sexta-feira, 19 de maio de 2017

O Tabernáculo do Altíssimo




Sermão nº 267
Ministrado na manhã de domingo, 14 de agosto de 1859
pelo Rev. C. H. Spurgeon
no Music Hall, Royal Surrey Gardens



“No qual também vós juntamente estais sendo edificados para habitação de Deus no Espírito”. Efésios 2:22



Sob a VELHA dispensação mosaica, Deus tinha um lugar de habitação visível entre os homens. A brilhante shekinah era vista por entre as asas dos querubins que cobriam o propiciatório; e, durante a peregrinação de Israel no deserto e, tempos depois, no templo, quando eles já estavam estabelecidos em sua própria terra, havia uma manifestação visível da presença de Jeová no lugar dedicado ao Seu serviço. Ora, tudo o que estava sob a dispensação mosaica era apenas um tipo, uma figura, um símbolo de algo mais elevado e mais nobre. Aquela forma de adoração era, por assim dizer, uma série de sombras, das quais o evangelho é a essência. É muito triste, no entanto, que ainda hoje haja tanto judaísmo em nosso coração, que voltemos com tanta frequência aos pobres elementos da lei ao invés de seguir em frente, vendo neles tipos das coisas espirituais e celestiais às quais devemos aspirar. É deplorável que ainda ouçamos algumas pessoas falando assim. Seria melhor que elas abraçassem o credo judaico de uma vez por todas. Quero dizer, é lamentável ouvir o que algumas pessoas falam sobre os prédios onde prestamos culto. Lembro-me de certa vez ter ouvido um sermão sobre o seguinte texto: “Se alguém destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá” (1 Coríntios 3:17). A primeira parte do sermão foi gasta com um anátema infantil contra qualquer um que se atrevesse a realizar um ato mundano dentro das dependências da igreja ou que, durante a feira da semana seguinte, apoiasse a trave da barraca nalguma parte do prédio, o qual, me pareceu, ser o deus do homem que ocupava o púlpito. Será que existe algum lugar como o Santo Lugar? Será que existe um local onde hoje Deus habite em particular? Não sei. Ouçam as palavras de Jesus: “podes crer-me que a hora vem, quando nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai… Mas vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque são estes que o Pai procura para seus adoradores” (João 4:21, 23). Lembrem-se também das palavras do apóstolo em Atenas: “O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, sendo ele Senhor do céu e da terra, não habita em santuários feitos por mãos humanas” (Atos 17:24).

       Quando as pessoas falam sobre lugares santos, parecem não saber como se expressar. Será que a santidade pode habitar em tijolos e cimento? Será que existe uma coisa como um campanário sagrado? Seria possível existir em algum lugar algo como uma janela moral ou um batente religioso? Fico espantado, realmente espantado, quando penso no quanto a mente de homens que imputam virtudes morais a tijolos e cimento, pedras e vitrais, está enganada. Digam-me, como esse tipo de consagração pode ser profunda, como pode ser sublime? Será que cada corvo acima deste prédio está voando em ar sagrado? Com certeza, tão irracional quanto isso é imaginar que os vermes que estão comendo o corpo de um anglicano no cemitério sejam vermes consagrados e que, devido a isso, uma parede de tijolos ou um caminho de pedras seja necessário para proteger os corpos dos santos dos vermes profanos que possam vir do lado dos dissidentes. Vou dizer novamente, esse tipo de infantilidade, tal como o papado ou o judaísmo, é uma vergonha para este século. No entanto, ainda assim, todos nós nos encontramos de tempos em tempos fazendo a mesma coisa. Sorrir diante disso nada mais é do que empurrar o problema com a barriga, um erro no qual podemos incorrer facilmente. Uma insensatez em que todos podemos cair. Nós sentimos certa reverência pelas capelas singelas, sem muita pompa; sentimos uma espécie de conforto quando estamos sentados num lugar que, de alguma forma, acreditamos ser sagrado. 
          Agora, se possível, e talvez seja preciso muita firmeza e mente aberta para isso — abandonemos de uma vez por todas qualquer ideia de santidade ligada a algo que não seja um agente ativo consciente; livremo-nos de todas as superstições que dizem respeito a lugares. Dependendo do que for, um local é tão santo quanto outro e, onde quer que encontremos corações sinceros cultuando reverentemente a Deus, naquele momento, o lugar se torna a casa de Deus. No entanto, mesmo gozando de grande conceito religioso, se o lugar não tiver um único coração consagrado, ali não é a casa de Deus; pode ser a casa de alguma religião, mas não a casa de Deus. “Mas, mesmo assim”, alguém pode dizer, “segundo o que senhor disse, Deus tem uma habitação, não é”? Sim, e é sobre essa casa de Deus que vou falar nesta manhã. Existe, sim, uma casa de Deus, mas não é uma estrutura inanimada, é um templo vivo e espiritual. “No qual”, Cristo, “também vós juntamente estais sendo edificados para habitação de Deus no Espírito” (Efésios 2:22). A casa de Deus é edificada com homens e mulheres convertidos, e a igreja de Deus, que Cristo comprou com Seu sangue, é o edifício divino, a estrutura onde Deus habita até o dia de hoje. No entanto, gostaria de observar outra coisa com relação aos lugares de culto. Creio que, embora isso não seja nenhuma sacralização das superstições ligadas a eles, ao mesmo tempo há uma espécie de santidade associada a esses locais. Onde quer que Deus abençoe a minha alma, sinto que ali é a casa de Deus, e a própria porta do céu. Não porque as pedras sejam sagradas, mas porque é onde me encontro com Deus e as recordações que tenho do lugar o tornam santo para mim. O lugar em que Jacó se deitou para dormir, e onde depois erigiu um altar, durante algum tempo foi apenas seu quarto, mas seu quarto não era outra coisa senão a casa de Deus. Em vossas casas, tendes salas, espero, e aposentados mais santificados na verdade do que as mais belas catedrais já construídas, cujas torres se elevam ao céu. No lugar onde nos encontramos com Deus há santificação, não no lugar em si, mas naquilo que está associado a ele. Ali, onde mantemos comunhão com Deus e onde Deus descobre o Seu braço, mesmo sendo um celeiro, uma sebe, um pântano ou o lado de uma montanha, é a casa de Deus para nós e, naquele momento, se torna santo. No entanto, não tão santo a ponto de o venerarmos com temor supersticioso, mas apenas santo, pelas recordações das benditas horas passadas em santa comunhão com Deus. E, assim, deixando essa questão de lado, vou lhes apresentar a casa que Deus edificou para Sua habitação.
         Nesta manhã, portanto, vamos falar sobre a igreja — primeiro, como edifício; depois, como habitação; e por último, como aquilo em que ela em breve ela tornará, ou seja — um glorioso templo.

        1. Primeiramente, então, falaremos sobre a igreja como EDIFÍCIO. E, aqui, antes de qualquer outra coisa, faremos uma pausa para perguntar o que é a igreja — o que é a igreja de Deus? Certo grupo reclama para si o título de a igreja, enquanto outras denominações o disputam calorosamente. A igreja não pertence a nenhum de nós. A igreja de Deus não se resume a alguma denominação de homens em particular; a igreja de Deus é constituída por aqueles cujos nomes estão escritos no livro da escolha eterna de Deus; aqueles que foram comprados por Cristo no madeiro, que são chamados por Deus pelo Seu Santo Espírito e que, vivificados por esse mesmo Espírito, participam da vida de Cristo e se tornam membros de Seu corpo, de Sua carne e de Seus ossos. Essas pessoas são encontradas em qualquer denominação, entre todos os tipos de cristãos; alguns estão vagando por onde nem imaginamos; um ou outro está escondido no meio das trevas da maldita igreja romana; às vezes, como se por acaso, há alguém ligado a alguma seita, distante de seus irmãos, mal tendo ouvido falar deles, mas mesmo assim conhecendo a Cristo, pois a vida de Cristo está nele. Ora, esta igreja de Cristo, o povo de Deus, no mundo inteiro, seja porque nome for conhecida, é aquela que nosso texto compara a um edifício no qual Deus habita.

          Bom, agora, preciso fazer uma pequena alegoria a respeito deste edifício. A igreja não é um amontoado de pedras, é um edifício. Seu Arquiteto a projetou na eternidade. Parece até que O vejo, lá nos tempos eternos, fazendo o primeiro esboço da Sua igreja. “Aqui”, diz Ele em Sua sabedoria eterna, será a pedra angular, e ali o pináculo”. Eu O vejo determinando o seu comprimento, a sua largura; designando os lugares das portas e dos portões com incomparável habilidade, planejando cada detalhe, sem deixar nada de fora. Também vejo esse poderoso Arquiteto escolhendo para Si cada pedra do edifício, ordenando seu tamanho e sua forma; estabelecendo em Seu grandioso plano a posição de cada uma delas: se brilhará na frente, se ficará escondida na parte detrás ou se ficará incrustada bem no meio da parede. Eu O vejo fazendo não apenas o esboço, mas todo o seu conteúdo; tudo sendo ordenado, decretado e estabelecido no pacto eterno, o plano divino do poderoso Arquiteto no qual a igreja deve ser edificada. Olhando com atenção, vejo o Arquiteto escolhendo uma pedra angular. Ele olha para o céu e lá estão os anjos, aquelas pedras brilhantes; Ele olha para cada um deles, de Gabriel para baixo, e diz, “Nenhum de vocês servirá. Preciso de uma pedra angular que suporte todo o peso do edifício, pois todas as outras deverão se apoiar nela. Gabriel, não servirás! Rafael, serás posto de lado; não posso edificar contigo”. Contudo, era preciso achar uma pedra, uma que fosse tirada da mesma pedreira que as demais. Onde poderia ser encontrada? Será que alguém serviria como pedra angular desse poderoso edifício? Ah, não! Nem os apóstolos, nem os profetas, nem os mestres serviriam. Mesmo com todos juntos, seria como fazer o alicerce em areia movediça, a casa logo ruiria. Mas, vejam como a mente divina resolveu o problema: “Deus se tornará homem, totalmente homem, e assim será da mesma substância que as demais pedras do templo, mas ainda será Deus e, por isso, será forte o suficiente para sustentar todo o peso dessa poderosa estrutura, cujo topo chegará ao céu”. Vejo o lançamento dessa pedra fundamental. Ouve-se alguma canção nesse momento? Não. Ali só há pranto. Os anjos reunidos olham tristes para os homens e choram; as harpas do céu estão vestidas de pano de saco e delas não sai nenhum som. Os anjos cantaram de júbilo na criação do mundo, por que não cantam agora? Olho para cá e vejo a razão. Aquela pedra está assentada em sangue, aquela pedra angular não podia estar em outro lugar senão no seu próprio sangue. Ela devia ser assentada com cimento vermelho drenado das suas próprias veias sagradas. E ali Ele jaz, a primeira pedra do edifício divino. Anjos, cantai novamente, já acabou! A pedra fundamental está lançada; a terrível cerimônia já terminou. Agora, de onde serão tiradas as outras pedras para a construção do templo? A primeira está assentada, onde estão as demais? Vamos retirá-las das bandas do Líbano? Podemos encontrar essas pedras preciosas nas jazidas do rei? Não. Para onde voais, trabalhadores de Deus? Aonde vais? Onde estão as pedreiras? E eles respondem: “Vamos cavar nas pedreiras de Sodoma e Gomorra, nas profundezas do pecado de Jerusalém e no meio do pecado de Samaria”. Vejo-os revirando o lixo. Observo-os enquanto escavam a terra e, finalmente, voltam com as pedras. Mas como elas são ásperas, como são duras, como são brutas! Sim, mas essas pedras são exatamente aquelas que foram ordenadas na eternidade, no decreto, e devem ser essas, não outras. No entanto, é preciso haver uma transformação. Elas precisam ser trabalhadas e moldadas, lapidadas e polidas, e colocadas em seus lugares. Vejo os operários na obra. A grande serra da lei corta a pedra, depois vem o cinzel do evangelho para lapidá-la. Vejo as pedras assentadas em seus lugares e a igreja se levantando. Os ministros, como mestres de obras, correm ao longo das paredes, colocando cada pedra espiritual em seu lugar; e cada pedra está apoiada naquela imensa pedra angular, e cada uma delas confia no sangue de Jesus Cristo e encontra segurança e força nEle, a pedra angular, eleita e preciosa. Conseguem ver o edifício em pé, com cada escolhido de Deus sendo admitido nele, chamado pela graça e vivificado? Veem as pedras vivas unidas pelo amor sagrado e pelo santo amor fraternal? Já entraram nesse edifício e viram como essas pedras se apoiam umas nas outras, carregando os fardos umas das outras, cumprindo assim a lei de Cristo? Percebem como a igreja ama a Cristo e como seus membros amam uns aos outros? Como, em primeiro lugar, a igreja está unida à pedra angular e depois cada pedra está ligada à seguinte, a seguinte à subsequente e assim por diante, até que todo o edifício seja um? Vejam! A estrutura se levanta, é concluída e, finalmente, é um edifício. Agora, pois, abram bem os olhos e vejam como esse edifício é glorioso — a igreja de Deus. As pessoas falam do glamour da sua estrutura arquitetônica — de fato, é uma estrutura arquitetônica; não segundo os modelos gregos ou góticos, mas segundo o modelo do santuário visto por Moisés no santo monte. Conseguem vê-la? Já viram uma estrutura tão graciosa como essa — impregnada de vida em cada parte? Sobre aquela pedra única estão sete olhos, e cada pedra cheia de olhos e de corações. Já tiveram um pensamento tão grandioso como este — um edifício construído de almas — uma estrutura feita de corações? Não há lugar como o coração para alguém descansar. Ali uma pessoa pode encontrar paz com seu irmão; mas, aqui é a casa onde Deus Se deleita em habitar — construída de corações vivos, todos pulsando com santo amor — construída de almas redimidas, os escolhidos do Pai, comprados pelo sangue de Cristo. Seu topo está no céu. Parte deles está acima das nuvens. Muitas das pedras vivas estão agora no pináculo do paraíso. Nós estamos aqui embaixo, o edifício se ergue, o prédio sagrado está subindo e, assim como a pedra angular sobe, todos nós precisamos subir até que, finalmente, toda a estrutura, desde a fundação até o pináculo, seja elevada ao céu, permanecendo lá para sempre — a nova Jerusalém — o templo da majestade de Deus.

         Ainda com relação a este edifício, tenho mais uma ou duas observações a fazer antes de passar para o próximo ponto. Toda vez que os arquitetos planejam uma construção, eles cometem erros no projeto. Até o mais cuidadoso se esquecerá de alguma coisa; até o mais inteligente descobrirá algo errado. Contudo, observem a igreja de Deus; ela é edificada com precisão e, no final, nenhum erro será encontrado. Talvez você, meu querido irmão, seja apenas uma pedrinha do templo, mas pode pensar que deveria ter sido uma pedra maior. No entanto, não existe engano algum. Você tem apenas um talento; e isso é suficiente para você. Se tivesse dois, poderia comprometer o edifício. Talvez você tenha sido colocado numa posição obscura e esteja dizendo: “Ah, se eu tivesse alguma importância na igreja!” Se você tivesse alguma importância, talvez estivesse no lugar errado; e só uma pedrinha fora do lugar, numa arquitetura tão delicada quanto essa, poderia estragar tudo. Você está onde deveria estar; fique aí. Confiando nisso, não haverá erro. Quando, afinal, estivermos ao redor do edifício, observando suas paredes e contando seus baluartes, cada um de nós dirá: “Quão gloriosa é Sião”! Quando nossos olhos forem iluminados e nossos corações instruídos, cada parte do edifício chamará nossa atenção. A pedra do topo não é a base, nem a base está no topo. Cada pedra tem a forma certa; o material todo é como deveria ser e a estrutura é adequada para o grande fim, a glória de Deus, o templo do Altíssimo. Portanto, podemos ver neste edifício de Deus Sua infinita sabedoria.

       Outra coisa ainda deve ser observada, qual seja, sua força inexpugnável. Esta habitação de Deus, esta casa que não é feita por mãos humanas mas é edifício de Deus, muitas vezes é atacada, contudo, nunca foi tomada. Quantos inimigos têm batido contra suas velhas muralhas! No entanto, sempre batem em vão. “Levantaram-se os reis da terra, e as autoridades ajuntaram-se à uma” (Atos 4:26), e o que aconteceu? Eles vieram contra ela, cada qual com seus valentes, e cada um com a espada desembainhada, e o que lhes aconteceu? O Todo Poderoso os dispersou no Hermon como neve em Zalmom. Como a neve é dispersa da montanha pelo sopro da tempestade, assim também, ó Deus, Tu os dispersa e eles são consumidos pelo sopro das Tuas narinas.

E então, Sião será para nossas almas habitação

Pois nem a ira de Roma ou do inferno temerão

A igreja não está em perigo, e nunca poderá estar. Que venham os inimigos, ela pode resistir. Em sua impassível majestade, em seu silêncio forte como uma rocha, ela lhes oferece resistência. Que venham e sejam feitos em pedaços, que se lancem contra ela e conheçam o caminho certo da sua própria destruição. Ela está segura, e continuará assim até o final. Portanto, muito pode ser dito sobre a sua estrutura; ela é edificada pela sabedoria infinita e está totalmente segura.

          E também podemos acrescentar que ela é gloriosa pela sua beleza. Jamais houve uma estrutura como esta. Ela é um banquete diário para os olhos desde o amanhecer até a madrugada. O próprio Senhor Jesus Se deleita nela. A arquitetura da Sua igreja é tão agradável a Deus que Ele Se regozija nela como nunca o fez com o mundo. Quando Deus fez o mundo, Ele ergueu as montanhas, aprofundou os mares e cobriu os vales de relva; fez todas as aves dos céus e todas as feras do campo; sim, e fez o homem à Sua própria imagem; e, quando viram tudo isso, os anjos cantaram e se regozijaram. Mas Deus não cantou; para Ele, não havia razão suficiente para um cântico dizer: “Santo, Santo, Santo”. Ele podia dizer que tudo era bom; havia uma bondade intrínseca naquilo tudo; mas não a bondade moral da santidade. No entanto, quando edificou Sua igreja, Deus cantou; e, às vezes, penso que esta é a passagem mais extraordinária de toda a Palavra de Deus, onde Ele é representado cantando: “O SENHOR, teu Deus, está no meio de ti, poderoso para salvar-te; ele se deleitará em ti com alegria; renovar-te-á no seu amor, regozijar-se-á em ti com júbilo” (Sofonias 3:17). Pensem, meus irmãos, no próprio Deus contemplando Sua igreja: sua estrutura é tão justa e tão bela que Ele Se regozija em Sua obra e, enquanto cada pedra é colocada no seu devido lugar, a Divindade canta. Será que já houve uma canção como essa? Sim, venham, cantemos e exaltamos o nome do Senhor; louvem Aquele que louva a Sua igreja — Aquele que fez dela o Seu lugar especial de habitação.

          Assim sendo, em primeiro lugar, vimos a igreja como um edifício.

          2. No entanto, a verdadeira glória da igreja de Deus consiste no fato de que ela não é apenas um edifício, ela é também uma HABITAÇÃO. Talvez haja muita beleza em uma construção vazia, mas há sempre um pensamento melancólico associado a ela. Viajando pela nossa pátria, com frequência nos depararmos com uma torre ou um castelo em ruínas; são construções bonitas, mas não são alegres. Há certa tristeza associada a elas. Quem gosta de palácios abandonados? Quem quer que a nação lance fora seus filhos e que suas casas fiquem desabitadas? Contudo, há sempre alegria numa casa iluminada e mobiliada, onde há o som de pessoas. Amados, a igreja tem isto para sua glória especial: ela é uma casa habitada, e é a habitação de Deus por intermédio do Espírito. Quantas igrejas há que são apenas casas, não habitações! Posso descrever-lhes uma igreja que se diz igreja de Deus: é um edifício de tijolos que tem como base alguma antiga tradição, mas não a Palavra de Deus. Sua disciplina é exercida de acordo com suas próprias regras e suas práticas religiosas têm a sua própria liturgia. Você entra nessa igreja e a cerimônia é imponente; talvez, durante algum tempo, o culto inteiro o atraia; mas você sai de lá consciente de que não encontrou vida com Deus naquele lugar — aquela é uma casa, mas uma casa sem moradores. Talvez seja uma igreja na aparência, mas não é uma igreja onde o Santo habite; é uma casa vazia que logo estará arruinada e cairá. Receio que isso seja verdade em relação a muitas das nossas igrejas, estabelecidas e protestantes, assim como em relação à igreja de Roma. Existem muitas igrejas que são apenas uma porção de formalidades enfadonhas e sem sentido, onde não há vida com Deus. Poderíamos prestar culto junto com seus membros, dia após dia, mas nosso coração nunca bateria mais forte, nosso sangue nunca saltaria nas veias, nossa alma nunca seria revigorada, pois a igreja é uma casa vazia. Sua arquitetura pode ser bonita, mas seu depósito está vazio, não há mesa posta, não há regozijo, não há o abate de um bezerro cevado, não há dança, não há canto de alegria. Amados, precisamos ter cuidado para que nossas igrejas não se tornem assim, para que não sejamos uma associação de pessoas sem vida espiritual e, consequentemente, casas vazias, pois Deus não está lá. No entanto, a verdadeira igreja, aquela que é visitada pelo Espírito de Deus, onde há conversão, instrução, devoção e outras coisas semelhantes, é conduzida pela influência viva do próprio Espírito — essa igreja tem Deus como seu habitante.

          E, agora, vamos justamente gastar algum tempo com esse doce pensamento. Uma igreja edificada de almas vivas é a própria casa de Deus. O que isso significa? Vou lhes dizer. Uma casa é um lugar onde a pessoa se consola e se anima. Fora dela, lutamos contra o mundo e ficamos tão tensos que podemos nos meter num mar de confusões, as quais podem não ser levadas pela correnteza. Lá fora, entre os homens, encontramos pessoas cuja linguagem nos é estranha e que, com frequência, nos machucam profundamente e nos deixam arrasados. Lá, sentimos que precisamos estar sempre em guarda. Muitas vezes poderíamos dizer: “A minha alma está entre leões, e eu estou entre aqueles que estão abrasados com o fogo do inferno” (Salmo 57:4). No mundo, encontramos pouco descanso para um dia de trabalho, mas, quando chegamos em casa, somos consolados. Nosso corpo exaurido é revigorado. Tiramos a armadura que estávamos usando e não lutamos mais. Não vemos mais a face do estranho, só olhos radiantes de amor por nós. Não ouvimos palavras dissonantes aos nossos ouvidos. O amor fala e nós reagimos. Nossa casa é o nosso lugar de alívio, consolo e descanso. Ora, Deus chama Sua igreja de habitação — Seu lar. Vejam-nO quando Ele está do lado de fora: Ele troveja e eleva Sua voz sobre as águas. Ouçam-nO, Sua voz quebra os cedros do Líbano e faz a corça dar cria. Observem-nO enquanto guerreia, conduzindo Sua carruagem de poder, levando os anjos rebeldes sobre as ameias do céu até as profundezas do inferno. Contemplem-nO enquanto Ele Se levanta na majestade da Sua força. Quem é este que é tão glorioso? Ele é Deus, altíssimo e tremendo. Mas, vejam, Ele deixou de lado Sua espada reluzente; não está mais segurando Sua lança. Ele voltou para casa. Seus filhos O cercam. Ele Se anima e descansa. Sim, não acho que estou indo longe demais — Ele realmente descansará na Sua amada. Ele descansa em Sua igreja. Ele não é mais chama, terror e fogo consumidor. Agora, Ele é amor, bondade e doçura, pronto para ouvir a tagarelice de Seus filhos e as notas desafinadas de seus cânticos. Ah, como é belo o retrato da igreja como a casa de Deus, o lugar onde Ele Se alegra! “Pois o SENHOR escolheu a Sião, preferiu-a por sua morada” (Salmo 132:13).

          Além disso, o lar de uma pessoa é onde ela mostra o seu íntimo. Quando você encontra uma pessoa no supermercado, ela é seca ao tratar com você. Ela conhece as pessoas e age como alguém do mundo. Mas se encontrá-la em sua casa, conversando com seus filhos, você dirá: “Nossa, que diferença! Nem acredito que seja a mesma pessoa”. Observe também um professor na sala de aula; ele está ensinando ciências aos seus alunos. Repare como ele é sério ao falar sobre assuntos difíceis. Você acredita que esse mesmo homem, à noite, estará com um bebê no colo, contando historinhas infantis e cantando canções de ninar? Mas ele estará. Veja um rei enquanto desfila pelas ruas cheio de pompa; milhares de pessoas estão à sua volta, aclamando-o. Que porte majestoso! Ele é todo rei, monarca dos pés à cabeça, quando se ergue no meio da multidão. Mas você já o viu quando ele está em casa? Ele é exatamente como qualquer outra pessoa; seus filhinhos o cercam e ele se senta no chão para brincar com eles. Será que é mesmo o rei? Sim, claro que é. Mas, por que ele não age assim no palácio? Ou nas ruas? Ah, não, lá não é a sua casa. É em casa que as pessoas se soltam. O mesmo acontece com o nosso glorioso Deus: é na Sua igreja que Ele Se manifesta como não o faz no mundo. Uma pessoa do mundo olha para o céu com seu telescópio, vê a glória de Deus nas estrelas e diz: “Oh, Deus, como és grandioso”! Ela olha séria para o mar, observando-o ser açoitado pela tempestade, e diz: “Vejam o poder e a majestade de Deus”! O estudante de anatomia disseca um inseto e descobre em cada parte dele a sabedoria divina e diz: “Como Deus é sábio”! No entanto, é somente aquele que crê em Deus que, de joelhos em seu quarto, diz: “Meu Pai fez todas as coisas” e, por isso, pode também dizer: “Pai nosso que estás nos céus, santificado seja o Teu nome”. Existem revelações inefáveis que Deus só faz em Sua igreja, nunca em outro lugar. Na igreja é onde Ele pega Seus filhos no colo; onde Ele abre o coração e deixa Seu povo conhecer os mananciais da Sua alma grandiosa e o poder do Seu amor infinito. Não é maravilhoso pensar em Deus no Seu lar, com Sua família, feliz na casa da Sua igreja?

          Outro pensamento também me vem à mente neste momento. O lar de um homem é o centro de tudo o que ele faz. Lá longe, há uma grande propriedade rural. Bem, ela tem várias dependências, montes de feno, celeiros e outras coisas assim; no entanto, bem no meio de tudo tem uma casa que é o centro de toda a sua economia. Não importa quanto trigo seja recolhido, é para essa casa que o produto vai. É para a manutenção da sua família que o marido administra a fazenda. Você pode ouvir o gado mugindo ao longe ou ver as ovelhas nas colinas, mas a lã vai para a casa e todo o leite das vacas vai para os filhos da casa, pois a casa é o centro de tudo. Todos os rios de atividade correm em direção ao doce lago interior da casa. E a igreja, ela não está no centro da atividade de Deus? Ele está lá fora, no mundo, ocupado aqui e ali e em todo lugar, mas para onde é direcionada toda a Sua atividade? Para Sua igreja. Por que Deus reveste as colinas com tanta abundância? Para alimentar o Seu povo! Por que a providência se renova? Por que guerras e tempestades, depois paz e calmaria? É pela Sua igreja. Nenhum anjo atravessa o éter sem uma missão para a igreja. Pode ser indiretamente, mas ainda assim é verdade. Não há arcanjo que cumpra as ordens do Altíssimo que não leve a igreja sobre suas grandes asas e não segure seus filhos quando eles tropeçam nalguma pedra. Os armazéns de Deus são para a Sua igreja. Os tesouros escondidos nas profundas riquezas inexprimíveis de Deus — são todos para o Seu povo. Não há nada que Ele tenha, desde a Sua coroa reluzente até as trevas sob o Seu trono, que não seja para os Seus remidos. Todas as coisas devem contribuir e cooperar para o bem da igreja eleita de Deus, a qual é a Sua casa — a Sua habitação diária. Creio que quanto mais se pensa nisso, quando se está longe, mais se vê a beleza do fato de que, assim como a casa está no centro, assim também a igreja está no centro de tudo para Deus.

          Mais um pensamento e termino este ponto. Ultimamente (em 1859), temos ouvido falar muito sobre uma possível invasão francesa. No entanto, só vou me preocupar com isso quando realmente acontecer, não antes. Contudo, há uma coisa que posso dizer com muita segurança. Muitos de nós são homens de paz e não gostariam de empunhar uma espada; a primeira visão de sangue nos deixaria enjoados; somos seres pacíficos; não fomos feitos para lutar e guerrear. Contudo, se mesmo a pessoa mais pacífica do mundo pensar que invasores estão desembarcando em nossas praias, que as nossas casas estão correndo perigo e os nossos lares estão prestes a serem saqueados pelo inimigo, receio que nossa cautela nos abandone e, apesar do que pensamos sobre as guerras, eu me pergunto se qualquer um dentre nós não pegaria a primeira arma à sua mão para rechaçar o inimigo. Com um grito de guerra: “Pela nossa família e pelo nosso lar”, nós iríamos investir contra o invasor, fosse ele quem fosse. Não haveria poder forte o bastante para paralisar o nosso braço; nós iríamos lutar até a morte pela nossa casa; nenhuma ordem, por mais dura que fosse, poderia nos acalmar; abriríamos caminho por cada grupo, cada companhia do inimigo e, mesmo os mais fracos seriam gigantes e, nossas mulheres, heroínas no dia da dificuldade. Cada mão encontraria uma arma para atacar o inimigo. Amamos nossos lares, e precisamos, e iremos, defendê-los. Agora, vamos pensar mais alto — a igreja é o lar de Deus, será que Ele não a defenderá? Ele permitirá que a sua própria casa seja atacada e saqueada? Sua casa será manchada pelo sangue de Seus filhos? A igreja será derrotada, suas muralhas atacadas, suas habitações pacíficas entregues ao fogo e à espada? Nunca, jamais, não enquanto Deus tiver um coração de amor e enquanto Ele chamar Seu povo de Sua casa e Sua habitação. Venham, regozijemo-nos nessa segurança; mesmo se toda a terra estiver em guerra lá fora, nós continuamos em perfeita paz, pois nosso Pai está em casa e Ele é o Deus Todo Poderoso. Que os inimigos venham contra nós, não precisamos ter medo, Seu braço os fará cair, o sopro de Suas narinas os consumirá, uma só palavra Sua os destruirá, e eles se derreterão como a gordura de carneiros, como a gordura de cordeiros serão consumidos e na fumaça serão dissipados. Para mim, todos esses pensamentos parecem surgir naturalmente pelo fato de a igreja ser a habitação de Deus.

          3. Gostaria de lhes falar, em terceiro lugar, que a igreja, em breve, será o GLORIOSO TEMPLO DE DEUS. Neste momento, ainda não a vemos como ela deve ser. No entanto, já mencionei esse fato precioso. Hoje, a igreja está sendo erigida, e continuará sendo até que o monte da casa do Senhor seja estabelecido no cume das montanhas e, então, quando todas as nações a chamarem feliz, e Ele também — quando todos disserem: “Vinde, e subamos à casa do nosso Deus para O adorarmos”, aí a glória da igreja terá início. Quando esta terra tiver passado, quando os monumentos de todos os impérios forem dissolvidos e engolidos pela lava da chama dos últimos tempos, então a igreja será arrebatada entre as nuvens e exaltada no céu, para se tornar um templo jamais visto por olhos humanos.

         E, agora, irmãos e irmãs, para concluir, faço algumas observações. Se a igreja de Deus é a casa de Deus, o que eu e você devemos fazer? Ora, como parte desse templo, precisamos, sinceramente, procurar sempre conservar seu mais digno habitante! Não entristeçamos Seu Espírito para que Ele não se ausente da Sua igreja; e, acima de tudo, não sejamos hipócritas, para que Ele não deixe de entrar em nosso coração. E, se a igreja deve ser o templo e a casa de Deus, que ela não seja desonrada por nós. Quando você desonra a si mesmo, você desonra a igreja, pois seu pecado, se você é membro da igreja, é pecado da igreja. A sujeira de uma pedra na reconstrução praticamente destrói sua perfeição. Cuida para seres santo como Ele é santo. Não permitas que o teu coração se torne casa de Belial. Não penses que Deus e o diabo podem habitar no mesmo lugar. Entrega-te totalmente ao Senhor. Busca mais do Seu Espírito, para que, como pedra viva, sejas totalmente consagrado; e não te contentes até sentires em ti mesmo a perpétua presença dO habitante divino que habita Sua igreja. Que Deus agora abençoe a cada pedra viva do Seu templo. E quanto a vós, que ainda não fostes retirados das pedreiras do pecado, oro para que a graça divina vos encontre, para que sejais renovados e convertidos e, enfim, se tornem participantes da herança dos santos na luz.



Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Um Coração Dividido


Sermão nº 276

Ministrado na manhã de domingo, 25 de setembro de 1859, pelo

Rev. Charles H. Spurgeon

No Music Hall, Royal Surrey Gardens, Londres, Inglaterra


“O seu coração está dividido; por isso, serão culpados”. ━ Oseias 10:2 (ARC)

Esta passagem pode ser interpretada como se referindo ao povo de Israel enquanto nação, mas não é menos aplicável à igreja de Deus. Este é um dos maiores e mais graves erros da igreja de Cristo na atualidade, a qual não só está dividida em suas crenças, e na prática dos mandamentos, mas também, ai de nós, no seu coração. Quando as diferenças são de natureza tal que, como povo de Deus, ainda nos amamos e ainda somos unidos na luta comum contra o mal e no objetivo comum de edificar a igreja, há pouca coisa errada. No entanto, quando nossas divisões doutrinárias crescem a ponto de deixarmos de cooperar uns com os outros; quando nossas opiniões sobre meros costumes se tornam tão ácidas a ponto de não podermos mais estender a destra de comunhão a quem diverge de nós, então, realmente, a igreja de Deus é culpada. “Se uma casa estiver dividida contra si mesma, tal casa não poderá subsistir” (Marcos 3:25). Até mesmo Belzebu, com toda a sua astúcia, não pode subsistir quando seus demônios estão divididos. Se Belzebu estiver dividido contra si mesmo, ele vai cair e, com certeza, o mesmo ocorrerá com quem não tem a habilidade para superar a desunião. Ah, meus irmãos, nada pode tirar tão depressa o poder e a influência da igreja, minar suas glórias e diminuir suas chances de sucesso quanto às divisões no coração do povo de Deus. Se quisermos entristecer o Espírito Santo e fazer com que Ele Se vá, se quisermos provocar a ira do Altíssimo e trazer juízo sobre a igreja, só precisamos ter um coração dividido, e tudo isso ocorrerá. Se quisermos que cada frasco despeje o seu mal e cada vaso deixe de derramar o seu azeite, só precisamos acalentar nossas discussões até virarem hostilidade; e acariciar nossos ressentimentos até virarem ódio; e então o serviço estará completo. E se isso é verdade em relação à igreja em geral, quanto mais em relação aos diversos segmentos daquelas assim chamadas igrejas apostólicas. Ah, irmãos, a menor igreja do mundo sempre será poderosa se tiver um só coração e uma só alma; se pastor, presbíteros, diáconos e membros forem unidos pelo cordão de três dobras que não se arrebenta. Só assim eles poderão se defender de qualquer ataque. No entanto, por maior que sejam em número, por maior que seja sua riqueza, por mais esplêndidos que sejam seus dons, eles serão sempre impotentes quando estiverem divididos entre si. União é força. Bendito seja o exército do Deus vivo quando sai para a batalha com uma só mente, quando o tropel dos soldados é como o de um só homem, em marcha unida, indo direto para o ataque. Entretanto, uma maldição aguarda a igreja que, correndo de lá para cá dividida em si mesma, perde o sustentáculo da força com a qual deveria destruir o inimigo. A divisão corta a corda do nosso arco, quebra nossa lança, faz nosso cavalo escoicear e queima nossas carruagens no fogo. No momento em que o vínculo de amor é quebrado, estamos perdidos. Quando o vínculo perfeito é dividido em dois e nós caímos, a nossa força se vai. Pela união nós vivemos; pela desunião, expiramos.

Nesta manhã, no entanto, pretendo abordar este texto especialmente com relação à nossa condição individual. Vamos considerar o coração distinto, individual, de cada pessoa. Se as divisões no grande corpo maior — se a separação entre as diferentes partes desse corpo pode provocar desastres, muito mais desastrosa será a divisão naquele reino especial — o coração do homem. Se houver um tumulto civil na cidade de Alma-humana[1], mesmo sem um ataque do inimigo aos seus muros, sua posição se torna bastante vulnerável. Se a ilha de Man[2] for governada por dois reis, ficará desorganizada e logo será destruída. Portanto, hoje eu me dirijo àqueles de quem se pode dizer: “O seu coração está dividido; por isso, serão culpados”. E assim, vou lhes pedir, em primeiro lugar, para observar a terrível doença; em segundo, seus principais sintomas; em terceiro, seus tristes efeitos; e, em quarto, suas futuras consequências.

            1. Observe, então, que o nosso texto descreve uma DOENÇA ASSUSTADORA. O coração deles está dividido. Digo que é assustadora, e isso logo se tornará evidente, porque a primeira coisa a ser observada é a sua sede, onde ela está alojada. Ela afeta uma região vital. Não é apenas um ferimento na mão, que pode ser tratado com um curativo; não é uma dor no pé, que pode ser amenizada com uma imobilização; não é um simples problema no olho, que só precisa de um tapa-olho para protegê-lo da luz. É uma doença numa região vital — o coração; uma região tão importante que afeta a pessoa toda. Até as extremidades sofrem quando o coração está infectado, principalmente quando está infectado a ponto de ficar dividido. Não há força, nem paixão, nem motivação, nem princípios que não sejam afetados quando o coração está doente. É por isso que Satanás, cuja astúcia é incessante, se esforça para atacá-lo. Ele lhe dará uma mão, se você deixar; e você poderá ser uma pessoa honesta. Ele lhe dará um olho, se deixar; e, exteriormente, você será cheio de virtudes. Ele lhe dará um pé, se deixar; e você parecerá percorrer o caminho da retidão[3]. Mas, se deixá-lo se apossar do seu coração, se deixá-lo governar na cidadela, ele ficará bem contente em abrir mão de todas as outras coisas. John Bunyan descreve isso como uma das cláusulas manifestas pelo velho Diabolus ao Rei Shaddai: “Oh!”, disse ele, “abrirei mão de tudo na cidade de Alma-humana, se me deixares viver na cidadela do teu coração”. Certamente havia bem pouco em seus termos e condições. Ah, mas mesmo abrindo mão de todas as outras coisas, se retiveres o coração, reterás tudo, ó demônio! Porque do coração procedem as fontes da vida (Provérbios 4:23).

            Portanto, a doença do nosso texto é uma coisa que atinge uma região vital, um órgão que, uma vez afetado, tende a infectar o corpo todo. No entanto, você verá que ela não só atinge essa região vital, mas a atinge da pior forma possível. O texto não diz simplesmente que o coração está palpitando; nem fala que o fluxo de vida que brota dele se tornou mais fraco e mais lento; o texto declara uma coisa muito pior, ou seja, que o coração foi cortado em dois e está totalmente dividido. Um coração de pedra pode ser mudado em carne, mas mudar um coração dividido seja no que for, se está dividido, não tem mais jeito. Nada pode dar certo quando o que deveria ser um único órgão se transforma em dois; quando uma única fonte de energia começa a mandar seu fluxo por dois canais diferentes, gerando, assim, conflito interno e guerra. Um coração íntegro é a vida de uma pessoa, mas se for cortado em dois, no sentido mais extremo, profundo e espiritual, ele morre. Essa doença não só afeta uma região vital, ela a afeta de forma letal.

No entanto, é preciso observar mais uma coisa sobre este coração dividido: a sua própria divisão é repugnante. Pessoas com um coração assim não se sentem impuras; na verdade, elas convivem com todos na sociedade, se arriscam a ir à igreja, se submetem a receber sua comunhão e a fazer parte do seu rol de membros; depois vão e se misturam com o mundo; e não sentem que se tornaram infiéis. Elas acham que se adaptam tanto aos cidadãos decentes do mundo quanto aos verdadeiros cristãos. Se alguém tivesse uma mancha no rosto ou alguma doença que todo mundo ficasse encarando, com certeza, iria se afastar do convívio das pessoas e tentar se manter recluso. Mas não é assim com quem tem o coração dividido. A pessoa anda por toda parte, totalmente insensível à natureza repulsiva da sua doença. Posso mostrar como é? Pegue uma lente, dê uma olhada no coração dessa pessoa e verá como ele é nojento, pois Satanás e o pecado estão reinando ali. Embora a pessoa ande por aí e saiba o suficiente sobre o certo e o errado para ficar incomodada com seu pecado, ainda tem um amor tão grande por toda sorte de iniquidade que permite aos horríveis demônios entrar e habitar no seu coração. Contudo, sua condição abjeta é ainda pior, pois durante todo o tempo em que vive em pecado, ela é terrivelmente hipócrita, fingindo também ser uma filha de Deus. De todas as coisas fedorentas que incomodam uma pessoa sincera, a hipocrisia é a pior de todas. Se tu és mundano, sejas mundano. Se és servo de Satanás, serve-o. Se Baal for deus, serve-o, mas não mascara o servir a ti mesmo e ao pecado com um pretenso servir a Deus. Mostra-te como és, arranca tua máscara. A igreja não foi concebida para ser um baile de máscaras. Aparece em tuas verdadeiras cores. Se preferes servir no santuário de Satanás, que todos saibam disso, mas se desejas servir a Deus, serve-O, e faze-o de coração, sabendo que Ele é Deus zeloso e prova o mais íntimo do coração dos filhos dos homens (Jr. 11:20). Um coração dividido é uma doença terrivelmente repugnante. Se alguém fosse reconhecido só por causa dela, até o pior dos perversos não iria querer ter nada com ele. Às vezes, conheço gente assim. Certo homem fingia ser religioso e frequentava regularmente o lugar de culto, mas um dia foi visto entrando em um salão de má reputação. Assim que caiu na farra, com as piores intenções, imediatamente começou a ser observado. Até o senso de certo e errado dos ímpios é despertado. “Sumam com esse cara daqui!” é o veredito unânime, e ele recebe o que merece. Quando alguém tem o coração dividido — tenta fazer o certo e o errado — servir a Deus e ao diabo — ao mesmo tempo; por isso, digo que sua doença é tão sórdida e degradante que até as pessoas do mundo, cuja lepra está na testa, o desprezam e odeiam, e se afastam dele.

            Além disso, precisamos observar que essa doença não é apenas repulsiva, ela é também muito difícil de ser curada, porque é crônica. Não é uma doença aguda, que causa dor, sofrimento e tristeza, mas é crônica, pois está arraigada na própria natureza humana. Um coração dividido, como lidar com ele? Se fosse uma doença em qualquer outra parte do corpo, um bisturi poderia removê-la, ou um remédio poderia curá-la. Mas, que médico pode juntar um coração dividido? Qual cirurgião, por mais hábil que seja, pode juntar os membros destroçados de uma alma dividida entre Deus e Mamom (Mt. 6:24)? Esta é uma doença que penetra a própria natureza e continuará no sangue mesmo com a administração dos melhores remédios. Na verdade, é uma doença que nada, exceto a graça Onipotente, pode resolver. No entanto, aquele cujo coração está dividido entre Deus e Mamom não possui graça. Ele é inimigo de Deus, prejudicial à igreja, avesso à Palavra, um feixe pronto para a colheita do fogo eterno. Sua doença está profundamente enraizada dentro dele e, sem interferência, chegará a um fim terrível — sua destruição é certa.

            Preciso fazer mais uma observação, depois deixarei este ponto. Essa doença, de acordo com o texto hebraico, é muito difícil de ser tratada, pois é uma doença aduladora. O texto pode ser interpretado desta forma: “O seu coração os adula; por isso, serão culpados”. Existem muitos aduladores astutos neste mundo, mas o mais perspicaz é o próprio coração do homem. O coração humano adorna até mesmo os seus pecados. Se a pessoa é um sovina miserável — seu coração lhe dirá que esse é o seu jeito de fazer negócios. Se, por outro lado, ela for extravagante e esbanjar os dons de Deus com suas vis paixões; seu coração, então, lhe dirá que ela é uma alma liberal. O coração “põe o amargo por doce e o doce, por amargo” (Is. 5:20). É mais “enganoso que todas as coisas”, e tão “desesperadamente corrupto” (Jr. 17:9), que tem o descaramento de “fazer da escuridade luz e da luz, escuridade” (Is. 5:20). Ora, quando alguém tem o coração dividido, normalmente louva a si mesmo. “Bem”, ele diz, “é verdade que bebo um pouco demais, mas nunca deixo de fazer doações para caridade”. “É verdade”, reconhece, “com certeza não sou a pessoa mais decente do mundo, mas veja como frequento regulamente minha igreja”. “É verdade”, admite, “às vezes, faço uma tramoia ou outra nos negócios, mas estou sempre pronto a ajudar os pobres”. E, assim, ele imagina que pode apagar as marcas do mal no seu caráter com algumas coisas boas, por isso, adula o seu coração. Vejam como ele se sente satisfeito e contente consigo mesmo. O filho de Deus prova seu próprio coração com a mais profunda angústia; mas essa pessoa não conhece tal coisa. Ela tem sempre certeza de estar certa. O verdadeiro crente se senta e examina suas contas todos os dias para ver se está realmente no caminho do céu ou se cometeu algum erro e está enganado. Essa pessoa, no entanto, está satisfeita consigo mesma, venda os próprios olhos e anda deliberadamente, cantando pelo caminho, direto para sua própria destruição. Vejo aqui algumas pessoas assim. Mas não será suficiente eu simplesmente afirmar como ela é se o Espírito Santo de Deus não abrir seus olhos. Elas não conseguirão reconhecer a própria imagem; e mesmo se eu fizer um retrato fiel e pintar cada detalhe e cada traço do seu caráter, elas ainda dirão: “Mas ele não pode estar se referindo a mim. Sou uma boa pessoa e sou muito crente; as coisas que ele disse nada têm a ver comigo”. Sabe aquele tipo de pessoa que está sempre de cara fechada, com o olhar muito sério, que fala com uma espécie de sotaque meio pastoso, dando ênfase a cada palavra? Cuidado com ela! Quando alguém tem a religião estampada no rosto, normalmente não tem quase nada no coração. Comerciantes que colocam grandes cartazes na vitrine, geralmente têm pouco a oferecer. O mesmo acontece com as pessoas que se dizem crente; ninguém saberia que são religiosas, por isso, elas rotulam a si mesmas para ninguém desconfiar. Até poderíamos pensar que são pessoas do mundo, não fosse sua aparência de santarrões. Contudo, fingindo ser quem não são, elas acham que podem sair pelo mundo cheias de confiança. Só espero que não pensem que podem ser aceitas diante do tribunal de Deus e enganar o Onisciente. Ai delas! Seu coração está dividido. Esta não é uma doença rara, apesar da sua repugnância e terrível fatalidade. Ela é muito comum hoje em dia; dezenas de milhares de pessoas consideradas decentes e honradas sofrem desse mal. Sua cabeça inteira está doente e seu coração todo está fraco pelo fato de estar dividido. Essas pessoas não têm coragem de assumir que são totalmente pecadoras e não têm sinceridade suficiente para realmente se devotar a Deus.

            2. Tendo descrito a doença, passo agora a observar seus PRINCIPAIS SINTOMAS. Quando o coração de alguém está dividido, um dos sintomas mais comuns é o formalismo da sua religiosidade. Conhecemos alguns crentes que podem ser muito rigorosos quanto à certas formas de doutrina e grandes admiradores de determinadas maneiras de governar e administrar a igreja. Você verá que eles sentem profundo desprezo, aversão e ódio por quem discorda das suas preferências. Muito embora algumas diferenças sejam praticamente irrelevantes, eles se levantam e discutem por qualquer coisa, e protegem cada prego enferrujado da porta da igreja como se fosse um assunto de suma importância, achando que todas as sílabas da sua crença pessoal devem ser aceitas sem discussão. “Era assim no início, por isso tem de ser agora, e tem de ser sempre”. Vou fazer uma observação que, provavelmente, será confirmada pela sua experiência, assim como o é pela minha: a maioria dessas pessoas finca o pé tão ferozmente por causa da forma porque lhes faltar poder; por isso, a forma é tudo de que podem se vangloriar. Essas pessoas não têm fé, embora tenham um credo. Elas não possuem vida interior, por isso ocupam seu lugar com rituais externos. Será de estranhar, então, que defendam a forma com tanta intensidade? Quem sabe como é preciosa uma vida de santidade, quem entende a sua força, o seu poder profundamente entranhado e arraigado no coração, também ama a forma, mas não tanto quanto ama o Espírito. Essa pessoa aprova a letra, mas prefere a sua essência. Ela é inteligente, e talvez pense menos na forma do que deveria, pois irá se unir primeiro a um grupo de cristãos sinceros, depois aos outros, e dirá: “Se puder desfrutar da presença do meu Mestre, tanto faz onde me encontre. Se puder ver o nome de Cristo exaltado, e Seu evangelho puro anunciado, isso é tudo o que desejo”. Não é assim com quem tem o coração dividido, cuja alma não é piedosa. Ele é fanático ao extremo e — repito — talvez seja um pobre coitado, pois tudo o que tem é uma concha vazia. Será de admirar, então, que esteja pronto a lutar por ela? Você verá que muitas pessoas são extremamente formais até mesmo quanto à nossa simples forma de culto. Elas querem tudo muito certinho, não só na conduta reverente na casa de Deus, mas muito além disso; elas querem uma servidão odiosa, um medo tirânico tomando conta do coração daqueles que estão ali reunidos. Querem tudo nos mínimos detalhes e que o culto seja sempre conduzido com certo decoro tradicional. Ora, essas pessoas, quase sempre, pouco sabem sobre o poder da santidade, e só brigam pelas pequenas conchas porque não têm conteúdo. Brigam pela superfície, apesar de nunca terem descoberto “as águas das profundezas” (Dt. 33:13, NVI). Elas não conhecem o minério precioso que se encontra nas ricas minas do evangelho, por isso, a superfície, mesmo coberta de ervas daninhas e cardos, é suficiente para elas. Formalismo na religião, com frequência, é um traço do caráter de alguém cujo coração está dividido.

            Todavia, talvez esse não seja o sintoma mais importante. Outra característica do caráter de alguém cujo coração está dividido é a sua inconsistência. Você não o verá com muita frequência, se quiser ter uma boa impressão sobre ele. E deve ficar atento quando for procurá-lo. Se for num domingo, verá como ele é santo; mas se for num sábado à noite — talvez descubra o quanto ele se parece com o pior tipo de pecador. Ah, de todas as pessoas do mundo, as que mais temo, porque sei o quanto são perigosas e enganosas, são aquelas que tentam, de todas as formas, seguir a igreja e o mundo ao mesmo tempo. Numa hora estão no culto vespertino entoando os sagrados hinos de Sião; noutra, em lugares malfrequentados cantando música lasciva e profana. Num dia, estão à mesa do Senhor, noutro, à mesa dos demônios. Primeiro, parecem trabalhar na obra junto com os filhos de Deus, em seguida, juntam-se ao populacho para fazer o que não presta. Ah, irmãos, isso, na verdade, é algo terrível — um terrível sinal de uma doença assustadora: se você leva uma vida inconsistente, deve ter um coração dividido. É motivo de alegria quando um ministro pode acreditar que nenhum dos membros da sua igreja seja hipócrita; mas ouso dizer que, embora com a mais profunda tristeza, isso é mais do que espero de uma igreja tão grande quanto a qual fui chamado a pastorear. Ah, amigos, talvez alguns de vocês pratiquem certos pecados longe da vista do seu pastor. Nenhum diácono ou presbítero ainda foi atrás de vocês. Vocês são astutos na sua iniquidade. Talvez seu pecado seja de tal ordem que, de forma alguma, a disciplina da igreja possa resolver. Saibam, porém, e a sua consciência lhes dirá, que sua vida não é consistente com sua profissão de fé. E eu lhes imploro, pelo Deus vivo, quando naquele último dia vocês e eu estivermos face a face diante do tremendo tribunal do Senhor: desistam da sua confissão ou sejam fiéis a ela. Parem de ser chamados cristãos ou sejam cristãos de verdade. Busquem mais graça, a fim de poderem viver de acordo com o exemplo do seu Mestre; ou então, eu lhes rogo — e sejam sinceros; e, se me levam a sério, vou me alegrar quando o fizerem — desistam da sua membresia e abandonem a sua confissão. Vida inconsistente, eu lhes digo, é sinal evidente de um coração dividido.

            Além disso, preciso mencionar mais um sinal de um coração dividido, ou seja, a sua inconstância. Posso descrever um personagem que talvez já tenham encontrado muitas vezes. Alguém vai a uma reunião ou a um encontro religioso e é subitamente tomado de entusiasmo para fazer o bem. Ele quer ser missionário no Exterior ou dedicar seus bens à causa missionária e, durante as semanas seguintes, só falará em missões. Algum tempo depois, ele vai a um comício político e, então, não haverá nada mais importante para ele do que a reforma política. Na outra semana, ele é chamado para integrar uma comissão de saneamento, e aí não existirá nada que ele queira, a não ser o tratamento de esgoto. Religião, política, economia social, um de cada vez, e tudo o mais precisa dar lugar àquilo que chama sua atenção naquele momento. Essas pessoas vão primeiro em uma direção, depois em outra. Sua religião é espasmódica. Elas são consumidas como quem é consumido por uma febre. São sacudidas por um espasmo e logo em seguida se acalmam. Algumas vezes estão quentes e febris, outras, frias e indiferentes. Elas se devotam a uma religião, depois a abandonam. Isso só comprova que elas têm um coração dividido e, aos olhos de Deus, são pessoas doentes e repulsivas, as quais nunca verão a Sua face com alegria.

            Para concluir a lista dos sintomas: frivolidade religiosa quase sempre é sinal de um coração dividido; e aqui me dirijo diretamente àqueles da minha própria geração[4]. Um pecado muito comum entre os jovens é não levar a religião muito a sério ou com reverência. Há um tipo de seriedade muito bem-vinda, principalmente a jovens cristãos. A alegria deveria ser o alvo constante dos idosos; mas eles tendem a ser melancólicos. Talvez um pouco de seriedade e reverência devesse ser o alvo dos jovens crentes, cuja tendência é mais para a leviandade do que para o desânimo. Ah, irmãos, quando falamos de coisas religiosas com irreverência; quando citamos textos das Escrituras com zombaria; quando nos aproximamos da mesa do Senhor como se fosse uma simples refeição; quando vemos o batismo como uma observância comum, sem qualquer solenidade — então, receio que estejamos evidenciando um coração dividido. E eu sei que qualquer alma consciente da sua culpa, quando levada a conhecer realmente o amor de Cristo, sempre verá as coisas sagradas de forma diferente. Ela não participa da mesa do Senhor com coração leviano. Para ela, tudo parece muito solene. E, quanto ao batismo, quem é batizado sem ter sondado seu coração, sem ter examinado seus motivos e sem a verdadeira devoção do espírito, é batizado absolutamente em vão. Assim como o comungante em pecado come e bebe juízo para si, aquele que é indevidamente batizado recebe condenação em vez de bênção. Frivolidade espiritual com frequência é sinal de um coração dividido.

            3. Isso nos leva ao terceiro ponto: os tristes efeitos de um coração dividido. Quando o coração de alguém está dividido, tudo é ruim para ele. Com relação a si mesmo, ele é muito infeliz. Quem pode ser feliz quando tem dentro do próprio peito forças rivais? A alma precisa encontrar um refúgio para si ou não achará descanso. O pássaro que tenta se apoiar em dois galhos nunca terá paz, e a alma que se esforça para encontrar dois lugares de descanso — primeiro no mundo, depois no Salvador — nunca terá alegria ou consolo. Um coração unido é um coração feliz; por isso, Davi disse: “une o meu coração ao temor do teu nome” (Salmo 86:11b, ACR, Fiel). Aqueles que se entregam inteiramente a Deus são um povo abençoado, pois descobrem que os caminhos da religião “são caminhos deliciosos, e todas as suas veredas, paz” (Provérbios 3:17). Quem não é nem isto nem aquilo, nem uma coisa nem outra, é sempre inquieto e infeliz. O temor de ser descoberto e a consciência de estar errado conspiram juntos para agitar a alma e deixá-la cheia de males, preocupação e inquietação de espírito. Tal pessoa é, em si mesma, infeliz.

            Essa pessoa também é inútil na igreja. Qual é a sua serventia para nós? Não podemos colocá-la no púlpito para falar de um evangelho que ela não pratica. Não podemos colocá-la no diaconato, pois sua vida não seria condizente com servir à igreja. Não podemos dar-lhe a responsabilidade do presbiterato por entendemos que, não sendo uma pessoa temente a Deus, questões espirituais não devem ser confiadas a ela. Em nenhum aspecto, essa pessoa é boa para a igreja. “Prata de refugo lhes chamarão” (Jeremias 6:30). Seu nome pode estar inscrito no rol de membros, mas é melhor que seja retirado. Ela pode se sentar entre nós e nos dar sua contribuição, mas ficaríamos muito melhor sem qualquer uma das duas, mesmo que ela duplicasse seu talento e triplicasse sua oferta. Sabemos que quem não tem o coração íntegro e totalmente voltado para Cristo não pode fazer absolutamente nada na igreja de Deus.

            Todavia, não é somente isso; uma pessoa assim também é perigosa para o mundo. Ela é como um leproso que se infiltra no meio de pessoas saudáveis; ela espalha a doença. Um bêbado é um leproso que isola a si mesmo; mas, comparativamente, ele causa poucos danos, pois na sua embriaguez ele é como o leproso expulso da sociedade. Sua própria bebedice grita: “Imundo! Imundo! Imundo!” Mas o homem de coração dividido é um religioso confesso, por isso é tolerado. Ele se diz cristão, assim, é admitido em toda a sociedade, mesmo sendo cheio de podridão e falsidade em seu interior. E, embora externamente seja caiado como um sepulcro, é mais perigoso para o mundo que o pior pecador. Prenda-o! Não o deixe solto! Construa uma prisão para ele! Mas o que estou dizendo? Se fôssemos construir uma prisão para hipócritas, Londres inteira não seria suficiente para todas as prisões necessárias. Ah, meus irmãos, apesar da impossibilidade de prendê-los, digo que o cão mais danado, nos dias mais quentes, não é nem de longe tão perigoso para as pessoas quanto quem tem um coração está dividido e corre atrás dos outros com o veneno raivoso da hipocrisia nos lábios, contaminando e destruindo sua alma.

            E essa pessoa não é apenas infeliz em si mesma, inútil para a igreja e perigosa para o mundo, ela também é desprezível a quem quer que seja. Quando é desmascarada, ninguém quer saber dela. Raramente o mundo a aceita, e a igreja não terá nada para lhe dar, a não ser sua desaprovação.

            A consideração mais séria a fazer, no entanto, é que tal pessoa é reprovável aos olhos de Deus. Para os olhos da infinita pureza, ela é um dos seres mais nefastos e abjetos que existe. Seu coração está dividido. Um Deus puro e santo odeia, primeiramente, o seu pecado; depois as mentiras com as quais ela procura encobri-lo. Ah, se há um lugar onde os pecadores são mais repulsivos a Deus do que em qualquer outro, esse lugar é na Sua igreja. Cachorro no canil está no lugar apropriado; mas, na sala do trono está totalmente fora de lugar. Um pecador no mundo já é ruim o suficiente, mas, na igreja, é simplesmente abominável. Um louco no sanatório é uma criatura digna de pena, mas um louco que não se acha louco e se imiscui entre nós para obter meios de fazer o mal, não é apenas digno de pena, mas precisa ser evitado, e deve ser contido. Deus odeia o pecado seja onde for, mas quando o pecado coloca seus dedos no altar divino; quando chega e põe a mão insolente no sacrifício ali oferecido, Deus simplesmente o abomina. De todas as pessoas, as que estão no lugar mais provável de receber o raio mais potente, o flash mais terrível de um relâmpago, são aquelas com um coração dividido, aquelas cuja confissão é servir a Deus enquanto, com a alma, estão servindo ao pecado. Acautelai-vos, pecadores, acautelai-vos, pois continuando em vosso pecado, acabareis se deparando com o castigo; não obstante, hipócritas, atentai para os vossos caminhos, pois o vosso pecado e as vossas mentiras trarão rápida e pavorosa destruição sobre as vossas cabeças carolas.

            4. Para concluir, preciso fazer algumas observações a respeito do CASTIGO RESERVADO àquele cujo coração está dividido, caso não seja resgatado por uma grande salvação.

            Esforcei-me para ser fiel nesta pregação, o mais fiel que pude, mas estou ciente de que muitos dos filhos de Deus não encontram alimento espiritual em um sermão como este, nem é esta a minha intenção. Não é possível, honestamente, misturar a peneira com o recipiente do evangelho. Não posso lhes trazer, de forma satisfatória, o trigo e a peneira. Hoje estou procurando, como ministro do evangelho, tomar a pá em minhas mãos, para limpar completamente a eira em nome daquele que será o grande “Purgador” no último dia (Mateus 3:12). Todos precisamos ser purificados, quer saibamos disso ou não. Mesmo os melhores cristãos às vezes precisam se questionar quanto a seus motivos. E quando os filhos de Deus não são alimentados, muitas vezes é melhor para eles serem levados ao autoexame do que receberem uma preciosa promessa como alimento. Caros ouvintes, em razão do grande número de pessoas aqui nesta manhã, será que é possível não haver ninguém com o coração dividido? Será que toda esta congregação é composta apenas de cristãos sinceros, verdadeiramente iluminados, chamados e salvos? Não há ninguém que tenha se enganado de lugar, colocando-se entre as ovelhas, quando deveria estar entre os bodes? Será que ninguém, sem ter cometido um erro, veio a se infiltrar descaradamente entre os sacerdotes de Deus, quando, na verdade, é adorador de Baal? Permitam-me, então, por último, a fim de poder desempenhar fielmente minha missão, descrever as horríveis condições de um hipócrita quando Deus vier para julgar a terra.

            Lá vem ele, com a maior cara de pau; ele vem no meio da congregação dos justos. Uma ordem parte do trono: “Ajuntai primeiro o joio!” Ele a ouve, mas nem fica pálido. Mesmo agora, seu descaramento continua. Ele até poderia bater na porta e dizer: “Senhor! Senhor! Abre pra mim, por favor”. O anjo separador voa. O terror se estampa no rosto dos ímpios quando o joio é atado em feixes e colocado à esquerda para ser queimado. Imagine o choque ainda maior desse indivíduo quando, estando em meio a ministros, santos e apóstolos, de repente se vê prestes a ser catado dentre eles. Com um tremendo mergulho, como uma águia descendo das alturas, o anjo da morte cai sobre ele e o arrebata, reivindicando sua posse. “Tu és”, diz o anjo negro, “tu és joio. Cresceste lado a lado com o trigo, mas isso não mudou tua natureza. O orvalho que cai sobre o trigo caiu sobre ti; o sol que brilhou sobre ele também foi deleitoso para ti; mas ainda és joio e o teu destino continua o mesmo. Serás atado junto com o resto para seres queimado”. Ah, meus ouvintes, que choque será quando a mão poderosa daquele anjo o arrancar pela raiz, para levá-lo embora; ele, que pensava ser santo, será atado no mesmo feixe de pecadores para destruição!

            E, agora, imagine como ele é recebido. Ele é trazido no meio dos perversos — os quais anteriormente, com língua farisaica, ele havia condenado. “Lá vem ele”, dizem eles, “aquele que nos dava ordens, o bom homem que nos dizia o que fazer, ei-lo aqui em pessoa; finalmente ele descobriu que não é melhor do que aqueles a quem desprezou”. Depois imagine, se tiver coragem, o calabouço íntimo, os assentos reservados da morada de fogo e os pesados grilhões de desespero — imagine, se puder, a terrível destruição, muito além de qualquer outra, que tomará conta daquele que, neste mundo, enganou a igreja e desonrou a Deus, e agora é desmascarado para a sua própria vergonha. Pecadores comuns ficam em prisão comum, mas essa pessoa será lançada numa prisão íntima e acorrentada ao tronco do desespero. Tremam, vocês que se dizem crentes, tremam, vocês que não são nem uma coisa nem outra; tremam, vocês que fingem temer a Deus, mas, como os samaritanos, adoram também aos ídolos. Oh! Tremam agora, para que o temor não recaia sobre vocês no dia em que, sem se dar conta, desejarem ardentemente uma rocha para se esconder ou uma montanha para se ocultar e não encontrarem proteção do furor da ira do Deus de toda a terra.

            Mas não posso deixá-los ir sem lhes falar, por um momento ou dois, do evangelho. Talvez alguém esteja dizendo: “Pastor, meu coração não está só dividido, ele está partido”. Ah, mas existe uma enorme diferença entre um coração dividido e um coração partido. O coração dividido está cortado em duas partes; o coração partido está quebrado, aos pedaços, mas ainda não está dividido. Em certo sentido, ele está estraçalhado, no que diz respeito à sua arrogante confiança; mas, em outro, está unido, no que diz respeito ao seu ardente desejo de poder ser salvo. Pobre coração partido, eu não estava te censurando. É teu desejo nesta manhã ter teus pecados removidos? Então, do fundo do teu pobre coração partido clama: “Senhor, guarda-me da hipocrisia. Seja eu o que for, não me deixes pensar que sou um dos teus se não sou”. Estás sussurrando esta oração para Deus? “Senhor, faz-me realmente Teu. Coloca-me entre os Teus filhos. Deixa-me Te chamar de Pai e não permitas que me afaste de Ti. Dá-me um novo coração e um espírito reto; ó, lava-me no sangue de Cristo e purifica-me. Faze de mim o que queres que eu seja e eu Te louvarei para sempre”. Lembra-te, caro ouvinte, se esse é o desejo do teu coração, tu és hoje chamado a crer que Cristo pode salvar-te, e quer salvar-te, e está esperando para ser gracioso para contigo, e mais pronto a te conceder misericórdia do que estás para recebê-la. Portanto, és ordenado a confiar nEle, pois todos os teus pecados foram punidos nEle como teu fiador e, por causa de Cristo, Deus está disposto a receber-te agora, e a abençoar-te agora. Achega-te a Ele nesta manhã; eleva os teus olhos para Aquele que morreu no madeiro. Confia nAquele que é o meu Redentor, e é também o teu Redentor; deixa o sangue que flui do Seu lado ser recebido no teu coração. Abre as tuas feridas e dize: “Mestre, cura-as para mim. Ó Jesus! Não conheço nenhum outro em quem confiar. Se me salvares, jamais conhecerei outro amor. O amor do meu coração é indivisível e ele confia somente em Ti; logo sua gratidão também será indivisível; e eu Te louvarei, a Ti somente”. Pobre coração penitente, não me enganei ao discordar de mim mesmo, dizendo: “Apesar do teu coração estar partido, ele não está dividido”. Traze-o como ele está e dize: “Senhor, recebe-me pelo sangue de Cristo e deixa-me ser Teu agora, e ser Teu para sempre, por meio de Jesus”. Amém.

Tradução: Mariza Regina de Souza





[1] As Guerras da Famosa Cidade de Alma-humana, John Bunyan

[2] Ilha que faz parte do Reino Unido situada no mar da Irlanda

[3] As três expressões usadas por Spurgeon formam um jogo de palavras com partes do corpo ━ mão, olho e pé, praticamente intraduzível de forma literal para o português.


[4] Na época deste sermão, 1859, Spurgeon contava com 25 anos de idade.