Sermão nº 69
Pregado no domingo pela manhã, 2 de março de 1856, pelo
Rev. Charles H. Spurgeon
na Capela da Rua do Novo Parque, Southwark
“porque estas mulheres são duas alianças” — Gálatas 4:24
Não
pode haver maior diferença no mundo do que há entre lei e graça. E
ainda assim, por mais estranho que pareça, embora sejam diametralmente
opostas e essencialmente diferentes entre si, a mente humana está tão
corrompida, e o intelecto, mesmo quando abençoado pelo Espírito, tão
longe do julgamento correto, que uma das coisas mais difíceis é
distinguir corretamente entre lei e graça. Quem conhece a diferença, e
sempre a tem em mente — a diferença fundamental entre lei e graça —
compreende a essência da teologia. Quem pode dizer exatamente a
diferença entre lei e graça não está longe de entender o evangelho em
toda sua extensão, seu alcance e suas nuances. Em toda ciência há sempre
uma parte que se torna muito simples e fácil depois que a aprendemos,
mas que, no início era como uma grande soleira antes da porta. Então,
essa é a primeira dificuldade na luta para aprender o evangelho. Entre
lei e graça existe uma diferença suficientemente clara para todo
cristão, especialmente para quem é mais esclarecido e instruído; mas até
para estes, mais esclarecidos e instruídos, há sempre uma tendência de
confundir as duas coisas. Eles são tão opostas entre si quanto luz e
trevas, e não concordam mais que fogo e água, mas, mesmo assim, o homem
sempre tentará combiná-las — frequentemente sem conhecimento, e às vezes
intencionalmente. Procuram unir as duas coisas, quando Deus
positivamente as separou.
Nesta
manhã, tentaremos ensinar algo sobre as alegorias de Sara e Agar, para
que possam compreender melhor a diferença essencial entre as alianças da
lei e da graça. Não iremos muito a fundo, mas daremos algumas
ilustrações fornecidas pelo próprio texto. Primeiro, gostaria que
observassem as duas mulheres, as quais Paulo usa como tipos — Sara e Agar; depois falaremos dos dois filhos — Ismael e Isaque; em terceiro lugar, do comportamento de Ismael com relação a Isaque; e então concluirei chamando sua atenção para os diferentes destinos dos dois.
1. Primeiro, convido-os a observar AS DUAS MULHERES — Agar e
Sara. Está escrito que elas são tipo de duas alianças; e, antes de
começar, não podemos deixar de dizer quais são essas alianças. A
primeira, referente a Agar, é a aliança das obras, que diz: “Eis a minha
lei, ó homem; se da tua parte, te comprometeres a guardá-la, Eu, de
minha parte, Me comprometo a manter-te com vida. Se prometeres obedecer
aos mandamentos plena, integral e perfeitamente, sem única falha, Eu te
conduzirei ao céu. Mas vê bem, se violares uma única regra, se te
rebelares contra uma única ordenança, Eu te destruirei para sempre.”
Esta é aliança de Agar — a aliança proposta no Sinai, em meio a
tempestades, fogo e fumaça — ou melhor, proposta, antes de tudo, no
jardim do Éden, onde Deus disse a Adão: “no dia em que dela comeres,
certamente morrerás”. Enquanto não comesse da árvore, e permanecesse
puro e imaculado, Adão certamente viveria. Esta é aliança da lei, a
aliança de Agar. A aliança de Sara é a aliança da graça, não feita por
Deus com o homem, mas feita por Deus com Jesus Cristo, a qual diz:
“Jesus Cristo, de Sua parte, Se compromete a suportar a pena pelo pecado
do Seu povo, a morrer, para pagar suas dívidas, e a carregar suas
iniquidades sobre Seus ombros; e o Pai, de Sua parte, promete que todos
por quem o Filho morreu certamente serão salvos; e, por causa de seus
vis corações, Ele colocará neles a Sua lei, da qual não se apartarão; e,
vendo seus pecados, Ele passará por eles e deles jamais Se lembrará.” A
aliança das obras era “faze isto e viverás”, mas a aliança da graça é
“faze isto, ó Cristo, e tu, homem, viverás”. Nisto repousa a diferença
entre as duas alianças. Uma foi feita com o homem, a outra com Cristo;
uma era condicional, condicionada à obediência de Adão, a outra era
condicional para Cristo, mas perfeitamente incondicional para nós. Na
aliança da graça não há qualquer tipo de condição; e, se houver, a
própria aliança a proverá. A aliança provê a fé, o arrependimento, as
boas obras e a salvação, como um ato puramente gratuito e incondicional;
nem a nossa permanência nela depende, em qualquer medida, de nós
mesmos. A aliança foi feita por Deus com Cristo, assinada, selada e
ratificada, em todas as coisas bem ordenada.
Agora, vejamos a alegoria. Primeiro, gostaria que notassem que é Sara o tipo da nova aliança da graça, pois foi ela a esposa original de Abraão.
Antes de ele saber qualquer coisa sobre Agar, Sara já era sua esposa. A
aliança da graça, afinal, é a aliança original. Há alguns teólogos
ineptos que ensinam que Deus criou o homem justo, e fez uma aliança com
ele; então o homem pecou, e Deus, como numa espécie de reconsideração,
fez uma nova aliança com Cristo para salvar Seu povo. Ora, isso é um
completo engano. A aliança da graça foi feita muito antes da aliança das
obras, pois Jesus Cristo, antes da fundação do mundo, tornou-se seu
guia e representante; e de nós está escrito que fomos eleitos pela
presciência de Deus Pai, por meio da obediência e aspersão do sangue de
Jesus. Nós, muito antes da queda, fomos amados por Deus; Ele não nos
amou por sentir pena de nós; mas Ele amou Seu povo como simples
criaturas. Ele amou Seu povo quando se tornaram pecadores; mas no
começo, Ele os considerou como criaturas. Ele permitiu ao homem cair em
pecado para mostrar a riqueza da Sua graça, a qual já existia antes do
pecado. Ele não nos amou e nos escolheu dentre os demais, depois da
queda, mas nos amou muito além do pecado, e antes dele. Ele fez a
aliança da graça antes de cairmos pela aliança das obras. Se pudéssemos
voltar na eternidade e perguntar qual era o filho mais velho, ouviríamos
que a graça nasceu antes da lei — que veio ao mundo muito antes da lei
ser promulgada. Mais antiga que os princípios fundamentais que regem a
nossa moral está a grande pedra fundamental da graça, na aliança feita
na antiguidade, muito antes dos videntes promulgarem a lei, muito antes
do Sinai fumegar. Antes mesmo de Adão ser colocado no jardim, Deus já
havia decretado a vida eterna ao Seu povo, para que fossem salvos por
meio de Jesus.
A seguir, observem: embora Sara fosse a esposa mais velha, foi Agar quem teve o primeiro filho.
Assim, Adão, o primeiro homem, era filho de Agar. Embora tenha nascido
perfeito e sem pecado, quando estava no jardim ele não era filho de
Sara. Agar teve o primeiro filho. Ela deu à luz a Adão, o qual viveu
durante algum tempo sob a aliança das obras. Adão viveu no jardim com
base nesse princípio. O pecado causou sua queda; se não tivesse pecado,
ele teria ficado lá para sempre. Adão tinha o poder de decidir se iria
ou não obedecer a Deus: sua salvação, então, dependia simplesmente
disto: “Se tocares nesse fruto, morrerás; se obedeceres ao meu
mandamento, e não tocares no fruto, viverás.” E Adão, perfeito como era,
foi só um Ismael, não um Isaque, até depois da queda. De qualquer
forma, aparentemente, ele foi descendente de Agar, embora ocultamente,
na aliança da graça, talvez tenha sido um filho da promessa. Bendito
seja Deus, pois agora não estamos sob Agar; não estamos debaixo da lei
desde a queda de Adão. Sara já deu à luz. A nova aliança é “a mãe de
todos nós”.
Mas observe mais uma vez, a finalidade de Agar não era ser esposa; ela nunca foi outra coisa senão serva de Sara.
O propósito da lei nunca foi salvar os homens; ela foi designada apenas
para ser um aio para a aliança da graça. Quando Deus promulgou a lei no
monte Sinai, não foi com o propósito do homem poder ser salvo por ela;
Ele nunca planejou que o homem alcançasse a perfeição por meio dela. No
entanto, sabemos que a lei é uma serva magnífica para a graça. Quem nos
levou ao Salvador? Não foi a lei trovejando em nossos ouvidos? Nunca
teríamos aceitado a Cristo se a lei não nos tivesse conduzido a Ele;
nunca teríamos conhecido o pecado se a lei não o tivesse revelado. A lei
é a serva de Sara para varrer o nosso coração e levantar a poeira, a
fim de nos fazer clamar para o sangue ser aspergido e poder assentá-la. A
lei, por assim dizer, é o cão pastor de Jesus Cristo, que vai atrás da
ovelha e a conduz ao pastor; a lei é o raio estrondoso que aterroriza os
ímpios, e os faz deixar os seus maus caminhos e buscar a Deus. Ah, se
soubéssemos como usar a lei corretamente, se compreendêssemos como
colocá-la em seu lugar, tornando-a obediente a sua senhora, então tudo
ficaria muito bem. Esta Agar, no entanto, está sempre desejando ser
senhora, tal como Sara; mas Sara jamais permitirá isso, e terá razão em
tratá-la mal e mandá-la embora. Devemos fazer o mesmo, e não permitir
que ninguém murmure contra nós, se tratarmos com severidade os filhos de
Agar em nossos dias — se às vezes dissermos coisas duras para quem
confia nas obras da lei. Citaremos Sara como exemplo. Ela
tratou Agar com severidade; e nós faremos o mesmo. Isso significa fazer
Agar fugir para o deserto: não queremos ter nada com ela. Contudo, é
incrível que, mesmo feia e inferior, Agar seja mais amada pelos homens
do que Sara, e eles estejam sempre propensos a dizer “Agar, seja minha
senhora” em vez de “Não! Sara, eu serei teu filho, e Agar será a
escrava.” Onde está a lei de Deus agora? Ela não está acima do cristão — está abaixo dele. Alguns usam a lei de Deus como fosse uma vara, de terror,
sobre os cristãos, dizendo “se pecar, você será punido com ela”. Mas
não é assim. A lei está sob o cristão; é para ele andar nela; ela deve
ser seu guia, sua regra, seu padrão. “Não estamos debaixo da lei, e sim
da graça.” A lei é a estrada que nos guia, não a vara que nos controla,
nem o espírito que nos move. A lei é boa e excelente, se ficar em seu
lugar. Ninguém critica a serva porque ela não é a esposa; e ninguém deve
desprezar Agar porque ela não é Sara. Se ela pelo menos tivesse se
recordado das suas funções, não haveria problema algum, sua senhora
nunca a teria mandado embora. Não queremos tirar a lei das nossas
igrejas, desde que ela continue no lugar certo; mas quando ela quer ser
senhora, fora com ela; não queremos o legalismo.
Novamente, Agar nunca foi livre, e Sara nunca foi escrava.
Portanto, amados, a aliança das obras nunca foi livre, nem nenhum de
seus filhos. Quem confia nas obras jamais será livre, nem poderá ser,
até sendo perfeito em boas obras. Mesmo não tendo pecado, ainda são
escravos, pois quando tivermos feito tudo o que deveríamos, Deus não
será nosso devedor, pois ainda estaremos em débito com Ele, ainda
seremos como escravos. Se cumpro toda a lei de Deus, não tenho direito a
favor algum, pois nada mais fiz que a minha obrigação, e ainda serei
escravo. A lei é o patrão mais rigoroso do mundo; nenhum homem sensato
gostaria de estar a seu serviço, pois depois de ter feito tudo, não se
recebe nem um “obrigado” por isso, só um “vá em frente, continue”. O
pobre pecador tentando ser salvo pela lei é como um cavalo cego dando
voltas e mais voltas em torno de um moinho, não dando um único passo
além, mas sempre recebendo açoites; sim, quanto mais rápido for, quanto
mais trabalhar, quanto mais cansado ficar, tanto pior para ele. Quanto
mais legalista alguém for, mais certeza terá da condenação; quanto mais
santo alguém for, se confiar em suas obras, mais certeza terá da sua
própria rejeição final e da porção eterna com os fariseus. Agar era
escrava; Ismael, embora bom e digno, nada mais era que um escravo, e
nunca poderia ser outra coisa. Nem todas as obras que alguma vez ele fez
a seu pai poderiam torná-lo um filho nascido em liberdade. Sara nunca
foi escrava. Ela pode ter sido feita prisioneira de faraó algumas vezes,
mas não foi sua escrava; seu marido pode tê-la negado, mas ela ainda
era sua esposa; tão logo foi reconhecida por seu marido, faraó teve de
devolvê-la. Por isso, a aliança da graça podia parecer em perigo, e seu
representante clamar “Meu Pai, se possível, passe de mim este cálice!”,
mas esse nunca foi um risco real. Por vezes, as pessoas sob a aliança da
graça parecem cativas e escravas, mas ainda são livres. Oh, se
soubéssemos como ficar “firmes na liberdade com que Cristo nos
libertou!”
Só mais um pensamento. Agar foi expulsa, assim como seu filho, mas Sara, não.
Por isso, a aliança das obras não tem mais validade como aliança.
Naufraga quem nela confia, pois não só Ismael foi lançado fora, como
também sua mãe. PORTANTO, o legalista não só sabe que ele mesmo está
condenado, como também que a lei como aliança cessou, pois mãe e filho
foram expulsos pelo evangelho, e quem confia na lei é mandado embora por
Deus. Perguntem-me quem é a esposa de Abraão hoje. Não é Sara? Não é
ela quem repousa ao lado do marido na caverna de Macpela neste instante?
Ela está lá, e se estiver nos milhares de anos por vir, ainda será a
esposa de Abraão, enquanto Agar jamais poderá ser. Oh, como é doce
pensar que a aliança celebrada nos tempos antigos em todas as coisas foi
bem ordenada, e jamais, jamais será removida. “Pois estabeleceu comigo
uma aliança eterna, em tudo bem definida e segura.” Ah, legalistas, não
me admira que vocês ensinem a doutrina da perda da salvação, pois ela é
totalmente coerente com sua teologia. Agar, é claro, tem de ser expulsa,
e seu filho Ismael também. Mas nós, os que pregamos a aliança da
salvação plena e gratuita, sabemos que Isaque nunca será expulso, e Sara
nunca deixará de ser amiga e esposa de Abraão. Ó filhos de Agar! Ó
ritualistas! Ó hipócritas! Ó formalistas! De que adiantará, quando enfim
disserem “Onde está minha mãe? Onde está minha mãe, a lei?” Ah, ela foi
expulsa, e tu podes acompanhá-la no esquecimento eterno. “Mas onde está
minha mãe?” pode, enfim, dizer o cristão; e ele ouvirá “Eis a mãe dos
fiéis, a Jerusalém do alto, a mãe de todos nós; e ali entraremos e
habitaremos com nosso Deus e Pai.”
2. Agora vamos analisar os DOIS FILHOS. Enquanto as duas
mulheres são tipo de duas alianças, os filhos são tipo de quem vive
debaixo de cada aliança. Isaque é tipo do homem que anda pela fé, não
pelo que vê, e espera ser salvo pela graça; Ismael, do homem que vive
pelas obras, e espera ser salvo por suas boas ações. Vamos examinar os
dois.
Em primeiro lugar, Ismael é o mais velho.
Por isso, amados, o legalista é muito mais velho que o cristão. Se eu
fosse um legalista hoje, teria uns quinze ou dezesseis a mais do que
tenho como cristão, pois todos nós nascemos legalistas. Falando sobre os
arminianos, Whitfield disse: “Todos nós nascemos arminianos.” É a graça
que nos torna calvinistas, a graça nos torna cristãos, a graça nos
liberta e nos faz conhecer a nossa posição em Cristo. Deve-se esperar,
então, que o legalista tenha mais poder de argumentação do que Isaque; e
quando os dois garotos estão brigando, é claro que Isaque geralmente
vai ao chão, pois Ismael é muito maior. Deve-se esperar também ouvir
Ismael fazendo o maior barulho, pois ele vai se tornar um homem
selvagem, “a sua mão será contra todos, e a mão de todos, contra ele”,
ao passo que Isaque é um rapaz pacífico. Ele está sempre ao lado da mãe,
e quando é alvo de zombaria, pode ir até ela e contar-lhe o que Ismael
fez com ele; mas isso é tudo o que pode fazer, pois ele não tem muita
força. Por isso, observe os nossos dias. Os ismaelitas geralmente são
mais fortes, e podem nos derrubar violentamente quando discutimos com
eles. Na verdade, eles se gabam e se vangloriam porque os Isaques não
têm muito poder de raciocínio — não têm muita lógica. Não, Isaque não
quer discutir, pois é herdeiro segundo a promessa, e promessa e lógica
não combinam muito bem. Sua lógica é sua fé, sua retórica é sua
sinceridade. Não espere que o evangelho seja vitorioso quando se disputa
segundo a maneira dos homens; é mais comum vê-lo vencido. Se você
estiver discutindo com um legalista, e ele vencer a questão, diga: “Eu
já esperava por isso; isso mostra que sou um Isaque, pois Ismael com
certeza dá uma coça em Isaque, mas isso de forma alguma me abate. O pai e
a mãe dele estão no vigor da vida, e são fortes. É natural que eu seja
superado, pois meu pai e minha mãe estão muito velhos.”
Mas, na aparência exterior, onde está a diferença entre os dois rapazes? Não há diferença entre eles quanto às ordenanças,
pois ambos são circuncidados. Não há nenhuma distinção quanto aos
sinais externos e visíveis. Portanto, amados, muitas vezes não há
diferença entre Ismael e Isaque, entre o legalista e o cristão, no que
se refere aos rituais externos. O legalista toma a Santa Ceia e é
batizado; ele ficaria muito temeroso se não o fizesse. E não creio que haja muita diferença quanto ao caráter.
Ismael, como homem, foi quase tão bom e honrado quanto Isaque; não há
nada contra ele nas Escrituras; na verdade, sou levado a crer que ele
era um rapaz especial, pelo que Deus disse quando proferiu a bênção:
“Com Isaque estará minha bênção.” Abraão, respondeu: “Tomara que viva
Ismael diante de ti.” Abraão clamou a Deus por Ismael porque, sem
dúvida, amava o rapaz por seu caráter. Deus disse: sim, darei a ele tais
e tais bênçãos; ele será pai de príncipes e terá bênçãos temporais. No
entanto, Deus não mudaria, nem mesmo pela oração de Abraão. E está
escrito que, quando Sara ficou furiosa, como no dia em que expulsou Agar
de casa, “Abraão ficou pesaroso por causa do seu filho”. Não creio que
o sentimento dele fosse uma tolice. Há um traço no caráter de Ismael
que todos irão gostar. Quando Abraão morreu, ele não deixou sequer um
pedaço de pau ou de pedra para Ismael, pois Abraão já tinha lhe dado sua
parte quando o despachou; no entanto, o rapaz foi ao funeral do pai,
pois está escrito que ambos, Ismael e Isaque, sepultaram Abraão em
Macpela. Por isso, parece haver bem pouca diferença no caráter dos dois.
Portanto, amados, há pouquíssimas diferenças entre o legalista e o
cristão quanto ao aspecto externo. Ambos são filhos de Abraão. Não há
distinção na vida, pois Deus permitiu a Ismael ser tão bom quanto
Isaque, para mostrar que não é a bondade de um homem que faz diferença,
mas que Ele “tem misericórdia de quem quer e também endurece a quem lhe
apraz”.
Então, qual é a distinção? Paulo nos diz que o primeiro nasceu segundo a carne, e o outro segundo o Espírito.
O primeiro era filho natural, o segundo, espiritual. Pergunte ao
legalista: “Você faz boas obras, se arrepende, e diz: quando se cumpre a
lei não é preciso arrependimento. De onde vem a sua força?” Talvez ele
responda: “da graça”; mas se você lhe perguntar o que isso significa,
ele dirá que usou a graça; ele a tinha, mas usou-a. Então, a diferença
é, você usa
a graça, os outros não. Sim. Bem, então, é devido às suas ações. Você
pode chamar de graça, ou de mostarda; enfim, não é graça, pois foi o
uso, você diz, que fez a diferença. Contudo, pergunte ao pobre Isaque
como ele observa a lei. O que ele diz? Não faço nada direito! Isaque,
você é pecador? “Oh, sim, um grande pecador; vezes sem conta tenho me
rebelado contra meu pai; estou sempre me desviando de seus caminhos.”
Então você não se acha tão bom quanto Ismael, não é? “Não”. Ah! Então
existe uma diferença entre vocês afinal! O que faz a diferença? “A graça
me faz ser diferente.” Por que Ismael não é um Isaque? Ele poderia ter
sido um Isaque? “Não”, diz Isaque, “foi Deus quem me tornou diferente,
do princípio ao fim; Ele me fez filho da promessa antes de eu nascer, e
vai me manter assim.”
A graça toda obra coroará
Por todos os dias da eternidade
Ela firma nos céus a pedra suprema
E bem merece todo o nosso louvor
Na realidade, Isaque tem mais boas obras; ele não fica atrás
de Ismael. Quando é convertido, ele trabalha e, se possível, serve ao
pai muito melhor que um legalista a seu senhor. Entretanto, se fôssemos
ouvir a história de ambos, sem dúvida, veríamos que Isaque se considera
um pobre pecador miserável, enquanto Ismael se mostra como um honrado
cavalheiro farisaico. A diferença, contudo, não está nas obras, mas nos
motivos; não na vida, mas nos meios de sustentá-la — não no que fazem,
mas muito mais em como fazem. Eis, portanto, a diferença entre eles. Não
que os legalistas sejam piores que os cristãos; com frequência podem
ter uma vida melhor; mas mesmo assim podem estar perdidos. Eles se
queixam das injustiças? Nem um pouco. Deus diz que os homens devem ser
salvos pela fé, mas eles dizem: “Não, seremos salvos pelas obras.” Eles
podem tentar, mas estarão perdidos para sempre. É como se alguém tivesse
um servo e lhe dissesse: “João, faça isso, isso e isso no estábulo”,
mas o servo se retira e faz o contrário, e depois diz: “Senhor, fiz tudo
certinho.” “Sim”, diz ele, “mas não foi o que eu pedi.” Da mesma forma,
Deus não lhe pediu para desenvolver sua salvação por meio de obras, mas
para “desenvolver a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é
quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa
vontade.” De forma que, quando você se apresentar diante dEle com suas
obras, Ele dirá: “Não lhe pedi para fazer isso. Eu disse que quem crer e
for batizado será salvo.” “Ah”, diz você, “achei que o outro jeito
fosse melhor.” Amigo, o que você acha o levará à perdição. “Que diremos,
pois? Que os gentios, que não buscavam a justificação, vieram a
alcançá-la”, quando Israel, que a buscava, não a alcançou? É por isso,
“Porque não decorreu da fé, e sim como que das obras.”
3.
Agora direi uma palavra ou duas a respeito da CONDUTA DE ISMAEL EM
RELAÇÃO À ISAQUE. Lemos que Ismael caçoou de Isaque. Será que os
queridos filhos de Agar não se irritam ao ouvir essa doutrina? Eles
dizem: “é horrível, sem sentido e totalmente injusto que eu possa ser
tão bom quanto queira, mas se não for filho da promessa, não possa ser
salvo; essa é realmente uma doutrina terrível e imoral; é um grande
perigo e precisa ser detida.” Sem dúvida! Isso mostra que ele é um
Ismael. É claro que Ismael caçoará de Isaque, e não é preciso outra
explicação. Onde a absoluta soberania de Deus for pregada, onde se
disser que o filho da promessa, não o da carne, é o herdeiro, o filho da
carne sempre fará o maior reboliço. Mas o que disse Ismael a Isaque?
“Que quer aqui? Não sou eu o filho mais velho de meu pai? Tudo seria
meu, se não fosse por você. Acaso você é melhor do que eu?” Assim é como
falam os legalistas. “Deus não é pai de todo mundo? Não somos todos
Seus filhos? Ele não deve fazer nenhuma distinção.” Ismael disse: “Não
sou tão bom quanto você? Não sirvo igualmente a meu pai? Quanto a você,
sei que é o favorito da sua mãe, mas a minha é tão boa quanto a sua.” E
assim, ele provocou Isaque e caçoou dele. É assim que os arminianos
fazem com a salvação pela graça. O legalista diz: “Não a entendo, não a
tenho e não a quero; se somos ambos iguais em caráter, não é possível
que um se perca e o outro seja salvo.” Por isso, ele zomba da graça.
Podemos viver em harmonia, se não pregarmos a plenitude da graça; mas se
ousarmos falar dela, conquanto ofensiva ao público, o que as pessoas
dirão? Chamam-na de “o anzol da popularidade” (vejam o assim chamado
Jornal Homem Livre). Poucos peixes, no entanto, mordem a isca. A
maioria diz: “Odeio esse pregador, não o suporto; ele é intolerante
demais.” Dizem que pregamos sobre a graça para ganhar popularidade! Ora,
no fundo, isso é uma mentira deslavada, pois a doutrina da soberania de
Deus sempre será impopular; as pessoas sempre a detestarão, e rangerão
os dentes, da mesma forma como fizeram quando Jesus a ensinou. Havia
muitas viúvas em Israel, disse Ele, mas a nenhuma foi enviado o profeta,
senão à viúva de Sarepta. Havia muitos leprosos em Israel, mas nenhum
foi curado, senão aquele que veio de longe, da Síria. Quanta
popularidade conseguiu nosso Salvador com esse sermão! As pessoas
rangeram os dentes para ele; e toda sua popularidade teria descido morro
abaixo, de onde queriam lançá-lO de cabeça, se Ele não tivesse aberto
caminho por entre eles e se retirado. Como? Popular
por tirar o orgulho de alguém, por destruir sua posição e por fazê-lo
se encolher diante de Deus como um pobre pecador? Não, isso nunca será
popular até os homens nascerem anjos, e todos amarem o Senhor, o que
suponho não será agora.
4. Mas ainda temos de perguntar no QUE SE TORNARAM OS DOIS FILHOS
Primeiro, Isaque herdou tudo, e Ismael não herdou nada.
Não que Ismael tenha ficado pobre, pois ele recebeu muitos bens, e se
tornou rico e poderoso; mas ele não recebeu herança espiritual. O
legalista, da mesma forma, receberá muitas bênçãos como recompensa por
sua legalidade; ele será honrado e respeitado. “Em verdade”, disse
Jesus, “vos digo que eles (os fariseus) já receberam a recompensa”. Deus
não priva ninguém da sua recompensa. Qualquer coisa que um homem peça,
ele a terá. Deus paga a todos o que é devido, e muito mais; e quem
cumpre a Sua lei, mesmo neste mundo, receberá grandes benefícios. Por
obedecer aos mandamentos de Deus, não terão o corpo tão prejudicado
quanto os devassos, e preservarão melhor sua reputação — obediência,
nesse sentido, faz bem. Por outro lado, Ismael não herdou nada. Por
isso, ó pobre legalista, se és dependente das tuas obras, ou de qualquer
outra coisa, a não ser da soberana graça de Deus, para te livrares da
morte, não terás sequer um palmo de herança em Canaã, e no grande dia em
que Deus repartir a porção dos filhos de Jacó, não haverá uma parte
para ti. Se és, no entanto, um pobre Isaque, um pobre e trêmulo pecador
— e, se disseres: “Ismael tem as mãos cheias
Mas nada em minhas mãos eu trago
Somente à cruz me agarro.
Se disseres nesta manhã —
Eu, de mim, nada sou
Mas Cristo é meu tudo em tudo.”
Se
renunciares a todas as obras da carne, e confessares: “Eu sou o
principal dos pecadores, mas sou filho da promessa e Jesus morreu por
mim”, terás uma herança e não serás privado dela nem por todos os
Ismaeis zombadores do mundo; nem será ela diminuída pelos filhos de
Agar. Talvez sejas vendido, e levado para o Egito, mas Deus trará de
volta Seus Josés e Seus Isaques, e serás exaltado para a glória, e te
assentarás à direita de Cristo. Ah, como tenho pensado na consternação
que haverá no inferno quando aqueles que aparentam ser justos forem para
lá. “Senhor”, diz alguém, “preciso mesmo ir para essa masmorra
horrenda? Mas não guardei o dia de descanso? Não cumpri fielmente teu
mandamento? Em toda minha vida, jamais disse um palavrão ou proferi uma
maldição. Preciso mesmo ir para lá? Dei o dízimo de tudo o que tinha, e
ainda assim serei trancafiado lá? Fui batizado, tomei a Santa Ceia, e
fui tão bom quanto pude. É bem verdade que não cri em Cristo; mas pensei
que não fosse necessário, pois me achava bom e honrado demais; preciso
mesmo ser trancafiado lá?” Sim, senhor! E entre os condenados terás a
primazia, pois escarneceste de Cristo mais do que todos. Eles nunca
erigiram um anticristo. Eles andaram nos caminhos do pecado, e tu
também, mas acrescentaste ao teu pecado o mais abominável de todos:
erigiste a ti mesmo como um anticristo, e te curvaste ante a tua própria
bondade ilusória e a adoraste. E então, Deus dirá ao legalista: “Em tal
dia Eu te ouvi criticar minha soberania; te ouvi dizer que era injusto
Eu salvar meu povo e distribuir meus favores conforme o conselho da
minha vontade; tu contestaste a justiça do teu Criador, e justiça terás
em toda força.” Ele pensava que tivesse um grande peso da balança a seu
favor, mas descobriu que era somente um grãozinho de dever; Deus, então,
exibe a imensa lista de seus pecados, com esta inscrição no final: “Sem
Deus, sem esperança, um estranho à riqueza de Israel”. O pobre homem,
então, percebe que seu pequeno tesouro não vale nem meio centavo,
enquanto a enorme conta apresentada por Deus é de dez trilhões de
talentos; e assim, com um terrível gemido de angústia, e um urro
desesperado, ele foge com todas as suas notinhas de mérito, as quais
esperava pudessem salvá-lo, gritando: “Estou perdido! Estou perdido com
todas as minhas boas obras! Descobri que minhas boas obras eram grãos de
areia, enquanto meus pecados eram montanhas; e porque não tive fé, toda
minha justiça foi somente deslavada hipocrisia.”
Agora, mais uma vez, Ismael foi mandado embora, e Isaque foi mantido em casa.
Assim será com alguns de vocês, quando vier o dia da perseguição para
provar a igreja de Deus; pois, embora estejam na igreja como os outros
e, embora usem a máscara de professos, descobrirão que isso será de
nenhuma valia. Vocês são como o filho mais velho; quando o filho pródigo
entra na igreja, dizem: “vindo, porém, esse teu filho, que desperdiçou
os teus bens com meretrizes, tu mandaste matar para ele o novilho
cevado.” Ah, legalistas invejosos, enfim sereis expulsos de casa. E eu
vos digo, legalistas e formalistas, que tendes com Cristo o mesmo que
qualquer pagão; e vós, que fostes batizados com o batismo cristão,
embora vos assenteis à mesa do Senhor, embora ouçais sermões cristãos,
não tendes parte nem porção nisso, não mais que um católico romano ou um
muçulmano, a menos que confieis simplesmente na graça de Deus, e sejais
herdeiro segundo a promessa. Todo aquele que confia nas suas obras,
mesmo que seja só um pouquinho, descobrirá que esse pouquinho arruinará a
sua alma. Todos os movimentos do universo devem ser desvelados. O navio
construído pelas obras deve ter a quilha partida. A alma deve confiar
única e exclusivamente na aliança de Deus, ou está perdida. Legalista,
esperas ser salvo pelas obras. Vem agora, e te tratarei com respeito.
Não te acusarei por teres sido um bêbado, ou maldizente, mas quero te
perguntar: sabes que, para seres salvo por tuas obras, deves ser
totalmente perfeito? Deus requer o cumprimento de toda a lei. Se você
tem um vaso com uma pequena rachadura, por menor que ela seja, ele não
está inteiro. Você nunca cometeu pecado em sua vida? Nunca teve maus
pensamentos, nunca imaginou coisas ruins? Ora, meu amigo, não acho que
você tenha manchado suas luvas brancas com algum tipo de luxúria, ou
carnalidade, ou que sua boca pura, que usa linguagem casta, tenha
proferido algum xingamento, ou qualquer coisa lasciva; nem penso que
você tenha cantado alguma música obscena; isso está fora de questão —
mas nunca pecaste? “Sim”, respondes. Então, nota bem: “a alma que pecar, essa morrerá”;
e isso é tudo o que tenho a te dizer. Mas se negares que tenhas pecado,
sabe que, se no futuro cometeres um único pecado — embora tenhas vivido
uma vida perfeita durante setenta anos, e ao final desses anos
cometeres um único pecado, toda a tua obediência de nada servirá, pois “aquele que tropeça em um só ponto, se torna culpado de todos”.
Mas você diz: “o senhor está fazendo suposições erradas, pois embora eu
creia que precise fazer boas obras, também creio que Jesus é muito
misericordioso e, embora eu não seja inteiramente perfeito, sou sincero,
e acho que obediência sincera será aceita em lugar da obediência
perfeita.” É mesmo? Então diga: o que é obediência sincera? Conheci um
homem que se embebedava uma vez por semana; ele era muito sincero e não
achava que estivesse fazendo algo errado, contanto que estivesse sóbrio
no domingo. Muitas pessoas têm o que elas chamam de obediência sincera,
mas isso sempre deixa margem para a iniquidade. E então você diz: “Não
dou muita margem, só permito alguns pecadinhos.” Caro amigo, você está
totalmente errado quanto à sua obediência sincera, pois se isso é o que
Deus requer, então centenas dos mais vis pecadores são tão sinceros
quanto você. Não creio na sua sinceridade. Se fosse sincero, obedeceria
ao que Deus diz: “Crê no Senhor Jesus e serás salvo.” Tua obediência
sincera me parece uma sincera enganação, e isso logo descobrirás. “Oh”,
dizes tu, “creio que depois de tudo o que fizemos, devemos ir a Jesus
Cristo e dizer: “Senhor, temos um grande problema, o Senhor o perdoará?”
Ouvi dizer que antigamente pesavam bruxas contra a Bíblia da paróquia,
se fossem mais pesadas, as bruxas eram inocentadas; mas colocar bruxas
em pé de igualdade com a Bíblia é uma ideia sem precedentes. Porque
Cristo não será colocado na balança com um tolo presunçoso como tu. O
teu desejo é que Cristo sirva de contrapeso. Ele agradece muito o
cumprimento, mas não aceitará um trabalho servil. “Oh”, dizes tu, “Ele
me ajudará
na minha salvação.” Sim, sei que isso lhe agradaria; mas Cristo é um
tipo bem diferente de Salvador; quando pega algo para fazer, Sua
tendência é executar tudo Ele mesmo. Você pode achar estranho, mas Ele
não gosta de assistência. Quando formou o mundo, Ele não pediu ao anjo
Gabriel para resfriar a matéria incandescente com suas asas, Ele fez
tudo sozinho. Com a salvação é a mesma coisa: Ele diz: “a minha glória,
pois, não a darei a outrem”. E peço que te lembres, se professaste
seguir a Cristo, mas ainda tens uma pequena porção de si mesmo nisso,
que existe uma passagem das Escrituras que é apropriada
para ti, e podes remoer a teu bel-prazer: “E, se é pela graça, já não é
pelas obras; do contrário, a graça já não é graça.” Pois, se as
misturares, estragarás ambas. Vá para casa, amigo, e faça você mesmo um
mingau de fogo e água, tente manter em casa um leão e um cordeiro, e
quando for bem-sucedido, diga-me que fez obras e graça concordarem; e eu
lhe direi que você me contou uma mentira, pois as duas coisas são tão
essencialmente opostas que não podem concordar. Quem dentre vocês jogar
fora todas as boas obras, e vier a Jesus com isto: “Nada, nada, NADA
Nada em minhas mãos eu trago,
Simplesmente à cruz me agarro.
Cristo
lhe dará boas obras suficientes, Seu Espírito agirá em você e fará tudo
conforme Lhe apraz, e o tornará santo e perfeito; mas se você tentar
obter a santidade antes de Cristo, você começou do lado errado, e
procurou florescer antes de enraizar, e são inúteis os seus esforços.
Ismaeis, tremam diante dEle agora! Se alguns de vocês forem Isaques,
talvez se lembrem de que são filhos da promessa. Permanecei firmes. “Não
vos submetais, de novo, a jugo de escravidão, pois não estais debaixo
da lei, e sim da graça”.
Tradução: Mariza Regina de Souza
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