como passar necessidade” ainda não aprenderam “o que é ter fartura”. Quando colocadas no topo de um pináculo, ficam zonzas e ficam prestes a cair. O cristão muitas vezes desonra mais sua confissão em tempos de prosperidade do que em tempos de adversidade. É perigoso ser próspero. O cadinho da adversidade é uma prova bem menos rigorosa para o cristão do que o crisol da prosperidade. Ó, quanta pobreza de alma e negligência das coisas espirituais foram provocadas pelas próprias misericórdias e dádivas de Deus! No entanto, essa não é uma questão de necessidade, pois o apóstolo nos diz que ele sabia como ter fartura. Quando tinha muito, ele sabia como usá-lo. A graça abundante permitiu que ele tivesse prosperidade abundante. Quando seu navio estava cheio, ele tinha muito lastro, por isso flutuava em segurança. É preciso mais do que a habilidade humana para segurar com mão firme o cálice transbordante da alegria material; e Paulo aprendeu a segurá-lo, pois declara, “Aprendi o segredo de viver contente em toda e qualquer situação, seja bem alimentado, seja com fome”. Saber como ter fartura é uma lição divina, pois quando os israelitas a tiveram, a ira divina desceu sobre eles enquanto a carne ainda estava em sua boca (Nm 11.33). Muitos pedem misericórdias para satisfazer a concupiscência do seu próprio coração. Fartura de pão com frequência causa derramamento de sangue, e isso traz devassidão de espírito. Quase sempre, quando recebemos muitas misericórdias providenciais de Deus, acabamos desfrutando menos da Sua graça e tendo pouca gratidão pelas dádivas recebidas. Ficamos empanturrados e nos esquecemos de Deus: satisfeitos com a terra, não nos importamos em dispensar o céu. Estejam certos de que é mais difícil saber como ter fartura do que saber como passar necessidade — tão desesperada é a tendência da natureza humana ao orgulho e ao esquecimento de Deus. Cuidem para pedir em suas orações que Deus os ensine a “ter fartura”.

“Não permitas que as dádivas concedidas pelo Teu amor

Afastem de Ti os nossos corações”

Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Copiosa Redenção

Sermão nº 351

Ministrado em Exeter Hall, Strand, Londres, Inglaterra

Pelo Rev. C. H. Spurgeon

“pois no Senhor há... copiosa redenção”. — Salmos 130:7

Redenção é uma palavra que tem alegrado muitos ouvidos desde que ainda nem havia o som dos carrilhões celestiais. Além de qualquer uso teológico, a palavra é extremamente doce e melodiosa para muitos corações. Nos dias em que a pirataria ainda era praticada ao longo da costa da África, quando nossos súditos cristãos eram capturados por corsários e levados cativos, era possível compreender como a alma oprimida do escravo algemado, acorrentado ao remo da sua galera, alegrava-se com a esperança de uma possível redenção. Seu senhor cruel, que o obrigara a ser sua propriedade, não o emanciparia de bom grado. No entanto, ao surgir o rumor de que, em alguma nação distante, uma soma de dinheiro fora levantada para comprar a liberdade dos escravos — que algum rico mercador dedicara parte de seus bens para reaver seus compatriotas; que o próprio rei, assentado em seu trono, prometera franca redenção para que os cativos entre os mouros pudessem retornar para casa (NT1), suponho que quando a palavra redenção soasse em seus ouvidos as horas corressem alegremente e a tristeza da sua labuta fosse amenizada. Assim também com nossos súditos e compatriotas que um dia foram escravos nos assentamentos das colônias da Índia Ocidental. Podemos imaginar que, para seus lábios, a palavra redenção deve ter soado como uma linda melodia. Saber que a nobre nação britânica tinha levantado vinte milhões da importância necessária para sua redenção deve ter soado tão doce quanto o badalar dos sinos a um jovem noivo no dia do seu casamento, e que, em determinada manhã, os grilhões seriam quebrados e eles não mais teriam de sair para as plantações debaixo do sol escaldante levados pelo chicote; que eles não seriam mais propriedade de alguém e ninguém mais teria posse sobre o seu corpo e sobre a sua alma. Será que é possível imaginar sua felicidade pela liberdade recém-conquistada, quando o sol nasceu naquela gloriosa manhã, quando a emancipação foi proclamada através dos mares e toda a terra ficou em liberdade? Ah, quantos sonetos há nessa única palavra, redenção!

Ora, para aqueles que venderam por nada sua gloriosa herança; que foram levados como escravos para os domínios de Satanás; que estão acorrentados pelos grilhões da culpa e gemem sob ela; que são açoitados pelo chicote da lei de Deus — o que as novas da redenção têm sido para os escravos e cativos será também para vocês nesta noite. Ela animará sua alma e alegrará seu espírito, e ainda mais quando este rico adjetivo for associado a ela — copiosa redenção.

Esta noite vou considerar a questão da redenção e, em seguida, observar o adjetivo atrelado a ela: “copiosa redenção”.

I. Sendo assim, em primeiro lugar vamos considerar a questão da REDENÇÃO.

Vou iniciar fazendo uma pergunta: O que foi que Cristo redimiu? E, para que saibam quais são os meus pontos de vista sobre este assunto, vou dizer, antes de qualquer coisa, que considero esta uma doutrina autoritativa, consistente com o senso comum e anunciada pelas Escrituras, ou seja, que tudo quanto Cristo redimiu, Ele realmente redimiu. Vou começar, então, com este princípio, que tudo quanto Cristo redimiu, Ele realmente redimiu. Considero uma afronta à razão, e ainda mais à revelação, dizer que Cristo teve de morrer para comprar o que Ele nunca poderia ter; considero quase uma blasfêmia afirmar que o propósito da morte do nosso Salvador possa algum dia ser frustrado. Todo e qualquer propósito que Cristo teve ao morrer — nós afirmamos isso como uma verdade muito bem estabelecida e que deve ser admitida por todas as pessoas razoáveis — tal propósito, com certeza, Ele alcançará. Não vejo como o propósito de Deus em qualquer coisa possa ser frustrado. Sempre pensamos em Deus como tão superior às Suas criaturas que, quando Ele propõe fazer alguma coisa, com certeza ela será feita. E, se tenho o que me foi concedido, não posso sequer por um momento permitir a alguém imaginar que Cristo tenha derramado Seu sangue em vão; que Ele tenha morrido com intenção de fazer alguma coisa, mas não tenha conseguido fazê-la; que Ele tenha morrido com pleno propósito em Seu coração, e com a promessa da parte de Deus de que receberia algo em troca de Seus sofrimentos, e ainda assim não tenha conseguido alcançá-lo. Para começo de assunto, e penso que qualquer pessoa que pondere um pouco sobre essa questão, e verdadeiramente a leve em consideração, entenda desta forma — é imperativo que o propósito de Cristo em Sua morte seja cumprido, e que todo o desígnio de Deus seja alcançado. Eu creio, portanto, que a eficácia do sangue de Cristo não conhece outro limite senão o propósito de Deus. Creio que a eficácia da expiação de Cristo é tão grande quanto Deus quis que ela fosse e que aquilo que Cristo redimiu é precisamente aquilo que Ele tinha intenção de redimir e exatamente aquilo que o Pai decretou que Ele redimisse. Assim sendo, não posso, nem por um segundo, dar crédito à doutrina que diz que todos os homens são redimidos. Alguns podem defendê-la com unhas e dentes, como sei que o fazem, até mesmo teimando que ela é parte fundamental da doutrina da revelação. Não importa, este é um país livre. Eles podem defender sua opinião, mas devo dizer-lhes solenemente que estou convicto de que essa doutrina não pode ser sustentada quando o assunto é considerado com seriedade, pois acreditar em redenção universal leva à conclusão blasfema de que o propósito de Deus foi frustrado e que Cristo não recebeu aquilo pelo que morreu. Se, portanto, eles podem acreditar nisso, podem acreditar em qualquer coisa; e não vou me desesperar ao vê-los desembarcar em Salt Lake (NT2), ou em qualquer outra região onde o entusiasmo e a credulidade podem florescer sem os obstáculos do ridículo ou da razão.

Partindo, portanto, desse pressuposto, vou lhes dizer o que acredito, de acordo com a sã doutrina e a Sagrada Escritura, que Cristo realmente redimiu. A essência da Sua redenção é esta: Ele redimiu muitas coisas: Ele redimiu a alma do Seu povo; Ele redimiu o corpo do Seu povo; Ele redimiu a herança original que foi perdida em Adão; e, por último, Ele redimiu o mundo, no sentido de que o mundo finalmente será Dele.

Cristo redimiu a alma de todas as pessoas que serão salvas. Ou, nos dizeres de um calvinista, Cristo redimiu os Seus eleitos; mas, uma vez que não sabemos quem são os eleitos até que sejam revelados, vamos fazer uma pequena alteração e dizer que Cristo redimiu todas as almas penitentes; Cristo redimiu a alma de todos os crentes; e Cristo redimiu a alma de todos aqueles que morrem na infância, visto que deve ser reconhecido que, todos os que morrem na infância estão inscritos no livro da vida do Cordeiro e são graciosamente privilegiados por Deus para ir imediatamente para o céu, ao invés de labutarem neste mundo cansativo.

A alma de todos aqueles que foram inscritos no livro da vida do Cordeiro antes da fundação do mundo, os quais, no devido tempo, se humilham diante de Deus, e que, no decurso de sua vida são levados a abraçar Jesus como o único refúgio da sua alma, que permanecem no caminho e, finalmente, alcançam o céu; estes, eu creio, foram redimidos, e devo afirmar, firme e solenemente, que a alma de nenhuma outra pessoa é, nesse sentido, objeto da redenção. Não defendo a doutrina de que Judas foi redimido; não posso conceber meu Salvador suportando a punição por Judas, ou, se assim fosse, Judas sendo castigado novamente. Não posso conceber que Deus primeiro exija das mãos de Cristo o castigo pelo pecado e, depois, novamente das mãos do pecador. Não posso conceber, nem por um momento, que Cristo tenha derramado Seu sangue em vão. E, embora eu tenha lido no livro de certos teólogos que o sangue de Cristo é combustível para as chamas do inferno, estremeço diante desse pensamento e o descarto como uma afirmação medonha, talvez digna daqueles que a fizeram, mas totalmente sem fundamento na Palavra de Deus. As almas do povo de Deus, sejam elas quais forem, e são uma multidão que não se pode contar — e espero sinceramente que todos vocês estejam incluídos — são efetivamente redimidas.

1. Em essência, as almas são redimidas em três sentidos. São redimidas da culpa do pecado, da punição do pecado e do poder do pecado. As almas do povo de Cristo carregam a culpa do pecado até serem redimidas; no entanto, quando a redenção é aplicada à minha alma, desse momento em diante meus pecados, todos eles, são para sempre cobertos.

No momento em que crê um pecador
E entrega sua alma ao Senhor
É imediato o seu perdão
Pois no sangue de Cristo há plena salvação

A culpa pelo nosso pecado é removida pela redenção de Cristo. Qualquer que tenha sido o pecado cometido por você, no momento em que crê em Cristo, você não só nunca será punido por ele, como sua própria culpa por tê-lo cometido será retirada. Aos olhos de Deus você deixa de ser culpado e é considerado por Ele como um crente justificado, o qual tem a justiça de Cristo sobre si; e, por isso, você pode dizer — recordando um verso que sempre repetimos —

Agora, livre do pecado posso andar
Liberto pelo sangue do meu Salvador
A Seus pés minha pode repousar
Um salvo e reverente pecador

Pela redenção de Cristo, cada pecado, cada pedacinho de culpa, cada vestígio de transgressão é efetivamente removido de todos os crentes da família do Senhor.

A seguir, observe: não somente a culpa, mas a punição do pecado também é removida. Na verdade, quando deixamos de ser culpados, deixamos de ser objeto de qualquer punição. Removida a culpa, não há mais castigo. Mas, para tornar isso mais claro, é como se fosse escrito de novo, a condenação é removida, assim como o pecado pelo qual deveríamos ser condenados. “Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus.” (Romanos 8:1). Nenhum daqueles que foram redimidos por Cristo podem ser condenados; eles nunca serão punidos por causa do seu pecado, pois Cristo já sofreu o castigo em seu lugar; por isso, eles não podem, a menos que Deus seja injusto, ser processados de novo por uma dívida que já foi paga. Se Cristo, sua redenção, morreu, então eles não podem morrer. Se ele, o seu fiador, já pagou a sua dívida, então, pela justiça de Deus, eles não devem mais nada, pois Cristo pagou tudo. Se Ele derramou Seu sangue, se Ele entregou Seu espírito, se Ele morreu, “o justo pelos injustos, para conduzir-vos a Deus” (1 Pedro 3:18), como, então, Deus poderia ser justo e ainda punir aqueles que Ele já puniu na pessoa de Jesus Cristo, o seu Salvador? Não, amados, pela copiosa redenção de Cristo, somos libertos de todo castigo decorrente do pecado e de toda a culpa em que tínhamos incorrido.

Além disso, a família dos crentes em Cristo — ou melhor, todos aqueles por quem Cristo morreu — são realmente libertos do poder do pecado. Oh, há quem absorva as duas verdades que já mencionei como se fossem mel; no entanto, elas não podem suportar este outro ponto: Cristo também nos liberta do poder do pecado.

Assim, observe que — nós afirmamos com toda convicção — nenhuma pessoa pode ser redimida da culpa do pecado, ou do seu castigo, a menos que também seja liberta do poder do pecado. A menos que Deus a faça odiar o seu próprio pecado, a menos que ela seja capaz de lançá-lo por terra, a menos que abomine todos os seus maus caminhos e se apegue a Deus com pleno propósito de coração, andando diante Dele na terra dos viventes, na força do Espírito Santo, tal pessoa não tem o direito de acreditar que seja redimida.

Se ainda estás sob o domínio das tuas luxúrias, ó vil pecador, não tens o direito de pensar que és um herdeiro comprado do céu. Se andas a beber, praguejar, amaldiçoar a Deus, se mentes, se profanas o dia de descanso, se odeias o povo de Deus, se desprezas a Sua Palavra, então não tens o direito, tal qual Satanás no inferno, de te vangloriares de ser redimido; pois todos os redimidos do Senhor são, no devido tempo, tirados casa da servidão, da terra do Egito, e aprendem sobre o mal do pecado, sobre o seu terrível castigo e sobre o seu caráter desesperador aos olhos de Deus.

Caro ouvinte, já foste liberto do poder do pecado? Tu o mortificaste? Estás morto para ele? Ele está morto para ti? Ele está crucificado para ti, e tu para ele? Odeias o pecado como odiarias uma víbora? Pisas nele como pisarias numa serpente? Se fazes estas coisas, ainda que haja pecados de fraqueza e enfermidade, se tu odeias o pecado do teu coração, se tiveres inimizade indizível contra ele, tem coragem e bom ânimo. O Senhor te redimiu da culpa e do castigo, e também do poder do pecado. Este é o primeiro ponto da redenção.

E ouçam-me com atenção, para que não me entendam mal. Gosto sempre de pregar de forma a não haver engano. Não quero pregar para que depois me julguem e digam: ele não quis dizer o que disse.

Por isso, quero repetir solenemente o que já disse — eu realmente acredito que ninguém mais foi redimido a não ser aqueles que são ou serão redimidos da culpa, do castigo e do poder do pecado, pois digo outra vez, é abominável à minha razão, pra não falar da minha visão da Escritura, imaginar que os condenados um dia foram redimidos, e que os perdidos um dia foram lavados no sangue do Salvador ou que Seu sangue foi derramado com intenção de salvá-los.

2. Agora vamos pensar na segunda coisa que Cristo redimiu. Cristo redimiu o corpo de todos os Seus filhos. No dia em que Cristo redimiu nossa alma, Ele redimiu o tabernáculo onde habita nossa alma. No mesmo instante em que o espírito foi redimido pelo sangue, Cristo, que entregou Sua alma humana e Seu corpo humano à morte, comprou o corpo, assim como a alma, de cada crente. Pergunta-se, então, de que maneira a redenção opera no corpo dos crentes. Respondo, em primeiro lugar, que ela lhes garante uma ressurreição. Aqueles por quem Cristo morreu têm a garantia, pela Sua morte, de uma ressurreição gloriosa. “Porque, assim como, em Adão, todos morrem, assim também todos serão vivificados em Cristo.” (1 Coríntios 15:22). Todos os homens são, em virtude da morte de Cristo, vivificados para uma ressurreição, mas, mesmo aqui há uma propriedade especial para os eleitos, tendo em vista que eles são vivificados para uma bendita ressurreição, enquanto os outros são vivificados apenas para uma ressurreição amaldiçoada; uma ressurreição miserável, uma ressurreição de angústia indizível. Ó cristão, o teu corpo está redimido!

Ainda que os teus pecados exijam
Que a tua carne veja o pó,
Como ressurgiu o teu Salvador
Assim será com o Seu seguidor

Sim! Ainda que em breve eu adormeça no túmulo, ainda que os vermes devorem este corpo, eu sei que o meu Redentor vive e, porque Ele vive, eu sei que em minha carne eu verei a Deus. (Jó 19.26). Estes olhos, que logo estarão vidrados na morte, não ficarão para sempre fechados na escuridão; a morte devolverá a sua presa; Ele restaurará todos aqueles que recebeu.

Vejam, lá está Ele! Ele tem os corpos dos justos trancados em suas masmorras; eles estão envoltos em suas mortalhas, e Ele sabe que estão seguros: Ele selou suas tumbas e as marcou para Si. Ó morte! Ó morte insensata! Teus caixões serão saqueados; teus depósitos serão arrombados. Eis que é chegada a manhã! Cristo desce lá do alto. Ouço a trombeta: “Despertai! Despertai!” E vejam! Os justos saem de seus túmulos; enquanto a morte senta-se perplexa, uivando em vão, vendo seu império ser despojado de seus súditos, suas masmorras sendo saqueadas de suas vítimas. “Precioso lhe é o sangue deles” (Salmo 72:14). Preciosos serão seus ossos! O próprio pó é bendito, e Cristo os ressuscitará com Ele mesmo.

Pensai nisso, vós que perdestes um amigo — vós que chorais de tristeza! Vosso amigo redimido viverá novamente. As mesmas mãos que seguraram as vossas com um aperto mortal irão apertá-las novamente no paraíso. Os mesmos olhos que se desfizeram em lágrimas irão acordar com os cordões oculares (NT3) intactos no meio-dia da felicidade. Aquele mesmo corpo que, em terríveis trajes de luto, vós carregastes tristemente para ser enterrado em seu túmulo — sim, aquele corpo humilhado, ressuscitará à semelhança de Cristo, espiritualizado e transformado, mas ainda o mesmo corpo, e vós, se fordes redimidos, o vereis outra vez, pois Cristo o comprou, e Cristo não morreu em vão. A morte nunca terá um osso sequer de um justo — nem uma partícula de pó — nem um fio de cabelo da sua cabeça. Tudo voltará. Cristo comprou todo o nosso corpo e, no céu, todo o corpo estará completo e unido para sempre com a alma glorificada. O corpo dos justos é redimido, e redimido para a felicidade eterna.

3. A seguir, tudo o que os justos possuíam, e foi perdido em Adão, é redimido. Adão! Onde estás? Tenho um assunto para tratar contigo, homem, pois perdi muito por tua causa. Chega para cá. Adão! Vês como és agora e diga-me o que perdeste, então saberei o que perdi por tua causa e serei capaz de agradecer ao meu Mestre por Ele ter resgatado graciosamente, para todos os crentes, tudo o que perdeste. O que perdeste? “Ai de mim!”, chora Adão, “Eu já tive uma coroa; já fui rei do mundo inteiro; as feras se colocavam aos meus pés e me faziam reverência. Deus me fez para que eu tivesse o domínio supremo sobre os rebanhos das colinas e sobre todas as aves do céu; mas perdi minha coroa. Eu já tive uma mitra”, disse Adão, “pois eu era sacerdote diante de Deus e, muitas vezes pela manhã, eu subia as colinas e recitava suaves preces de louvor ao meu Criador. Meu incensário fumegava com orações de louvor e era doce o som da minha voz”.

“Gloriosas são as Tuas obras, Pai de todo o bem,
Teu é este universo, ó Todo Poderoso
Maravilhosamente belo; pois Tu mesmo és maravilhoso.'

Muitas vezes ordenei às nuvens, ao sol, à lua e às estrelas que cantassem em Seu louvor. Todos os dias eu ordenava aos rebanhos sobre os montes que mugissem Suas glórias; e aos leões que rugissem em Sua honra. Todas as noites eu dizia às estrelas que brilhassem e às florezinhas que desabrochassem, mas, ai de mim, perdi minha mitra. E eu, que já fui sacerdote para Deus, deixei de ser Seu santo servo”. Ah! Adão, tu me fizeste perder muito; mas além vejo o meu Salvador; Ele tira a coroa da Sua cabeça para colocar uma coroa na minha cabeça; Ele põe uma mitra na Sua cabeça, para ser sacerdote, para colocá-la também na minha, e na cabeça de cada um do Seu povo, pois, como acabamos de cantar

“Nossa alma com sangue Tu remiste
Para da prisão nos libertar
Reis e sacerdotes nos fizeste
E Contigo nós iremos reinar”.

Justamente o que foi perdido por Adão, a realeza e o sacerdócio de Cristo, agora é conquistado por todos os crentes. E o que mais tu perdeste, Adão? “Ora, eu perdi o paraíso”. Silêncio, homem! Não digas nada sobre isso, pois Cristo comprou-me um paraíso no valor de dez mil Édens como o teu. Por isso, podemos muito bem te perdoar. E o que mais tu perdeste? “Ora, a imagem do meu Criador”. Ah! Cala-te, Adão! Em Jesus Cristo, todos temos algo melhor, pois temos a Sua perfeita justiça e, com certeza, isso é melhor que a imagem do Criador, pois são as próprias vestes e o próprio manto usados por Ele. Portanto, Adão, tudo o que perdeste, eu recuperei. Cristo resgatou tudo o que vendemos por nada. Eu, que vendi por nada minha herança divina, devo recuperá-la sem ter de comprá-la — o dom do amor, Cristo diz, é meu. Portanto, ouvi o toque da trombeta do Jubileu (Levítico 25.9-10): Cristo redimiu todas as posses perdidas do Seu povo.

4. E, agora, chegamos à última coisa que Cristo redimiu, embora não seja o último ponto do sermão. Cristo redimiu este mundo. “Ora”, diz alguém, “mas isso é estranho, acho que você está se contradizendo”. Pare! Por favor, entenda o que eu quero dizer com o mundo. Não estamos nos referindo a todos os homens que há no mundo; nunca tivemos tal intenção. Vou lhes dizer como Cristo redimiu o mundo. Com a queda de Adão, Deus amaldiçoou o mundo com esterilidade. “Ela (a terra) produzirá também cardos e abrolhos, e tu comerás a erva do campo.” (Gênesis 3:18). Deus amaldiçoou a terra. Quando Cristo veio ao mundo, uma coroa dos espinhos amaldiçoados foi colocada em Sua cabeça e Ele foi feito rei da maldição. E, naquele dia, Ele comprou a redenção do mundo da sua maldição. É nisto que eu creio; e acredito que, com base na Escritura, quando Cristo voltar, este mundo se tornará, em todos os lugares, tão fértil quanto o jardim do Paraíso costumava ser. Creio que o próprio deserto do Saara um dia florescerá como o Sarom e se alegrará como o jardim do Senhor. Não consigo imaginar que este pobre mundo seja um errante planetário perdido para sempre. Creio que a Terra ainda será verdejante como antes. Temos evidências nas camadas de carvão abaixo da terra de que este mundo já foi muito mais fértil do que é agora. Outrora, árvores gigantescas abriam seus braços poderosos e eu quase diria que apenas um braço de uma daquelas árvores poderia construir metade de uma floresta para nós hoje. Naquele tempo, poderosas criaturas, muito diferentes das nossas, espreitavam pela terra; e creio firmemente que uma vegetação luxuriante, como este mundo já conheceu, será restaurada para nós, e veremos novamente um jardim tal como aquele que não conhecemos. Não mais amaldiçoada com ferrugem e mofo, ou com explosões e destruições, veremos uma terra como o próprio céu —

“Onde a primavera é eterna
E as flores não murcham”.
Quando Cristo voltar, Ele fará exatamente isso.

Em geral, acredita-se também que foi no dia da queda que os animais se tornaram ferozes e começaram a atacar uns aos outros, mas disso não temos certeza. No entanto, se leio corretamente a Escritura, encontro que o leão se deitará junto ao cabrito e o leopardo comerá palha como o boi, e uma criancinha meterá a mão na toca do basilisco (Isaías 11.6-7). Eu realmente acredito que no futuro milênio, que virá em breve, não haverá mais leões devoradores, tigres sedentos de sangue ou criaturas que devoram a sua própria espécie. Deus restaurará, até mesmo os animais do campo, todas as bênçãos que foram perdidas em Adão.

E mais, há também uma maldição pior do que a que recaiu sobre este mundo. É a maldição da ignorância e do pecado: ela também deve ser removida. Vês aquele planeta? Ele rodopia pelo espaço — brilhante e glorioso. Ouves as estrelas cantando por causa da sua nova irmã? Aquela é a terra; agora ela brilha. Pare! Viste a sombra que a atravessa? O que a causou? O planeta está obscurecido e sobre sua face paira uma sombra dolorosa. Falo metaforicamente, é claro. Olha lá o planeta; ele desliza pela noite afora; só um pontinho de luz. Observa outra vez, ainda não chegou o dia em que sua glória será renovada, mas está vindo depressa. Assim como a serpente solta sua pele e a deixa para trás lá no vale, esse planeta também deixa para trás suas nuvens e resplandece como antes. Quem fez isso? Quem afastou a névoa? Quem retirou a escuridão? Quem removeu as nuvens? “Fui eu”, diz Cristo, o sol da justiça, “Eu dispersei a escuridão e fiz o mundo resplandecer novamente”. Eis que vejo um novo céu e uma nova terra, onde habita a justiça. Deixem-me explicar o que quero dizer, para não ser mal interpretado. Este mundo agora está coberto de pecado, ignorância, engano, idolatria e crime. Mas vem o dia em que a última gota de sangue será bebida pela espada; ele não será mais intoxicado com sangue; Deus fará cessar as guerras até as extremidades da terra. Está chegando o dia — ó, tomara fosse hoje! — em que os pés de Cristo pisarão a terra. Então os ídolos serão lançados de seus tronos e as superstições de seus pináculos; a escravidão cessará e os crimes passarão. E a paz estenderá suas asas pelo mundo afora e todos saberão que Cristo morreu pelo mundo e que Ele o venceu. “Porque”, diz Paulo, “sabemos que toda a criação, a um só tempo, geme e suporta angústias até agora.” (Romanos 8:22). Aguardando o quê? Aguardando a redenção, e, por redenção, entendo exatamente o que acabei de lhes explicar, que este mundo será lavado de todos os seus pecados; sua maldição será retirada e suas manchas removidas. E este mundo será tão belo como quando Deus o esboçou pela primeira vez em Sua mente; como quando, como uma faísca brilhante, ele foi lançado pelo golpe do martelo eterno em sua órbita. Isso, com certeza, Cristo fará.

II. E agora, uma palavra ou duas sobre o último ponto — “COPIOSA REDENÇÃO”.

É copiosa o suficiente se considerarmos o que já lhes disse a respeito do que Cristo comprou. É claro que eu não poderia torná-la mais copiosa se tivesse mentido contra minha consciência e dito que Ele comprou todos os homens; pois de que adianta eu ser comprado com sangue, se continuo perdido? De que me serve Cristo ter morrido por mim, se continuo mergulhado nas chamas do inferno? Como glorificará a Cristo Ele ter me redimido, mas falhado em Seu propósito? Certamente é mais honroso para Ele, crer que, de acordo com a Sua vontade imutável, soberana e onisciente, Ele lançou os alicerces tão fundo quanto pretendia que fosse a estrutura e então fez tudo exatamente conforme a Sua vontade. No entanto, a “redenção é copiosa”. Brevemente, então, emprestem-me seus ouvidos por alguns instantes.

É “copiosa” quando consideramos os milhões que são redimidos. Pense, se puder, em como é grande a hoste dos que já “lavaram suas vestiduras e as alvejaram no sangue do Cordeiro” (Apocalipse 7:14); depois pense em quantos agora, com os pés cansados, estão trilhando o caminho para o Paraíso, todos redimidos. Todos eles se sentarão à mesa das bodas do Cordeiro. Não é uma “copiosa redenção” se pensarmos na “grande multidão que ninguém pode contar” que lá estará reunida? Encerramos dizendo: “E quanto a você?” Se tantos são redimidos, por que você não haveria de ser? Por que não haveria de buscar misericórdia, sabendo que quem busca encontra, pois não teria buscado a menos que estivesse preparado para isso?

É “copiosa” também se considerarmos os pecados de todos aqueles que são redimidos. Por maiores que sejam os pecados de uma alma redimida, esta redenção é suficiente para cobrir todos eles — para lavar todos eles

Por mais que seus pecados excedam
Todas as estrelas do céu
Apontando para o trono eterno
Como os picos das grandes montanhas

Ainda assim esta copiosa redenção pode remover todos eles. Eles não são maiores do que Cristo anteviu e prometeu remover. Portanto, eu imploro, corram para Jesus, crendo que, por maior que seja a culpa que carregam, Sua expiação é grande o suficiente para todos os que vão a Ele e, por isso, vocês podem ir em segurança.

Lembrem-se mais uma vez de que esta “copiosa redenção” é copiosa porque é suficiente para todas as angústias de todos os santos. As carências dos santos são quase infinitas, mas a expiação de Cristo é realmente infinita. Seus problemas são quase indizíveis, mas essa expiação é totalmente inexprimível. Você mal pode contar todas as suas necessidades, mas sobre essa redenção eu sei que você não pode contar. Creia, então, que é uma “copiosa redenção”. Ó pecador crente, quão doce é saber que há uma “copiosa redenção”, e você tem parte nela. Com toda certeza você será levado para casa em segurança, pela graça de Jesus. Você está buscando a Cristo? Ou melhor, você reconhece que é um pecador? Se sim, eu tenho a autoridade de Deus para dizer a todo aquele que confessar seus pecados que Cristo o redimiu. “Fiel é a palavra e digna de toda aceitação: que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal.” (1 Timóteo 1:15). Você é um pecador? Não quero dizer um pecador fingido; há uma porção desses por aí e, neste momento, não tenho evangelho para pregar a eles. Não me refiro aos pecadores hipócritas que gritam: “Sim, sou pecador” — como se fosse um elogio, mas que realmente não querem dizer isso. A esses pregarei outra coisa: em outro momento pregarei contra a sua justiça própria; mas agora não falarei nada sobre Cristo, pois Ele “Não veio chamar justos, e sim pecadores, ao arrependimento.” (Lucas 5:32). Mas, e você, você é um pecador, no sentido fidedigno da palavra? Você reconhece que está perdido, arruinado e sem esperança? Se reconhece, em nome de Deus eu lhe rogo que creia nisto: Cristo morreu para salvá-lo; pois, tão certo quanto Ele lhe revelou a sua culpa por meio do Espírito Santo, Ele não o deixará até lhe revelar o Seu perdão por Seu único Filho. Se você reconhece seu estado de perdição, em breve você conhecerá o seu estado glorioso. Crê em Jesus agora; então serás salvo e irás embora feliz — muito mais que reis poderiam sonhar. Crê que, sendo tu um pecador, Cristo te redimiu — justamente porque reconheces teu estado de perdição, culpa e ruína, tens nesta noite o direito e o privilégio de se banhar na fonte cheia do sangue “derramado por muitos para remissão dos pecados”. Crê nisso e, então, saberás o significado deste texto: “Portanto, justificado pela fé, temos paz com Deus, por meio de nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual também temos recebido a justificação” (Rm 5.1-2). Que o Senhor te despeça com a Sua bênção, em nome de Jesus!

Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza

NT1 — para melhor compreensão da ilustração de Spurgeon, ver artigos sobre os corsários e o tráfico de europeus

NT2 — Salt Lake City, cidade dos Estados Unidos fundada pelos mórmons em 1847

NT3 — na época de Spurgeon acreditava-se que os olhos possuíam uma espécie de tendão ocular que se rompia no momento da morte ou quando a pessoa ficava cega — “eyestring: tendons formerly believed to be present in the eye and to break at the onset of death or blindness” (https://www.collinsdictionary.com/pt/dictionary/english/eyestrings).