SERMÃO Nº
9
SERMÃO
MINISTRADO NA MANHÃ DE DOMINGO DO DIA 18 DE FEVEREIRO DE 1855 PELO REV. CHARLES
H. SPURGEON, EM EXETER HALL, STRAND, INGLATERRA
“Onde
está o Espírito do Senhor, aí há liberdade” — 2 Coríntios 3:17
A LIBERDADE é o direito natural de toda pessoa. Ela
pode ter nascido na pobreza; pode ter sido abandonada; seus pais podem ser
desconhecidos; mas a liberdade é seu direito inalienável. Ela pode ter a pele
negra; pode viver sem educação e sem instrução; pode ser tão pobre quanto a
própria pobreza; pode não ter sequer um palmo de chão para chamar de seu; pode
não ter roupas para vestir, salvo os trapos que a cobrem — mas, por mais pobre
que seja, a natureza a fez para ser livre — ela tem o direito de ser livre, e
se não for, é um direito seu e ela não pode sossegar até conquistá-lo!
A liberdade é a herança de todos os filhos e filhas
de Adão. Contudo, onde se pode encontrar liberdade sem religião? É verdade que
todos os homens têm direito à liberdade, mas é igualmente verdade que não a
encontramos em qualquer lugar, exceto onde está o Espírito do Senhor. “Onde
está o Espírito do Senhor, aí há liberdade”. Graças a Deus, a Inglaterra é um
país livre! Esta é uma pátria onde posso respirar e dizer que o ar não está
poluído com o gemido de um único escravo. Quando meus pulmões inspiram, sei que
o ar não está misturado com o vapor das lágrimas de uma só escrava, derramadas
pelo filho que lhe foi tomado. Esta terra é o lar da liberdade. Mas, por que é
assim? Para mim, não é tanto pelas nossas instituições quanto o é pelo Espírito
do Senhor presente aqui — o espírito da religião pura e verdadeira! Houve uma
época, lembrem-se, quando a Inglaterra não era mais livre que qualquer outro
país, quando os homens não podiam falar abertamente sobre seus sentimentos,
quando os reis eram déspotas, quando o Parlamento era apenas um símbolo. Quem
conquistou a liberdade para nós? Quem abriu as nossas cadeias? Com a direção de
Deus, digo que foram os homens religiosos — homens como o grande e ilustre
Cromwell, os quais ou tinham a liberdade de consciência ou morriam — homens
que, se não pudessem alcançar o coração dos reis, por serem insondáveis em sua
astúcia, preferiam derrubar governos a serem escravos. Devemos nossa liberdade a
esses homens — homens da estirpe dos Puritanos — homens que desprezaram o jogo
dos covardes e não submeteram seus princípios ao controle do homem. E se alguma
vez tivermos de manter a liberdade na Inglaterra (enquanto Deus permitir), será
pela liberdade religiosa — pela religião. A Bíblia é a Carta Magna da antiga
Bretanha! Suas leis, suas doutrinas quebraram nossos grilhões, e eles não podem
ser religados enquanto homens, com o Espírito de Deus no coração, proclamarem
suas verdades. Em lugar algum, salvo onde a Bíblia é aberta — em reino algum,
salvo onde o evangelho é pregado — a liberdade pode ser encontrada! Andando por
outros países, fala-se com apreensão; sente-se medo; sente-se como se uma mão
de ferro estivesse sobre sua cabeça; como se uma espada pairasse no ar; não se
é livre. Por quê? Porque se está sob a tirania causada pela falsa religião —
ali não existe a liberdade do protestantismo e, até que ela chegue, não pode
haver liberdade! Onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade, e em nenhum outro
lugar. Os homens falam sobre ser livre — descrevem governos ideais, repúblicas
platônicas ou paraísos owenistas(1), mas eles são apenas teóricos sonhadores.
Pois, não pode haver liberdade no mundo, salvo “onde está o Espírito do
Senhor”.
Comecei com esta ideia porque acho que as pessoas
do mundo devem saber que, se a religião não as salvar, mesmo fazendo muito por
elas, sua influência pode conquistar sua liberdade.
No entanto, a liberdade presente em nosso texto não
é desse tipo — é uma liberdade infinitamente maior e melhor! Por melhor que
seja a liberdade civil ou religiosa, a liberdade do nosso texto é muito mais
transcendente. É uma liberdade, caros amigos, que só os cristãos podem
desfrutar. Mesmo na Grã-Bretanha, há pessoas que ainda não provaram o doce
sabor da liberdade. Há quem tenha receio de falar como homem, que se encolhe e
se rebaixa, que se dobra e se humilha diante de qualquer um. Tal pessoa não tem
vontade própria, não tem princípios, não tem voz; não tem coragem e não
consegue se portar com independência! Livre é quem a Verdade torna livre. Quem
tem a graça divina no coração é livre, não precisa se dobrar diante ninguém,
tem o direito ao seu lado; tem Deus dentro do coração — é habitação do Espírito
Santo. É alguém de sangue real do céu. É um nobre, cujo título de nobreza é
verdadeiro; é um dos eleitos, distintos e escolhidos filhos de Deus, que não se
curva nem se encolhe indignamente. Não! Essa pessoa, junto com Sadraque,
Mesaque e Abede-Nego, vai mais rápido para a fornalha de fogo ardente — e junto
com Daniel — vai mais rápido para a cova dos leões, do que abre mão dos seus
princípios. Ela é livre, “onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade”, no
mais pleno, elevado e amplo sentido! Que Deus lhes conceda, meus amigos, esse
“Espírito do Senhor”, pois sem ele, mesmo num país livre, vocês podem ser
cativos; e, mesmo onde não há servos no corpo, vocês podem ser escravos na
alma. O texto fala de liberdade espiritual; portanto, agora, me dirijo aos
filhos de Deus. A liberdade espiritual, meus irmãos, é desfrutada por mim e por
você quando temos dentro de nós “o Espírito do Senhor”. No que isso implica?
Implica em ter havido uma época quando não tínhamos tal liberdade — quando
éramos escravos. Até há pouco tempo, todos nós que agora somos livres em
Cristo, éramos escravos do diabo: éramos levados cativos por sua vontade.
Falávamos em livre-arbítrio, mas o livre-arbítrio é um escravo. Nós nos
orgulhávamos de poder fazer o que quiséssemos; mas, ah, que liberdade
humilhante e ilusória nós tínhamos. Era uma liberdade fantasiosa. Éramos
escravos das nossas paixões e concupiscências — escravos do pecado; mas agora
estamos livres dele; fomos libertos do nosso tirano; alguém mais forte expulsou
o poderoso homem armado e nós estamos livres.
Vamos, então, examinar um pouco mais de perto em
que consiste a nossa liberdade.
1. Em primeiro lugar, meus amigos, “onde está o
Espírito do Senhor, aí há liberdade” da escravidão do pecado. Ah! Sei
que alguns ficarão emocionados quando eu falar sobre a escravidão do pecado.
Vocês conhecem o significado desse sofrimento. De todos os tipos de escravidão
e servidão deste mundo, nenhum é mais horrendo que a escravidão do pecado.
Podemos falar de Israel no Egito, preparando tijolos sem palha. Podemos falar
dos negros sob a chibata de feitores cruéis, e confesso serem estas servidões
horríveis de suportar; mas há um tipo de escravidão ainda pior — a escravidão
do pecador convicto quando é levado a sentir o peso da sua culpa; a escravidão
de alguém cujos pecados ladram sobre ele como cães de caça sobre um cervo
indefeso; a escravidão de alguém cujo peso do pecado está sobre seus ombros —
um fardo pesado demais para sua alma suportar — um fardo que o levará para
sempre às profundezas do tormento eterno, a menos que ele consiga escapar.
Vamos dar uma olhada numa pessoa assim. Ela nunca tem um sorriso no rosto; está
sempre carrancuda; está sempre séria e circunspecta; suas palavras são
nostálgicas; suas canções parecem lamúrias; seu sorriso é triste; e, mesmo nos
melhores dias, lágrimas quentes de angústia sulcam seu rosto como lava
incandescente. Pergunte-lhe o que ela é e ela dirá: sou uma “infeliz”.
Pergunte-lhe como ela é e ela confessará: sou a “miséria encarnada”.
Pergunte-lhe o que será dela e ela afirmará: “estarei perdida para sempre nas
chamas eternas, sem nenhuma esperança”. Ei-la sozinha em sua intimidade: quando
deita a cabeça no travesseiro, levanta e começa tudo de novo; à noite, os
tormentos povoam seus sonhos, e de dia, ela quase pode sentir aquilo com que
sonhou. Assim é o pecador convicto sob a escravidão. Eu já fui assim, e vocês
também, meus amigos. Falo com quem pode entender isso. Quem já passou pelo
sombrio “Desfiladeiro do Desespero”, quem já atravessou o negro vale da
penitência, quem já teve de beber o cálice amargo do arrependimento, sei que
dirá “amém” quando eu disser que, de todos os tipos de escravidão, esta é a
mais dolorosa — a escravidão da lei, o cativeiro da corrupção. “Desventurado
homem que sou! Quem me livrará” dessa servidão? Entretanto, o cristão é livre;
agora ele pode sorrir, embora antes tenha chorado; ele pode se regozijar,
embora antes tenha lamentado. “Agora”, diz ele, “não há mais pecado em minha
consciência; não há mais crime sobre o meu peito; não preciso mais caminhar
pela terra com receio de cada sombra e de cada homem que encontrar, pois meu
pecado foi lavado; não há mais culpa em meu espírito; ele é puro, é santo; não
mais repousa sobre mim o desprazer de Deus; meu Pai está sorrindo: vejo Seus
olhos — eles me olham com amor; ouço Sua voz — está cheia de ternura. Estou
perdoado, estou perdoado, estou perdoado! Salve, Tu que quebras os grilhões!
Glorioso Jesus! Ah! Ainda me lembro de quando senti o fim da escravidão. Vi
Jesus na cruz bem diante de mim; pensei nEle e, quando meditei na Sua morte e
no Seu sofrimento, pareceu-me vê-lO olhando para mim; e quando Ele me viu,
olhei para Ele e disse:
“Jesus, amado da minh’alma,
Deixa-me
reclinar a cabeça em Teu peito”.
E
Ele disse: “Vem”, eu corri para Ele e O abracei; e quando Ele me soltou, fiquei
me perguntando onde estava o meu fardo. Ele se fora! Lá, no sepulcro, lá estava
ele, e me senti leve como o ar; como um silfo alado eu podia voar sobre as
montanhas dos problemas e do desespero; ah, quanta liberdade e felicidade eu
senti! Eu podia saltar de alegria, pois tinha muito a ser perdoado e fui
liberto do pecado. Amados, esta é a primeira liberdade dos filhos de Deus.
“Onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade” da escravidão do pecado.
2. Liberdade da condenação do pecado — O que é isso? A morte
eterna — o sofrimento sem fim — esta é a triste condenação do pecado. Não é bom
recear que, se eu morresse hoje, poderia estar no inferno. Para mim, não é uma
coisa agradável ficar aqui e acreditar que, se eu caísse, iria parar direto nos
braços de Satanás, e ele me atormentaria por toda a eternidade. Porque,
senhores, este pensamento ia me torturar; ia ser a pior maldição da minha
existência. De bom grado, preferiria estar morto e apodrecendo no túmulo a
andar pela terra com a simples ideia de sofrer uma condenação como essa.
Algumas pessoas sabem muito bem que, se morrerem agora, sua porção será o
inferno. Não tente negar essa realidade; acredite na Bíblia e leia nela o seu
destino: “quem, porém, não crer será condenado”. Você não pode se colocar entre
os crentes. Ainda está sem Cristo. Você já está convicto dos seus pecados, a
ponto de pensar que Deus não seria justo se não o punisse? Já sentiu o quanto
tem se rebelado contra Ele com seus pecados ocultos, ah, os pecados ocultos, e
com suas transgressões flagrantes, a ponto de achar que, se Ele não o punir,
deveria deixar de ser Deus e abandonar Seu cetro? E, então, você treme, geme e
clama com medo da condenação do pecado. Enquanto dormia, você sonhou que viu o
lago de ondas de fogo, cujos vagalhões ardem com enxofre; e todos os dias
andava na terra com pavor de que o próximo passo o lançasse no poço sem fundo.
Mas você cristão, você está livre da condenação do pecado. Sabia disso?
Consegue reconhecer isso? Neste exato momento você está livre da condenação do
pecado. Você não só está perdoado, mas também nunca será punido por conta dos
seus pecados, não importa o quão grandes ou assustadores eles sejam.
"No momento em que crê o pecador
E confia no Deus crucificado
Pela salvação no sangue redentor
Seu
pecado é de vez perdoado."
E,
assim, o crente nunca será punido por conta dos seus pecados. Crente punido?
Não existe isso! As aflições desta vida mortal não são punições para os
cristãos; são correções paternais, não condenações de um juiz. Para mim não
haverá inferno; que ele queime e fumegue; se sou crente em Cristo, jamais minha
porção será lá. Para mim não haverá tortura eterna, não haverá tormento, pois
se sou justificado, não posso ser condenado. Jesus sofreu o castigo em meu
lugar e Deus seria injusto se me punisse novamente; pois Cristo já padeceu e
satisfez Sua justiça para sempre. Quando minha consciência me diz que sou
pecador, eu digo a ela que estou no lugar de Cristo e Ele está no meu lugar. É
verdade, sou pecador, mas Cristo morreu pelos pecadores. É verdade, mereço a
punição; mas, se meu resgatador morreu, irá Deus cobrar duas vezes a mesma
dívida? Impossível! Ele a cancelou. Nunca houve e nunca haverá um crente no
inferno. Estamos livres da condenação e não precisamos mais tremer por conta
dela. No entanto, por mais horrível que seja transgressões se é eterna, e
sabemos que é, nada é para nós, pois nunca iremos sofrê-la. O céu abrirá suas
portas de pérola para nos deixar entrar; mas os portões de ferro do inferno
estão trancados para sempre para todos os crentes. Ah, gloriosa liberdade dos
filhos de Deus!
3. Mas existe outro fator ainda mais surpreendente,
e ouso dizer que algumas pessoas irão fazer objeções a ele; contudo, é a
verdade de Deus e, se você não gosta, é melhor ler. Existe também a liberdade
da culpa do pecado. Esta é a maravilha das maravilhas. A partir do momento
em que passa a crer, o cristão não é mais culpado. Ora, se Sua Majestade, a
Rainha da Inglaterra, em sua bondade, poupa um assassino, dando-lhe
gratuitamente o perdão, esse homem não pode ser punido, mas ainda será culpado;
a Rainha pode lhe conceder mil perdões, e a lei não pode tocá-lo, mas ele ainda
será culpado; o crime estará sempre pairando sobre sua cabeça e ele será tido
por assassino enquanto viver. O cristão, no entanto, não é apenas liberto da
escravidão e do castigo, ele é também completamente absolvido da sua culpa.
Ora, isso é surpreendente. “O quê?”, você diz, “Então o cristão não é mais
pecador aos olhos de Deus?”. Eu lhe digo que ele, em si mesmo, ainda é pecador,
mas, na pessoa de Cristo, não é mais pecador que o anjo Gabriel; pois, assim
como são brancas as asas dos anjos, e impecáveis as vestes dos querubins, um
anjo não pode ser mais puro que um pecador que se tornou mais alvo que a neve
por ter sido lavado no sangue de Cristo. Entende, agora, como a própria culpa é
tirada do pecador? Eis-me aqui, um traidor culpado e condenado; Cristo vem para
me salvar; Ele me convida a sair da minha cela: “Ficarei no seu lugar; serei
seu substituto; serei o pecador; toda a sua culpa será imputada a Mim; morrerei
por isso; sofrerei por isso; assumirei todos os seus pecados”. Então, Ele se
despoja das Suas vestes e diz: “Tome, vista-as; você será considerado como se
fosse Cristo; você será o justo. Tomarei o seu lugar e você tomará o meu”.
A seguir, Ele lança sobre mim o Seu manto glorioso de perfeita justiça e,
quando o vejo, exclamo: “Que estranho, minh’alma, estás vestida com as roupas
do meu irmão mais velho”. A coroa de Jesus está sobre minha cabeça, Seus trajes
imaculados cingem meus lombos e Suas sandálias douradas calçam meus pés. E
agora, existe algum pecado? O pecado está em Cristo; e a justiça está em mim.
Justiça, chame o pecador! E a voz da Justiça diz: “Tragam o pecador!” O pecador
é trazido. Quem é apresentado pelo carrasco? O Filho de Deus encarnado. É
verdade, Ele não cometeu pecado; Ele não teve culpa; mas o pecado Lhe foi
imputado: ficar no lugar do pecador. A justiça agora grita: “Tragam o justo, o
perfeitamente justo”. Quem vejo? Ah, a Igreja é trazida, cada crente é trazido.
A Justiça pergunta: “São estes os perfeitamente justos?”. “Sim, são eles”. O
que Cristo fez é deles; o que eles fizeram foi colocado sobre Cristo; Sua
justiça é deles; e seus pecados são Dele. Ímpios, eu lhes pergunto: “Isso não
parece estranho e surpreendente?" Podem rir e dizer que é hipercalvinismo.
Podem dizer o que quiserem. Deus o estabeleceu como Sua verdade; Ele nos fez
justos por meio da justiça imputada de Cristo. E agora, se sou mesmo crente,
estou livre de todo e qualquer pecado. Não há crime contra mim no livro de
Deus; o registro foi apagado para sempre; foi cancelado; e não só não posso ser
punido, como não tenho nada para ser punido. Cristo expiou o meu pecado e
recebi a Sua justiça. “Onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade”.
4. Fora isso, o cristão, além de liberto da culpa e da condenação do pecado, é
liberto também do domínio do pecado. Todo mundo, antes de ser
convertido, é escravo das concupiscências. Os ímpios se gloriam de viver e
pensar livremente. Eles chamam a isso de liberdade — um copo cheio,
orgias, gritarias, impudicícias e dissoluções — liberdade, senhor! Que o
escravo mostre seus grilhões e os faça tinir em meus ouvidos, e diga: “Isto é
música e eu sou livre”. Mas o coitado é um pobre maníaco. Que o homem
acorrentado em sua cela, o louco de Belém, me diga que é rei e dê uma
gargalhada horrível; e eu digo, “Ah, pobre coitado, sei que se considera rei,
mas é néscio e louco”. Assim é com a pessoa do mundo que se diz livre. Livre?
Ela é escrava. Ela acha que é feliz, mas de noite, quando se deita, quantas
vezes não fica rolando na cama, insone e inquieta; e quando desperta, não diz:
“Ufa, que dia foi ontem — que dia!” E, embora mergulhe em mais um dia de
pecado, o “dia de ontem”, como um cão do inferno, rosna para ela e a persegue.
Sabe, senhor — pecado significa cativeiro e escravidão. Já tentou se livrar
dessa servidão? “Sim”, você diz, “já tentei”. No entanto, vou lhe dizer como
terminou. Quando tentou, seus grilhões ficaram ainda mais presos; suas
correntes ficaram mais apertadas. Um pecador sem a graça de Deus, tentando
endireitar a si mesmo, é como Sísifo rolando a pedra morro acima, a qual sempre
voltava com mais força. Um pecador sem a graça de Deus, tentando salvar a si
mesmo, está empenhado numa tarefa tão desesperadora quanto a das filhas de
Danau, que tentavam encher um grande tonel com baldes sem fundo. É como se
tivesse um arco sem corda, uma espada sem lâmina, uma arma sem munição. Ele
precisa de força. Concordo que até possa melhorar; mas será como se tivesse
aterrado um vulcão para semear flores ao redor da sua cratera; quando o vulcão
entrasse novamente erupção, jogaria a terra pra longe, e a lava incandescente
rolaria sobre as belas flores plantadas e devastaria tanto suas obras quanto
sua justiça. Um pecador sem a graça de Deus é um escravo: ele não pode libertar
a si mesmo dos seus pecados. No entanto, com o cristão não é assim! Será ele
escravo do seu pecado? É escravo quem é verdadeiramente nascido de Deus? Não,
não é! Ele não pode pecar, pois é nascido de Deus; não pode viver na impureza,
pois é herdeiro da imortalidade. Vós, miseráveis da terra, podeis ter propensão
às obras do mal, mas os príncipes de sangue celestial perseguem os atos de
justiça. Vós, pobres mundanos — vis e desprezíveis aos olhos de Deus — podeis
viver desonesta e injustamente, mas não o herdeiro do céu; ele ama o Senhor, e
está livre do poder do pecado; seu trabalho é justo e seu fim é a vida eterna.
Somos livres do domínio do pecado.
5. Mais uma vez: “Onde está o Espírito do Senhor,
aí há liberdade” em todas as atitudes santas de amor — liberdade do
medo servil da lei. Muitas pessoas são honestas por terem medo da polícia.
Muitas se comportam por temerem a opinião dos outros. Muitas são aparentemente religiosas
por causa dos seus vizinhos. Muita virtude é como o suco de uva — precisa ser
espremida antes que se possa obtê-la; não é uma como uma generosa gota de mel,
pronta para destilar livremente do favo. Ouso dizer que, se alguém não tem a
graça de Deus, seu trabalho é apenas trabalho escravo; ele tem de fazê-lo. Sei
que antes de receber a liberdade dos filhos de Deus, quando eu ia à Sua casa,
era por achar que devia ir; quando orava, era por temer a ocorrência de algum
infortúnio se não o fizesse; quando agradecia a Deus pela bênção recebida, era
por achar que não receberia outra se não fosse grato; quando fazia algo de bom,
era na esperança de ser galardoado no final e receber uma coroa no céu. Eu era
um pobre escravo, um mero gibeonita, rachador de lenha e tirador de água (Josué
9:27). Eu vibrava quando podia deixar de fazer alguma coisa. Se fosse por minha
vontade, eu nunca teria ido à igreja e nem teria religião — teria vivido no
mundo e seguido os caminhos de Satanás, e teria feito o que bem quisesse.
Quanto a justiça, eu era escravo; o pecado era minha liberdade. E você,
cristão, qual é a sua liberdade? O que o faz ir à casa de Deus?
“O amor faz seus pés
Rapidamente
obedecerem”
Qual
o motivo para dobrar os joelhos em oração? É o prazer de falar com o Pai que o
vê em secreto. Qual o motivo para por a mão no bolso e ser generoso? É o amor
pelos filhos necessitados de Deus e o privilégio de poder devolver algo para
Cristo pelo tanto que Ele já lhe deu. Qual o motivo para ser constrangido a
viver honesta, justa e sobriamente? Seria uma cela de prisão? Não, a prisão
poderia ser destruída, as sentenças condenatórias aniquiladas e as correntes
lançadas no mar, e ainda assim seríamos tão santos quanto somos agora. Alguns
dizem: “Então o senhor quer dizer que os cristãos podem viver como quiserem?”
Gostaria que pudessem, senhor. Se eu pudesse viver como desejo, sempre viveria
em santidade de vida. Se um cristão pudesse viver como deseja, iria viver como
deve. O pecado, para ele, é escravidão; mas a retidão, um prazer. Ah, se
pudesse viver como desejo, desejaria viver como devo. Se pudesse viver como
anseio, viveria como Deus me ordena. A maior felicidade do cristão é ser santo.
Não há escravidão para ele. Seja qual for a situação, ele não irá pecar; seja
qual for a tentação, não fosse pelo mal que ainda resta em seu coração, ele
jamais seria encontrado em pecado. A santidade é seu prazer; o pecado, sua
escravidão. Ah, pobres cativos que vêm à igreja e à capela por obrigação; ah,
pobres moralistas servis, honestos devido às algemas e sóbrios devido à prisão;
ah, pobres escravos! Nós não somos assim; não estamos debaixo da lei, mas
debaixo da graça. Podem nos chamar de antinomianos, se quiserem, e nos
gloriaremos ainda mais nesse título escandaloso; estamos livres da lei, mas
fomos libertos dela para obedecê-la ainda mais. O verdadeiro filho nascido de
Deus serve o Mestre como nunca o fez. Como diz o velho Erskine:
“Sua adorável presença não se pode desprezar
Quando guiados por Sua bondade sem par
Tão logo o amor eterno mostre o seu poder,
Todos são constrangidos a obedecer;
Tal amor os faz em retidão andar
Mais puros que Adão antes de pecar.”
6. Para concluir: “Onde está o Espírito do Senhor,
aí há liberdade” do medo da morte. Ó morte! Quantas delícias não
amargaste! Ó morte! Quantas farras não terminaste! Ó morte! Quantos banquetes
não estragaste! Ó morte! Quantos prazeres pecaminosos não tornaste em dor!
Amigos, peguem um telescópio e olhem para o passado, para alguns anos atrás — o
que veem? Lá longe, segurando sua foice, está a morte implacável. Ela vem
vindo, vem vindo, vem vindo; e o que vem atrás dela? Bem, isso depende de cada
um. Se vocês são filhos de Deus, há um ramo de palmeira; se não são, sabem o
que vem depois da morte — o inferno. Ó morte! Teu fantasma tem assombrado
muitas casas onde o pecado de outra forma teria reinado. Ó morte! Tua mão fria
tem tocado muitos corações lascivos, fazendo-os começar a temer o seu crime.
Ah, quanta gente é escrava do medo da morte. Metade das pessoas do mundo tem
medo de morrer. Alguns loucos entram na boca de um canhão e alguns tolos se
apresentam com as mãos ensanguentadas diante do tribunal do Criador; mas a maioria
tem medo da morte. Quem não tem medo de morrer? Vou lhe dizer. O crente. Medo
da morte! Graças a Deus, eu não tenho. A cólera pode vir novamente no próximo
verão — rogo a Deus que isso não aconteça; mas se acontecer, não faz diferença
para mim: vou trabalhar e visitar os doentes todos os dias e todas as noites,
até cair; e se ela me pegar, morte repentina é glória repentina. E é assim com
o mais fraco dos crentes neste recinto; o fantasma da separação não o faz
tremer. Às vezes podemos temer, mas quase sempre nos regozijamos. Sentamos
calmamente e pensamos na morte. O que é a morte? É uma portinhola pela qual
você tem de se dobrar para entrar no céu. O que é a vida? É uma tela fina que
nos separa da glória, a qual é gentilmente removida pela morte! Lembro-me da
frase de uma boa senhora que dizia: “Se tenho de morrer? Tenho mergulhado meus
pés no Jordão todos os dias antes do café da manhã nos últimos cinquenta anos e
o senhor acha que só agora tenho medo da morte?” Morrer, amados, nós morremos
centenas de vezes; “morremos dia após dia”; morremos toda manhã; morremos toda
noite ao dormir; pela fé nós morremos; e, assim, quando a morte vier, será
coisa do passado. Diremos: “Ah, morte! Somos velhos amigos; tens estado no meu
quarto todas as noites; falo contigo todas as manhãs; tenho teu crânio em minha
penteadeira; estou sempre pensando em ti. Morte! Tu virás, afinal, mas és uma
convidada benvinda; és um anjo de luz e a melhor amiga que já tive”. Por que,
então, temer a morte, se não existe o temor de Deus deixá-lo quando você
morrer? Vou contar uma anedota sobre uma senhora do País de Gales que, quando
estava às portas da morte, recebeu a visita de seu pastor. Ele lhe perguntou:
“Irmã, a senhora está afundando?(2)” Ela não disse uma palavra, mas olhou para ele
com um olhar incrédulo. Ele repetiu a pergunta: “Irmã, a senhora está
afundando?” Ela olhou para ele novamente, como se não acreditasse nas suas
palavras. Por fim, levantando-se um pouco da cama, ela disse: “Afundando?
Afundando? O senhor já viu um pecador afundar através de uma rocha? Se eu
estivesse na areia, poderia afundar; mas, graças a Deus, estou sobre a Rocha
Eterna, e sobre ela, ninguém afunda”. Como é gloriosa a morte! Venham, anjos,
venham! Oh, coortes do Senhor dos exércitos, abram, abram suas asas e nos levem
da terra; oh, serafins alados, levem-nos acima do alcance das coisas
inferiores; mas até que venham, eu cantarei:
“Uma vez que Jesus é meu, não temerei ser despido,
E, com prazer, das vestes de barro desprovido;
Morrer no Senhor é bênção da aliança,
Com
Jesus na glória, mesmo na morte há segurança.”
E agora, caros amigos, preciso rapidamente lhes mostrar o outro lado dessa
liberdade. Tentei lhes dizer, em poucas palavras, de que somos libertos.
No entanto, toda questão tem dois lados. Há também algumas coisas gloriosas para
as quais fomos libertos. Não só fomos libertos do pecado, no que se refere
à lei e ao medo da morte; também fomos libertos para fazer alguma coisa. Não
vou me delongar muito, apenas discorrer sobre algumas coisas para as quais
somos livres; pois, caros irmãos, “onde está o Espírito do Senhor, aí há
liberdade” e essa liberdade nos dá certos direitos e privilégios.
Em primeiro lugar, somos libertos para o estatuto
do céu. O céu tem um estatuto — uma Carta Magna — a Bíblia; e você, meu
irmão, tem direito a ela. Eis uma passagem escolhida: “Quando passares pelas
águas, eu serei contigo; quando, pelos rios, eles não te submergirão”. Você tem
direito a isso. Eis outra passagem: “Porque os montes se retirarão, e os outeiros
serão removidos; mas a minha misericórdia não se apartará de ti”. A isso
também. Eis outro trecho: “tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os
até ao fim”. E ainda a isso. “Onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade”.
A Bíblia fala sobre eleição: você tem direito a ela se for eleito. Fala também
sobre a não condenação dos justos e sobre a justificação: são seus direitos
também. Você tem direito a tudo quanto está na Bíblia. Ela é um tesouro
inesgotável da infinita provisão da graça. Ela é o banco do céu; você pode
retirar o quanto quiser, sem qualquer obstáculo ou impedimento. Não precisa
levar nada com você, exceto sua fé. Tenha tanta fé quanto puder e você será
bem-vindo a tudo quanto está na Bíblia. Nela não há promessa nem palavra que
não sejam suas. Nas profundezas da tribulação, ela lhe dará consolo. Em meio às
ondas de aflição, ela lhe dará ânimo. Quando as tristezas o rodearem, ela será
o seu auxílio. Ela é o símbolo do amor do Pai: que ela nunca seja calada ou
fique empoeirada. Você tem direito a ela — use, então, a sua liberdade.
A seguir, lembre-se de que você tem acesso ao trono da graça. Para os ingleses,
é um privilégio poder sempre recorrer ao Parlamento e, para os crentes, um
privilégio poder sempre recorrer ao trono da graça. Tenho livre acesso ao trono
de Deus. Se quiser falar com Ele amanhã de manhã, eu posso. Se hoje à noite
tiver o desejo de conversar com meu Mestre, posso ir até Ele. Tenho livre
acesso ao Seu trono. Não importa o quanto eu tenha pecado. Posso ir ao trono de
Deus e pedir perdão. Não importa quão pobre eu seja, posso ir e reivindicar Sua
promessa, e Ele providenciará tudo quanto for necessário. Tenho acesso ao trono
em todos os momentos — na escuridão da noite ou no calor do meio-dia. Onde quer
que eu esteja, mesmo se o destino me mandar para os confins da terra, sempre
serei admitido ao Seu trono. Use esse direito, amado, use esse direito. Ninguém
está à altura desse privilégio. Muitos vivem além de suas posses, gastando mais
do que recebem, mas nenhum cristão faz isso — quero dizer, nenhum cristão vive
à altura do seu rendimento espiritual. Ah, mas seu rendimento é infinito — um
rendimento de promessas — um rendimento de graça; e nenhum cristão jamais viveu
à altura desse rendimento. Alguns dizem: “Se tivesse mais dinheiro, eu teria
uma casa maior, teria cavalos, carros e outras coisas”. Tudo bem, mas eu
gostaria que os cristãos dissessem o mesmo. Gostaria que quisessem uma casa
maior e coisas melhores para Deus; que se mostrassem mais felizes e enxugassem
dos olhos suas lágrimas.
“A religião nunca foi designada
Para
diminuir o nosso deleite.”
Com
esse saldo no banco, e muito mais nas mãos, dado por Deus, você não tem o
direito de ser pobre. Ânimo! Regozije-se! Regozije-se! O cristão tem de viver à
altura da sua renda, não abaixo dela.
Portanto, se vocês têm o “Espírito do Senhor”, caros amigos, vocês têm direito
de adentrar à cidade. Muitos aqui são cidadãos londrinos, e ouso dizer que isso
deve ser um grande privilégio. Não sou cidadão de Londres, mas sou cidadão de
uma cidade muito melhor.
“Amado Salvador, se da cidade de Sião
Eu, pela graça, membro me tornar,
Mesmo havendo no mundo difamação
Em
Teu nome vou me gloriar”.
Você
tem livre acesso à cidade de Sião, mas não exerce esse direito. Quero dizer uma
coisa para alguns de vocês. Vocês são bons cristãos, mas não querem se unir à
igreja. Vocês sabem o que devem fazer, pois quem crê deve ser batizado; no entanto,
receio que tenham medo de serem sufocados, pois não se unem. E assim, a mesa do
Senhor é disposta todos os meses e é de livre acesso a todos os filhos de Deus,
mas vocês não participam dela. Por quê? Ela é um banquete. Não creio que se eu
fosse vereador da cidade iria perder o banquete municipal, e, sendo cristão,
não posso perder o banquete cristão, pois a Santa Ceia é o banquete dos santos.
“Nem os anjos dos céus provaram amor maior
Que
a graça redentora do nosso Salvador”
Algumas
pessoas nunca participaram da mesa do Senhor; por isso, estão menosprezando Sua
ordenança. Ele diz: “fazei isto em memória de mim”. Você tem acesso à cidade,
mas não entra. Você tem direito de adentrar aos seus portões, mas continua do
lado de fora. Entre, irmão, eu lhe dou a mão. Não fique mais do lado de fora da
igreja, pois você tem direito de entrar.
Assim, para concluir, você tem livre acesso a Jerusalém, a mãe de todos nós.
Este é o melhor de todos os presentes. Somos livres para entrar no céu.
Quando um cristão morre, ele conhece o “abre-te sésamo” para poder abrir as
portas do céu; ele sabe a senha para escancarar seus portões; ele tem a
pedrinha branca pela qual será reconhecido como um dos redimidos e poderá
passar pelo bloqueio; ele tem o passaporte para deixá-lo entrar nos domínios de
Jeová; ele tem liberdade para entrar no céu. E tu, não convertido, parece-me
ver-te na terra das sombras, vagando para cima e para baixo à procura da tua
porção. Chegas à porta do céu. Ela é grande e imponente. Nela está escrito: “Só
os justos podem entrar”. Ali parado, procuras o porteiro. Um arcanjo alto
aparece por cima do portão e tu dizes: “Anjo, deixa-me entrar”. “Onde está a
tua veste?” Tu procuras, mas não achas nenhuma; tens apenas alguns trapos da
tua própria confecção, mas nenhuma veste nupcial. “Deixa-me entrar”, tu dizes,
“pois os demônios estão no meu encalço para me atirar no abismo do além. Por
favor, deixa-me entrar”. No entanto, com um olhar silencioso, o anjo levanta o
dedo e diz: “lê o que está escrito ali”, e tu lês, “Ninguém, exceto os justos,
pode entrar”. Então, tu estremeces; teus joelhos batem um contra o outro; tuas
mãos tremem. Teus ossos de bronze se derretem; tuas costelas de ferro se
dissolvem. Ah! Lá estás tu, arrepiado, trêmulo e palpitante; mas não por muito tempo,
pois uma voz horripilante te lança por terra e grita: “Aparta-te de mim,
maldito, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos”. Ah, caros
leitores, será essa a vossa porção? Meus amigos, porque vos amo, digo-vos hoje
e espero sempre dizer: será essa a vossa sorte? Não tereis liberdade de entrar
na cidade? Não buscareis o Espírito que dá liberdade? Ah! Sei que, por vós
mesmos não o tereis; e alguns, talvez, jamais o tenham. Ó Deus, concede que
este número seja bem pequeno e que o número dos salvos seja muito grande!
“Descansa, minh’alma, no resgate
Do grande Sumo Sacerdote
Do cativeiro Ele te libertou
Confia no sangue que derramou
Não temas ser banida por Deus
Pois, Jesus por ti morreu.”
(1) Robert Owen: rico industrial inglês nascido em Newtown, Montgomeryshire, País de Gales, que se transformou em um dos mais importantes socialistas utópicos mediante a criação de várias comunidades industriais.
(2) trocadilho intraduzível para o português, uma vez que o verbo sink pode significar tanto “afundar” como “piorar, decair” (4 4 become worse/sad ━ http://online.macmillandictionary.com/mc_au2/macmil.htm)
Tradução: Mariza Regina de Souza