segunda-feira, 5 de março de 2018

O Ensino do Espírito Santo

Sermão nº 315
Ministrado na manhã de domingo, 13 de maio de 1860
Pelo Rev. CHARLES H. SPURGEON
Em Exeter Hall, Strand.

“Mas o Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito.” — João 14.26
MUITOS DONS EXCELENTES fazem parte da Aliança da Graça, mas os mais ricos e mais importantes são estes: o dom de Jesus por nós e o dom do Espírito para nós. O primeiro, não creio que seja subestimado. Sentimos prazer ao ouvir sobre o “dom inefável” — do Filho de Deus que carregou sobre o madeiro os nossos pecados, tomou as nossas dores e sofreu em Seu próprio corpo o castigo que era nosso (1 Pedro 2.24). Existe algo tão tangível na cruz, nos cravos, no vinagre, na lança, que não conseguimos nos esquecer do Mestre, principalmente quando nos reunimos ao redor da Sua mesa e partimos o pão em Sua memória. No entanto, o segundo dom, que de forma alguma é inferior ao primeiro — o dom do Espírito Santo — é tão espiritual, e nós tão carnais; é tão misterioso, e nós tão materiais, que somos capazes de nos esquecer do seu valor e, infelizmente, até mesmo do próprio dom. Contudo, meus irmãos, devemos nos lembrar de que Cristo na cruz não tem valor algum para nós a menos que o Espírito Santo esteja nós. Em vão flui o sangue se o dedo do Espírito não aplicá-lo em nossa consciência; em vão são confeccionadas as vestes de justiça, vestes sem costura, tecidas de alto a baixo, se o Espírito não nos envolver com elas e nos adornar com suas pregas valiosas. O rio da água da vida não pode saciar a nossa sede até que o Espírito Santo exiba a Sua taça e a leve aos nossos lábios. Todas as coisas que estão no paraíso de Deus, em si mesmas, não podem nos dar felicidade, pois somos almas mortas, e almas mortas seremos até que o vento celestial, vindo dos quatros cantos da terra, sopre sobre nós e nos dê vida. Não hesitamos em dizer que devemos tanto a Deus, o Espírito, quanto a Deus, o Filho. Na verdade, seria um grande pecado e falta de respeito tentar colocar uma pessoa da Divina Trindade na frente da outra. Tu, ó Pai, és a fonte de toda a graça, de todo o amor e de toda a misericórdia para conosco. Tu, ó Filho, és o canal de misericórdia de Teu Pai e, sem Ti, o amor do Pai nunca poderia fluir para nós. E Tu, ó Espírito — Tu és Aquele que nos capacita a receber a graça divina que flui do manancial, o Pai, por meio de Cristo, o canal, e que por meio de Vós entra em nosso espírito, onde habita e produz seu glorioso fruto. Engrandecei, pois, o Espírito, vós que sois co-participantes da graça divina: “louve, exalte e ame o Seu nome para sempre, pois isso é digno.
Minha tarefa nesta manhã é apresentar a obra do Espírito Santo, não como Consolador, nem como Vivificador ou Santificador, mas principalmente como Ensinador, embora tenhamos de tocar em todos esses outros pontos também.
O Espírito Santo é o grande Ensinador dos filhos do Pai. O Pai nos gera pela Sua própria vontade, por meio da palavra da verdade. Jesus Cristo nos toma para Si, para que nos tornemos, em segundo sentido, filhos de Deus. E então, Deus, o Espírito Santo, sopra em nós o “espírito de adoção, baseados no qual clamamos: Aba, Pai” (Romanos 8.15). Tendo nos dado esse espírito de adoção, Ele nos educa, tornando-Se nosso grande Educador, remove a nossa ignorância e nos revela uma verdade depois da outra, até que, finalmente, compreendamos, com todos os santos, qual é a largura, o comprimento, a altura e a profundidade, e conheçamos o amor de Cristo, que excede todo o entendimento (Efésios 3.18-19); e assim, o Espírito apresenta aqueles que foram educados à assembleia universal e igreja dos primogênitos arrolados nos céus (Hebreus 12.22-23).
Sobre este Ensinador, três coisas devem ser ditas: primeira, o que Ele ensina; segunda, os Seus métodos de ensino; e terceira, a natureza e características desse ensino.
I ━ Primeiramente, então, O QUÊ O ESPÍRITO SANTO NOS ENSINA. Eis, de fato,  um vasto campo estendido diante de nós, pois Ele ensina o povo de Deus a fazer tudo o que é aceitável diante do Pai, e a conhecer tudo o que é útil para eles mesmos.
1. O que estou dizendo é que Ele lhes ensina tudo o que fazem. Ora, existem algumas coisas que você e eu podemos fazer naturalmente quando somos crianças, sem receber qualquer ensinamento. Quem já ensinou uma criança a chorar? Isso é natural para ela. O primeiro sinal de vida é um choro fraco e estridente. Mesmo mais tarde, não é preciso enviá-la à escola para que aprenda a soltar um grito de dor, a bem conhecida expressão de suas pequenas tristezas. Ah, meus irmãos, mas vocês e eu, como crianças espirituais, tivemos de ser ensinados a chorar; pois nem mesmo isso podíamos fazer até recebermos o “espírito de adoção, baseados no qual clamamos: Aba, Pai”. Há choros e gemidos que não podem ser expressos em palavras e discursos, por mais simples que a linguagem da nova natureza possa parecer. Mesmo os gemidos mais fracos, os suspiros, choros e lágrimas são sinais de educação. Precisamos ser ensinados, ou não seremos capazes de fazer até essas pequenas coisas sozinhos. As crianças, como sabemos, precisam ser ensinadas a falar, e é aos poucos que elas começam a pronunciar primeiro as palavras mais curtas, depois as mais longas. Nós, também, somos ensinados a falar. Nenhum de nós aprendeu ainda o vocabulário completo de Canaã. Creio que agora podemos dizer algumas palavras; mas não conseguiremos pronunciar todas elas até estarmos na terra onde veremos a Cristo, e “seremos semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é” (1 João 3.2). Os dizeres dos santos, quando são bons e verdadeiros, são ensinamentos do Espírito. Não lestes esta passagem: “ninguém pode dizer: Senhor Jesus!, senão pelo Espírito Santo”? A pessoa pode dizer o que quiser em palavras mortas, mas o dizer do espírito, as palavras da alma, ninguém pode pronunciar, a não ser que lhe seja ensinado pelo Espírito Santo. Nossas primeiras palavras como cristãos — “Ó Deus, sê propício a mim, pecador!”, nos foram ensinadas pelo Espírito Santo; e o cântico que entoaremos diante do trono — “Àquele que nos ama, e, pelo seu sangue, nos libertou dos nossos pecados, e nos constituiu reino, sacerdotes para o seu Deus e Pai, a ele a glória e o domínio pelos séculos dos séculos”, será apenas o fruto maduro da mesma árvore do conhecimento do bem e do mal que o Espírito Santo plantou no solo do nosso coração.
Além disso, assim como o Espírito Santo nos ensina a chorar e nos ensina a falar, Ele também ensina o povo de Deus a andar e a agir. “Não compete ao homem dirigir os seus passos” (Jeremias 10.23, NVI). Podemos ter o maior cuidado com a nossa vida, mas, cedo ou tarde, iremos tropeçar ou nos desviar, a menos que Aquele que nos colocou no caminho nos guie por ele. “Todavia, eu ensinei a andar a Efraim; tomei-os nos meus braços” (Oseias 11.3). “Ele me faz repousar em pastos verdejantes. Leva-me para junto das águas de descanso” (Salmo 23.2). Desviar-se é natural, andar no caminho da retidão é espiritual. Errar é humano; ser santo é divino. Cair é o efeito natural do mal; mas resistir é o efeito glorioso do Espírito Santo operando em nós, tanto em relação à vontade quanto em relação a fazer o que é do Seu próprio agrado. Jamais houve pensamento celestial, ação santa, atitude espiritual agradável a Deus por intermédio de Jesus Cristo que não tenham sido operados em nós pelo Espírito Santo. “Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (Efésios 2.10).
Ora, assim como as pequenas coisas — o choro, a fala, o andar e o agir — são ensinamentos do Espírito Santo, as maiores também são. A pregação do evangelho, quando é feita corretamente, só pode ser realizada pelo poder do Espírito. O sermão feito com base na genialidade humana é inútil; a prédica proveniente do conhecimento do homem, na qual não há nada além da força da lógica ou da oratória, é perda de tempo. Deus não opera por tais meios. Ele não purifica o espírito com água de cisternas rotas, nem salva almas com pensamentos procedentes da mente humana, sem influência divina. Podemos ter todo o conhecimento dos filósofos gregos, ou melhor, todo o conhecimento dos doze apóstolos juntos, ou ter a língua dos serafins e os olhos e coração de um Salvador, no entanto, sem o Espírito do Deus vivo, nossa pregação ainda seria vã, e tanto nossos ouvintes quanto nós mesmos continuaríamos mergulhados em nossos pecados. Pregar corretamente só pode ser realizado pela operação do Espírito Santo. Talvez haja uma coisa chamada pregação proveniente do esforço humano, mas os ministros de Deus são ensinados pelo Santo; e quando a sua palavra é abençoada, seja para o santo ou para o pecador, a bênção não vem deles, mas do Espírito Santo, e a Ele seja toda a glória, pois não sois vós que falais, mas o Espírito do vosso Pai que está em vós.
O mesmo se dá com os cânticos sagrados. De quem são as asas em que subo aos céus em santa alegria e harmonia? São Tuas, ó Pombo Divino! De quem é o fogo que inflama o meu espírito em tempos de santa consagração? Tua é a chama, ó Espírito flamejante! Tua. De quem era a língua de fogo que pousou sobre os apóstolos? Tua, ó Santo de Israel! De quem é o orvalho que cai sobre a erva seca e a enche de graça e vigor? São Tuas as gotas sagradas, Orvalho de Deus; Tu és a aurora de onde procedem todos os santos ornamentos (Salmo 110.3). Tu trabalhas em nós e só Tu mereces toda a nossa gratidão. Portanto, todas as ações dos cristãos, tanto as pequenas como as grandes, são ensinamentos do Espírito Santo.
2. E, além disso, tudo o que o crente realmente sabe, tudo o que é útil para ele, é ensinado pelo Espírito Santo. Podemos aprender muito, moral e mentalmente, com a Palavra de Deus, porém os filósofos cristãos entendem que há uma distinção entre alma e espírito; que a alma natural, ou intelecto humano, pode receber instrução suficiente da Palavra de Deus, mas as coisas espirituais só podem ser discernidas espiritualmente e, até que este terceiro e mais sublime componente ━ o espírito ━ seja infundido em nós na regeneração, não temos sequer a capacidade ou a possibilidade de conhecer as coisas espirituais. Ora, é sobre este terceiro e mais sublime componente que o apóstolo fala quando diz “corpo, alma e espírito”. Os filósofos da mente declaram que isso não existe ━ o espírito. Eles conseguem distinguir o corpo e a alma, mas não o espírito. E eles estão totalmente certos ━ não existe essa coisa de espírito no homem natural. Esse componente ━ o espírito ━ é uma infusão do Espírito Santo na regeneração, e não pode ser detectado pela filosofia  da mente. É algo sutil demais, raro e celestial, para ser descrito por homens como Dugald Stewart (1), Reid (2) ou Brown (3), ou qualquer desses grandes homens que podem dissecar a mente humana, mas não conseguem compreender o espírito. Portanto, primeiro o Espírito de Deus nos dá um espírito, depois Ele educa esse espírito; e tudo o que esse espírito sabe lhe é ensinado pelo Espírito Santo. Talvez a primeira coisa que aprendamos seja sobre o pecado: o espírito reprova o pecado. Ninguém conhece a extensão da corrupção do pecado, a não ser pelo Espírito Santo. Você pode punir uma pessoa, falar-lhe da ira de Deus e do pecado, mas não pode fazê-la saber como o pecado é perverso e amargo até que o Espírito Santo tenha ensinado a ela. Esta é uma lição realmente difícil de ser aprendida e, quando o Espírito nos faz sentar no banquinho do arrependimento e começa a infundir em nós essa grande verdade, que o pecado é uma maldição latente, que é o inferno em embrião, só então começamos a perceber essas coisas e clamamos: “Agora sei que sou um vil pecador; minha alma se aborrece no pó e nas cinzas”. Ninguém, repito, ninguém jamais conhecerá a perversão do pecado pela argumentação, pela punição, pela disciplina moral ou por qualquer outro meio que não seja a educação pelo Espírito Santo. Esta é uma verdade que está fora do alcance do intelecto humano conhecer. Somente o espírito, enxertado e concedido pelo Espírito Santo ━ somente esse espírito pode aprender a lição, e só o Espírito Santo pode ensiná-la.
A próxima lição ensinada pelo Espírito é a nossa completa ruína, depravação e impotência. Os homens acham que esse é um conhecimento natural, mas não é; eles só podem repetir palavras, como papagaios. Mas saber que estou completamente perdido e arruinado, saber que estou tão perdido “que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem nenhum” (Romanos 7.18), é um conhecimento tão detestável, tão odioso, tão abominável para a mente carnal, que ninguém, se pudesse, o compreenderia, e se compreende, é prova clara de que Deus, o Espírito Santo, o tornou disposto a ver a verdade, e disposto a aceitá-la. Quando ouvimos grandes pregadores nos dizendo que o homem ainda possui algo maravilhoso, que, quando Adão caiu, talvez tenha quebrado um dedinho, mas não tenha se arruinado completamente, que o homem é um ser magnífico, uma criatura realmente nobre, e que estamos errados ao dizer às pessoas que elas são totalmente corrompidas, vociferando contra elas a lei de Deus ━ será que nos surpreendemos? Não, irmãos, essa é a linguagem da mente carnal no mundo inteiro, em todas as épocas. Não é de admirar que as pessoas sejam eloquentes nessa questão, pois todos precisam ser eloquentes quando precisam defender uma mentira. Não é de admirar que, sobre esse assunto, frases maravilhosas sejam proferidas e sentenças floreadas se derramem da cornucópia da eloquência. Eles precisam esgotar toda a lógica e toda a retórica para defender o engano, e não é de admirar que o façam, pois o homem acha que é rico, cheio de bens, sem necessidade alguma, até que o Espírito Santo lhe ensine que ele é pobre, nu e miserável.
Aprendidas essas lições, o Espírito continua a nos ensinar, agora sobre a natureza e o caráter de Deus. Deus pode ser ouvido em cada lufada de vento e visto em cada nuvem no céu, mas estas coisas não mostram tudo sobre Deus. Sua bondade e onipotência são claramente manifestadas a nós pelas obras da criação, mas onde aprendemos sobre a Sua graça, sobre a Sua misericórdia e sobre a Sua justiça? Estas são linhas que não podemos ler na criação. Na verdade, é preciso ter ouvidos que sejam capazes de ouvir as notas da misericórdia ou o sussurro da graça no vendaval noturno. Não, meus irmãos, estas partes dos atributos de Deus são reveladas a nós somente no Livro precioso, e são reveladas de tal forma que não podemos conhecê-las até que o Espírito abra nossos olhos para compreendê-las. Conhecer a inflexibilidade da justiça Divina e ver como Deus pune todos os mínimos detalhes do pecado, e ainda saber que essa plena justiça não obscurece a Sua igualmente plena misericórdia, mas que as duas circulam uma ao redor da outra, sem, por um momento sequer, se cruzar ou entrar em conflito ou lançar a mais leve sombra sobre a outra; compreender como Deus é, ao mesmo tempo, justo e justificador do pecador, e assim saber que meu espírito ama Sua natureza, aprecia Seus atributos e deseja ser como Ele ━ este é um conhecimento que a astronomia não pode ensinar, que todas as pesquisas científicas nunca poderão nos dar. Precisamos ser ensinados por Deus, para aprendermos sobre Ele ━ precisamos ser ensinados por Deus, por Deus, o Espírito Santo. Ah, que possamos aprender bem esta lição; que sejamos capazes de cantar a Sua fidelidade, a Sua aliança de amor, a Sua imutabilidade, a Sua misericórdia abundante, a Sua justiça inflexível; que sejamos capazes de falar uns aos outros sobre Aquele que é incompreensível; que sejamos capazes de compreendê-lo como alguém compreende um amigo; e que andemos com Ele como andou Enoque todos os dias da sua vida. Essa, de fato, precisa ser a educação dada pelo Espírito Santo.
Mas, para não prolongar mais estes pontos, embora possam gerar muitas ideias, observemos que, de forma especial, o Espírito Santo nos ensina sobre Jesus Cristo. É o Espírito Santo que manifesta a nós a glória da pessoa do Salvador; é Ele quem nos revela o complexo caráter da Sua humanidade e da Sua deidade; é Ele quem nos fala sobre o amor do Seu coração, do poder do Seu braço, da pureza dos Seus olhos, da preciosidade do Seu sangue e da força da Sua argumentação em nosso favor. Saber que Cristo é o meu Redentor é saber muito mais do que Platão poderia ter me ensinado. Saber que sou membro do Seu corpo, da Sua carne e dos Seus ossos; que meu nome está no Seu peito e gravado na palma das Suas mãos, é saber muito mais do que as Universidades de Oxford ou Cambridge poderiam ensinar a todos os seus acadêmicos, e que eles jamais poderiam aprender tão bem. Nem aos pés de Gamaliel Paulo aprendeu a dizer: “vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim” (Gl 2.20b). Nem em meio aos rabinos ou aos pés dos membros do Sinédrio, ele aprendeu a proclamar: “Mas o que, para mim, era lucro, isto considerei perda por causa de Cristo” (Fp 3.7); e “longe esteja de mim gloriar-me, senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo” (Gl 6.14). Não, isso precisou ser ensinado, como ele mesmo diz: “não pela carne não pelo sangue; mas pelo Espírito Santo”.
Preciso dizer também que é o Espírito quem nos ensina sobre a nossa adoção. Na verdade, todos os privilégios da nova aliança, começando pela regeneração, passando pela redenção, perdão, justificação, santificação, adoração, preservação, segurança eterna, até a majestosa entrada no reino de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo ━ tudo isso é ensinamento do Espírito Santo, especialmente o último elemento, pois “Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que Deus tem preparado para aqueles que o amam. Mas Deus no-lo revelou pelo Espírito; porque o Espírito a todas as coisas perscruta, até mesmo as profundezas de Deus” (1Co 2.9-10). Ele nos conduz às  alegrias vindouras, eleva nosso espírito e nos dá
“Aquela calma interior dentro do peito,
A plena garantia do descanso perfeito,
O qual para a igreja de Deus perdura,
O fim das dores e de toda amargura”
II ━ E, agora, vamos ao segundo ponto ━ OS MÉTODOS PELOS QUAIS O ESPÍRITO SANTO ENSINA ESSAS COISAS PRECIOSAS AOS FILHOS DE DEUS.
Aqui precisamos ressaltar que nada sabemos sobre a forma de agir do Espírito, pois Ele é misterioso; não sabemos de onde vem, nem para onde vai. No entanto, deixem-me descrever o que podemos perceber. Primeiro, ao ensinar o povo de Deus, umas primeiras coisas que o Espírito faz é despertar o seu interesse. Às vezes penso que, quando os jovens estão sendo treinados para o ministério, a coisa mais difícil é fazê-los engrenar. Eles são como morcegos no chão. Quando um morcego cai na terra, ele não consegue voar se não rastejar para cima de uma pedra e ficar um pouco acima do solo; só então ele consegue bater as asas e levantar voo. Existem muitas pessoas que precisam receber um impulso; elas têm talento, mas ele está adormecido, e é preciso soprar uma espécie de apito em seus ouvidos para colocá-las em movimento e tirar a venda de seus olhos. Ora, é exatamente isso o que acontece quando o Espírito de Deus começa a ensinar uma pessoa. Ele desperta o seu interesse para as coisas que Ele quer que ela aprenda; Ele lhe mostra que essas coisas são uma influência pessoal para o bem da sua alma no presente e no futuro. Ele a convence da verdade preciosa de que aquilo que para ela era indiferente ontem, hoje é de valor inestimável. Antes ela dizia: “de que me serve a teologia?” Agora, no entanto, o conhecimento de Cristo, e Ele crucificado, se torna a ciência mais desejável e excelente de todas. O Espírito Santo desperta o seu interesse.
Isso feito, Ele dá à pessoa um espírito ensinável. Existem aqueles que nunca irão aprender. Eles dizem que querem saber, mas nunca acharemos o jeito certo de ensiná-los. Se ensinamos um pouquinho de cada vez, eles dizem: “Você acha que sou criança?”; e se ensinamos uma porção de coisas de uma só vez, dizem: “Não consigo entender o que você diz”. Às vezes, tenho vontade de dizer àqueles que falam que não compreendem o que estou tentando lhes ensinar: “Ainda bem que não sou eu quem tem de lhe dar entendimento, se você não tem”. Ora, é o Espírito Santo que dispõe a pessoa a aprender. O discípulo senta-se aos pés de Cristo e O deixa falar o que quiser, e ensiná-lo como quiser, seja com a vara ou com um sorriso, pois está totalmente disposto a aprender. Por mais desagradáveis que sejam as lições, o aluno regenerado ama aprender as coisas que antes odiava. Por mais cortantes que sejam para o seu orgulho as doutrinas do evangelho, ele ama cada uma delas exatamente por isso, pois clama: “Senhor, humilha-me! Senhor, faz-me submisso! Ensina-me as coisas que me farão cobrir a cabeça com pó e cinzas! Mostra-me que nada sou ━ faz-me conhecer a minha insignificância; revela a minha indignidade”. Portanto, o Espírito Santo continua Seu trabalho despertando o interesse e inflamando um espírito ensinável.
Depois disso, o Espírito Santo ilumina a verdade. Às vezes, é muito difícil explicar uma coisa que você conhece muito bem de forma que outra pessoa também possa compreendê-la. É como um telescópio. Tem gente que fica desapontada com um telescópio porque, toda vez que entra num observatório e olha através da lente, esperando observar os anéis de Saturno ou os cinturões de Júpiter, diz que só consegue ver um pedaço de vidro e uns grãozinhos de areia. No entanto, um astrônomo vem, olha e diz: “Como Saturno é maravilhoso”! Mas, por que a outra pessoa não conseguiu ver nada? Porque o foco não estava ajustado ao seu olho. Com um pouco de habilidade, o foco pode ser alterado para que o observador seja capaz de ver aquilo que não conseguia ver antes. O mesmo acontece com a linguagem; ela é uma espécie de telescópio pelo qual podemos fazer outras pessoas conhecerem nossos pensamentos, mas nem sempre podemos ajustar o foco para elas. Quem ajusta o foco da maneira correta para o entendimento da verdade é sempre o Espírito Santo. Ele lança uma luz tão forte e poderosa sobre a Palavra, que o espírito da pessoa diz: “Ah, sim, agora entendo”. Mesmo no Livro precioso existem palavras que li uma centena de vezes e não consegui compreender até que, em dado momento, uma palavra-chave pareceu saltar do meio do versículo e me dizer: “veja este versículo sob a minha luz”; só então compreendi ━ nem sempre pela palavra do próprio versículo, mas pelo seu contexto ━ compreendi o significado que antes não conseguia ver. Isso, igualmente, é parte da instrução do Espírito: lançar luz sobre a verdade. Mas o Espírito Santo não ilumina somente a verdade, Ele ilumina também o entendimento. É maravilhoso, ainda, como Ele ensina pessoas que parecem não ter capacidade alguma para aprender. Não é minha intenção dizer algo que possa magoar alguém, mas conheço alguns irmãos, os quais não vou dizer se estão aqui hoje, cuja opinião sobre coisas seculares eu não levaria em conta. Em questões financeiras, por exemplo ━ ou qualquer coisa que requeresse a opinião de outra pessoa ━ eu não os consultaria. No entanto, estes irmãos possuem um conhecimento mais profundo, mais verdadeiro e mais prático da Palavra de Deus do que muitos pregadores, pois o Espírito Santo nunca tentou lhes ensinar gramática, nem teve a intenção de lhes ensinar a negociar, nem quis lhes ensinar astronomia, mas Ele tem lhes ensinado a Palavra de Deus, e eles a têm compreendido. Outros professores tentaram inculcar-lhes os rudimentos da ciência, mas sem sucesso, pois suas mentes são confusas e atrapalhadas demais; o Espírito Santo, no entanto, tem lhes ensinado a Palavra de Deus, e ela é clara o suficiente para eles. Tenho contato direto com alguns jovens. Quando temos aulas com ilustrações provenientes do conhecimento científico, todos eles parecem compenetrados; mas, no momento em faço alguma pergunta para ver se realmente compreenderam o assunto, eles ficam perdidos. Contudo, quando abordamos o capítulo de algum antigo livro dos Puritanos ━ que tratam de teologia ━ esses irmãos nos dão as respostas mais brilhantes e inteligentes de toda a classe. Quando discutimos questões hipotéticas e controversas, descubro que eles são capazes de derrubar seus adversários e vencê-los de um só golpe, pois têm profundo conhecimento da Palavra de Deus. O Espírito lhes ensina as coisas de Cristo, nada mais. Percebo também que quando o Espírito amplia o entendimento sobre a verdade bíblica, esse entendimento se torna mais capaz de compreender outras verdades. Há algum tempo, ouvi de um irmão ministro, enquanto fazíamos a comparação de algumas notas, a história de um homem que era um perfeito pateta. Ele era pouco mais que um imbecil, mas, quando foi convertido a Deus, uma das primeiras coisas que quis fazer foi ler a Bíblia. Era muito, muito difícil ensinar-lhe um versículo, mas ele queria aprender, e queria entender. Ele se esforçava ao máximo,  até conseguir ler: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”. Depois, começaram a lhe pedir para orar. No início, ele mal conseguia formular uma frase, mas, aos poucos, foi atingindo um considerável grau de fluência, pois ele queria orar. Nas reuniões de oração, dizia, ele não queria ficar calado, sem dizer nada a seu Mestre. Ele começou a ler cada vez mais sua Bíblia, e a orar com grande proveito e aceitação daqueles que o ouviam e, não muito tempo depois, já falava nos vilarejos, e acabou por se tornar um bom e honrado pastor de uma das nossas igrejas Batista. Se, logo no início, o Espírito de Deus não tivesse ampliado seu entendimento para receber a verdade do evangelho, esse entendimento teria ficado limitado, preso e bloqueado até hoje, e o homem poderia continuar um pateta até ir para o túmulo, ao passo que, agora, ele se levanta para dizer aos pecadores ao seu redor, em linguagem fervorosa, a história da cruz de Cristo! O Espírito nos ensina iluminando o nosso entendimento.
A fim de não cansá-los, vou me apressar nos próximos pontos. O Espírito também nos ensina reavivando a nossa memória. “O Espírito Santo vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito” (João 15.26). Ele coloca todos aqueles antigos tesouros no baú da nossa alma e, quando chega o tempo certo, Ele o abre e revela cada joia preciosa na devida ordem, mostrando-as repetidamente a nós. Ele reaviva a nossa memória e, quando isso é feito, Ele nos ensina a Palavra da maneira mais excelente, fazendo-nos sentir o seu efeito, o que, no final das contas, é a melhor forma de aprender. Você pode tentar ensinar a uma criança o significado da palavra “doçura”; mas as palavras não ajudarão muito; no entanto, se você lhe der um doce, ela nunca se esquecerá do significado. Você pode tentar lhe falar sobre as montanhas magníficas, e sobre os Alpes, cujos picos recobertos de neve atingem as nuvens como embaixadores vestidos de branco nas cortes do céu; mas leve-a até lá, deixe que ela os veja, e ela jamais se esquecerá deles. Você pode tentar retratar-lhe a grandeza do continente americano, com seus montes e lagos e rios, tais como o mundo nunca viu; mas leve-a até lá e deixe que ela veja tudo com seus próprios olhos, e ela conhecerá mais sobre aquele lugar do que poderia conhecer com todo o ensino recebido em casa. O Espírito Santo, da mesma forma, não apenas nos fala sobre o amor de Cristo; Ele o irradia em nosso coração. Ele não apenas nos fala sobre a doçura do perdão; Ele também nos dá um senso de nenhuma condenação; e assim aprendemos muito melhor do que se fôssemos ensinados por palavras e ideias. Ele nos leva à sala do banquete e agita sobre nós o seu estandarte de amor (Cantares 2.4). Ele nos convida a visitar o jardim das nogueiras (Cantares 6.11) e nos faz deitar entre os lírios. Ele nos dá aquele ramalhete de flores de hena, o nosso próprio Amado, e nos pede para colocá-lo em nosso seio durante a noite. Ele nos leva à cruz de Cristo e nos pede para colocar o dedo no lugar dos cravos e a mão no Seu lado, e nos diz: “não sejais incrédulos, mas crentes”, e assim, da forma mais sublime e eficaz Ele nos ensina para o nosso próprio bem.
III ━ E agora chegamos ao meu terceiro ponto, embora eu sinta como se desejasse que meu assunto fosse um pouco menos abrangente; na verdade, este é um problema que nem sempre acontece ━ ter muito, e não pouco, para falar. Mas quando chegamos a um tópico onde Deus deve ser glorificado, aí nossa língua deve realmente ser como a pena de um escritor disposto, quando falamos sobre as coisas concernentes ao rei.
Vou lhes falar, então, sobre AS CARACTERÍSTICAS e a NATUREZA DO ENSINO DO ESPÍRITO SANTO. Primeiramente, gostaria de ressaltar que o ensino do Espírito Santo é soberano. Ele ensina a quem quer. Ele pega o tolo e o faz conhecer as maravilhas do amor sacrificial de Cristo, para envergonhar a sabedoria segundo a carne e abater e humilhar o orgulho do homem. E, da mesma forma que o Espírito ensina a quem quer, Ele também ensina quando quer. Ele tem o seu próprio tempo de instrução, e não é limitado ou cerceado por nós. Além disso, Ele ensina como Ele quer ━  alguns pela aflição, outros pela comunhão; alguns pela leitura da Palavra, outros pela pregação da Palavra; e alguns nem por uma coisa nem outra, mas diretamente pela Sua própria agência. Por tudo isso, o Espírito é soberano naquilo que ensina, instruindo a cada um na medida que Lhe apraz. Ele fará uma pessoa aprender muito, e outra pouco. Para alguns cristãos a barba nasce logo ━ eles alcançam rápida e repentinamente um alto nível de maturidade, enquanto outros se arrastam lentamente até o alvo, demorando muito para alcançá-lo. Alguns, logo nos primeiros anos, adquirem uma compreensão bem maior do que outros cujos cabelos já são grisalhos. O Espírito Santo é soberano. Ele não mantém todos os alunos na mesma classe, e nem todos na mesma lição, ensinando-os em conjunto; cada aluno está numa classe, cada um aprendendo uma lição diferente. Alguns começam no final do livro, outros no início, e outros, ainda, no meio ━ alguns aprendem uma doutrina, enquanto outros aprendem outra; alguns retrocedem, outros seguem em frente. O ensino do Espírito Santo é soberano e dá a cada pessoa aquilo que Ele quer; no entanto, o que quer que ensine, Ele ensinará de forma eficaz. Ele nunca falhou em nos fazer aprender. Ninguém jamais foi expulso da escola do Espírito por ser incorrigível. Ele ensina todos os Seus filhos, não apenas alguns ━ “Todos os teus filhos serão ensinados do SENHOR; e será grande a paz de teus filhos” (Isaías 54.13) ━ a última frase é uma prova de que todos são ensinados de modo eficaz. O Espírito nunca deixou de ensinar a verdade ao coração, ainda que o coração esteja incapacitado de recebê-la. O Espírito tem o jeito certo de alcançar as fontes secretas da vida e de colocar a verdade bem no centro da alma. Ele lança o remédio na própria fonte, não na correnteza. Nós instruímos o ouvido, e o ouvido está longe do coração; Ele ensina o próprio coração, por isso, a Sua palavra cai em terreno fértil e produz fruto bom e abundante ━ o ensino do Espírito é eficaz. Querido irmão, às vezes você sente que é um grande tolo? Seu maravilhoso Mestre ainda fará de você um grande aluno. Ele o ensinará para que você entre no reino do céu sabendo tanto quanto os crentes mais brilhantes. Mas, além de ser soberano e eficaz, o ensino do Espírito Santo também é infalível. Nós, muitas vezes, cometemos erros em nosso ensino; às vezes por excesso de zelo, outras por falta de atenção. Mesmo os maiores pregadores ou professores não são perfeitos, por isso, nossos ouvintes devem submeter aquilo que dizemos à lei e ao testemunho (Isaías 8.20); o Espírito Santo, no entanto, jamais comete erros ━ se aprendeste alguma coisa pelo Espírito Santo, ela é uma verdade sólida, pura e inalterada. Entrega-te diariamente ao Seu ensino e jamais aprenderás uma palavra incorreta, uma ideia inadequada, mas serás ensinado de forma infalível, bem ensinado em toda verdade que está em Jesus.
Além do mais, onde o ensino do Espírito é infalível ele é também contínuo. O Espírito nunca deixa incompleta a educação daqueles a quem ensina. Por mais tolo que seja o aluno, por mais fraca que seja sua memória, por mais degenerada que seja sua mente, o Espírito Santo sempre segue em frente com Seu gracioso trabalho, até nos educar e nos fazer “idôneos à parte que nos cabe da herança dos santos na luz” (Colossenses 1.12). Ele também não nos abandona até nos ter instruído completamente; pois nosso texto diz que: “Ele vos ensinará todas as coisas”. Não existe verdade tão sublime que não possa ser apreendida, nem doutrina tão complexa que não possa ser aceita. Mais e mais alto, a colina do conhecimento se eleva, mas quando estiverem lá, teus pés lá permanecerão. Por mais difícil que seja o caminho, e por mais fracos que sejam os teus joelhos, subirás até o topo e, um dia, com tua fronte banhada pela luz do céu, tua alma olhará com desdém os temporais, neblinas, nuvens e fumaça da terra, e verá o Mestre face a face, e será como Ele, e O conhecerá como Ele é. Este é o gozo do cristão: ser completamente instruído pelo Espírito Santo, O qual não desistirá dele até lhe ensinar toda a verdade.
Receio, no entanto, que hoje eu os tenha deixado entediados. Um assunto como este não é adequado para todas as pessoas. Como já disse, somente a mente espiritual pode receber coisas espirituais, e a doutrina da atuação do Espírito nunca será interessante àqueles a quem ela é totalmente estranha. Não podemos fazer uma pessoa compreender a força de um choque elétrico a menos que ela o sinta. É totalmente improvável que uma pessoa acredite nas forças ocultas que movem o universo a menos que ela tenha algum meio de testá-las. E, para aqueles que nunca sentiram a força do Espírito, ela lhes é tão estranha quanto o seria para uma pedra; eles estão fora de seu elemento natural quando ouvem falar sobre Ele. Eles não conhecem o Seu poder divino; nunca receberam Seus ensinamentos e, por isso, como deveriam se preocupar em saber quais verdades Ele ensina?
Portanto, concluo esta mensagem com uma reflexão bastante dolorosa. Como é lamentável, lamentável, mil vezes lamentável, que haja tantas pessoas que não conhecem o perigo que correm, que não sentem o peso do próprio fardo, e em cujos corações a luz do Espírito Santo nunca brilhou! Será este o seu caso, querido ouvinte? Não estou perguntando se você tem educação formal; talvez tenha, e talvez tenha se formado com honras entre os primeiros da classe; mas pode ser também que ainda seja como um burro xucro. A religião, e a verdade sobre ela, não pode ser aprendida com a mente. Anos de leitura, horas de estudo contínuo nunca farão de alguém um cristão. “O espírito é o que vivifica; a carne para nada aproveita” (João 6.63). Ah, não tens o Espírito do Deus vivo? Pois, eu te digo, meu amigo, para te lembrares disto: se a influência misteriosa e sobrenatural do Espírito Santo nunca encheu a tua alma, todas as coisas de Deus te são totalmente estranhas. As promessas não são tuas; o céu não é teu; e tu estás a caminho da terra dos mortos, da região dos cadáveres, onde os vermes não morrem e o fogo jamais se apaga. Ó, que o Espírito de Deus possa repousar sobre você neste momento! Pense nisso, pois você depende totalmente da Sua influência. Você está nas mãos de Deus para ser salvo ou perdido ━ você não está em suas próprias mãos, mas nas Dele. Você está morto em seus pecados; e, a menos que Ele o vivifique, você continuará assim. Você está à mercê de Deus da mesma forma que uma traça entre os seus dedos. Basta que Ele o deixe como está e você estará perdido; mas, quando a misericórdia fala e diz: “Que ele viva”, você é salvo. Gostaria que você pudesse sentir o peso dessa tremenda doutrina da soberania de Deus. É como o machado de Thor, que pode sacudir o seu coração, por mais duro que ele seja, e fazer a rocha da sua alma tremer na base.
“A vida, a morte e o inferno, e todos os mundos desconhecidos
Dependem totalmente do Seu firme decreto”
Neste momento, seu destino está por um fio. Você vai se rebelar contra o Deus em cujas mãos repousa o destino eterno da sua alma? Vai levantar o débil punho da sua rebelião contra Aquele que é o único que pode vivificá-lo ━ sem cuja força graciosa você está morto e deve ser destruído? Vai pecar contra a luz e contra o conhecimento? Vai rejeitar a misericórdia que é proclamada em Jesus Cristo? Se assim for, nenhum tolo jamais foi tão louco quanto você, rejeitando Aquele sem O qual você está morto, perdido e arruinado. Ah, que, em vez disso, haja o sussurro divino do Espírito dizendo: “Obedeça o mandamento divino, creia em Cristo e viva!” Ouve a voz de Yahweh, que clama:  “O mandamento é este, crê nAquele que foi enviado, Jesus Cristo”! E assim, obediente, Deus diz consigo mesmo: “Porque a mim se apegou com amor, eu o livrarei; pô-lo-ei a salvo, porque conhece o meu nome”. E você viverá para cantar no céu a soberania que, quando sua alma tremeu na balança, decidiu pela sua salvação, e lhe deu luz e alegria indizível. Jesus Cristo, o Filho de Deus, morreu na cruz do Calvário, e “todo aquele que nEle crer será salvo”. “Para vós outros, portanto, os que credes, é a preciosidade; mas, para os descrentes, a pedra que os construtores rejeitaram, essa veio a ser a principal pedra, angular” (1 Pedro 2.7). Creia no testemunho da verdade! Abaixe suas armas! Renda-se à soberania do Espírito Santo e, com certeza, Ele vai lhe mostrar que, na sua própria rendição Ele prova que já o amava, pois foi Ele quem o fez se render; foi Ele quem o tornou disposto a se curvar diante dEle no dia do Seu poder! Que o Espírito Santo agora abençoe a palavra que lhes falei, por amor do Senhor Jesus!
(1) Filósofo escocês nascido em Edimburgo, líder da escola escocesa de filosofia, na sua época, especialmente como um metafísico. Filho único de Matthew Stewart (1717-1785), um professor de matemática da University of Edinburgh, e de Marjory Stewart, filha do escritor Archibald Stewart. Educado em um seminário de Edinburgh, estudou matemática com seu pai na unicversidade local, mas logo descobriu sua vocação também para os temas filosóficos, especialmente orientado pelo Dr. Stevenson, professor de lógica, e Dr Adam Ferguson, professor de moral filosófica. Mudou-se então para Glasgow (1771) para estuar com Thomas Reid e voltou a Edimburgo (1773) para ensinar como auxiliar, matemática e moral filosófica. Com a morte do pai (1785) assumiu a titularidade da Chair of Mathematics, porém logo a trocou pela disciplina de Moral Philosophy. Casou-se (1790) com Helen D’Arcy Cranstoun, filha do honorável Mr. George Cranstoun, e desse casamento nasceram duas crianças. Influenciado por Reid, tornou-se líder da escola filosófica escocesa e escreveu vários livros com destaque para Philosophy of the Human Mind (3 volumes: 1792, 1814, 1827). Sua morte ocorreu durante uma visita à Ainslie Place, Edinburgh (1828).
(2) 1710‑1796) é um dos filósofos mais importantes do Iluminismo Escocês. Considerado o fundador da "Escola escocesa do senso comum", passou quase toda a sua vida na Escócia. Concluiu seus estudos de teologia e filosofia na Marischal College, em Aberdeen (1723-1731). Em seguida, atuou como pastor da Igreja Presbiteriana, na Escócia (1731-1751). Em 1752, foi nomeado professor regente no King's College, da Universidade de Aberdeen. Nesse período, lecionou disciplinas como matemática, física, psicologia, filosofia da mente, história natural, filosofia moral, entre outras. Em 12 de janeiro de 1758, ajudou a fundar a Aberdeen Philosophical Society ou Clube Sábio [Wise Club]. A sociedade contava com um grupo seleto de filósofos e eruditos, motivados por uma leitura rigorosa e crítica de filósofos como Berkeley, Locke, Butler e Hume. Em 18 de janeiro de 1762, Reid recebeu o título de "doutor honoris causa" em teologia, concedido por Marischal College. Dois anos mais tarde, em dezembro de 1763, aceitou o convite da Universidade de Glasgow para suceder Adam Smith em uma das cátedras mais ilustres da Europa na época: a cátedra de "Filosofia Moral da Universidade de Glasgow".

(3) Filósofo escocês (1778-1820).


Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza

terça-feira, 31 de outubro de 2017

31 de outubro - Devocional matutina

“renova dentro de mim um espírito inabalável” ━ Salmo 51.10

Para o infiel, se ainda restou dentro dele uma centelha de vida, ela irá brilhar após sua restauração. Nessa renovação, é preciso o mesmo exercício da graça que houve na nossa conversão. Naquele momento foi preciso arrependimento; e, com certeza, agora também. Carecíamos de fé para nos aproximar de Cristo; agora, só a mesma graça pode nos levar a Ele. No início, foi necessário uma palavra do Altíssimo, uma palavra dos lábios do Amado, para pôr fim aos nossos medos; agora, logo descobriremos que, quando temos plena convicção do nosso pecado, também necessitamos dela. Como no princípio, ninguém pode ser renovado sem a manifestação real e verdadeira da força do Espírito Santo, pois a obra é imensa, e carne e sangue irão se opor a ela como sempre fizeram. Que a tua fraqueza pessoal, ó cristão, seja um bom argumento para orares a Deus com fervor, suplicando o Seu auxílio. Lembre-se, Davi, quando se sentiu impotente, não cruzou os braços nem fechou os lábios, mas correu para o propiciatório, pedindo: “renova dentro de mim um espírito inabalável”. Não permita que a doutrina “sem auxílio, você nada pode fazer” o entorpeça; mas que ela o leve, com toda sinceridade, ao poderoso Ajudador de Israel. Ah, que você possa ter a graça de rogar a Deus, como se rogasse por sua própria vida: “Senhor, renova dentro de mim um espírito inabalável”. Aquele que, sinceramente, ora a Deus pedindo isso, provará sua honestidade usando os meios pelos quais Deus opera: orando sem cessar, vivendo de acordo com Sua Palavra; fazendo morrer as concupiscências que o afastam do Senhor; vigiando para não cair em tentação. O Senhor tem seus próprios caminhos; sente-se à beira da estrada e você estará pronto quando Ele passar. Permaneça firme em todas as benditas ordenanças que alimentam e nutrem seus dons desvanecentes; e, sabendo que todo poder deve vir Dele, não cesse de clamar: “renova dentro de mim um espírito inabalável”.

Charles Spurgeon
Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

19 de outubro - Devocional matutina

Crianças em Cristo - 1 Coríntios 13.1

Crente, você lamenta por ser tão fraco na vida cristã: por sua fé ser tão pequena e seu amor tão pobre? Anime-se, pois você tem motivo de gratidão. Lembre-se de que em algumas coisas você é igual aos cristãos mais nobres e maduros. Como eles, você foi comprado com sangue. Como qualquer outro crente, você é filho adotivo de Deus. Assim como um adulto, uma criança também é filha de seus pais. Você é totalmente justificado, pois a justificação não é gradual: sua pequenina fé já o deixou completamente limpo. Como os crentes mais maduros, você também tem tanto direito às joias preciosas da aliança, pois seu direito às suas misericórdias não está em seu crescimento, mas na própria aliança; e sua fé em Jesus não é a medida, mas o sinal da sua herança nEle. Você é tão rico quanto os mais ricos, se não em prazer, em posse real. Mesmo a menor estrelinha também brilha no céu; o raio de luz mais tênue tem afinidade com o grande astro que ilumina o dia. No rol da família da glória, o menor e o maior são inscritos com a mesma pena. Você é tão querido ao coração do Pai quanto os mais nobres da família. A ternura de Jesus por você é abundante. Você é como um pavio fumegante. Um espírito mais rude diria: “apague esse pavio, ele enche a sala com um cheiro horroroso!”, mas Ele não apagará o pavio fumegante. Você é como a cana quebrada, e qualquer mão mais pesada que a do Mestre de Canto o esmagaria ou jogaria fora, mas Ele nunca esmagará a cana quebrada. Em vez de ficar abatido pelo que você é, sinta-se triunfante em Cristo. Sou pequeno em Israel? Cristo me faz assentar em lugares celestiais. Sou pobre na fé? Em Jesus, sou herdeiro de todas as coisas. Embora “de nada possa me orgulhar, só vaidade confessar”, se a raiz do mal está em mim (Jó 19.28), “eu me alegro no SENHOR, exulto no Deus da minha salvação” (Hb 3.18).
Charles Spurgeon
Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

18 de outubro - Devocional Matutina

as tuas pegadas destilam fartura - Salmo 65.11

Muitas são “as pegadas do Senhor” que “destilam fartura”, mas uma, em especial, é a da oração. Nenhum crente, cujo tempo é gasto em seu quarto (Mateus 6.6), terá necessidade de gritar: “Definho, definho, ai de mim!” (Isaías 24.16). As almas famintas vivem longe do propiciatório e se tornam como campos secos na época da estiagem. A persistência com Deus em oração, com certeza, torna o crente mais forte — se não mais feliz. A coisa mais próxima da porta dos céus é o trono da graça celestial. Passe muito tempo a sós com Jesus e você terá muita segurança; passe pouco tempo com Ele, e sua religião será superficial, cheia de dúvidas e medos, sem o brilho da alegria do Senhor. Tendo em vista que o caminho da oração, o qual enriquece a alma, está aberto até para o cristão mais fraco; que não são necessárias grandes conquistas; e que você não é convidado a vir porque é um super crente, mas tem livre acesso se for realmente crente; cuide, caro leitor, para que você esteja sempre no caminho da devoção particular. Dobre seus joelhos, pois foi assim que Elias trouxe chuva sobre os campos famintos de Israel.
Há também outra pegada especial que destila fartura para aqueles que andam nela, a caminhada secreta da comunhão. Ah! As delícias da intimidade com Jesus! A terra não tem palavras para descrever a serenidade de uma alma reclinada sobre o Seu peito. Poucos cristãos a compreendem; eles vivem nas terras baixas e raramente escalam até o topo do monte Nebo: vivem no pátio externo, não entram no Santo Lugar, não abraçam o privilégio do sacerdócio. Observam o sacrifício à distância, mas não se sentam com o sacerdote para comê-lo e se deleitar com a gordura da oferta queimada. Mas tu, leitor, assenta-te sempre à sombra de Jesus; aproxima-te da palmeira e apanha seus ramos; que o teu Amado seja para ti como a macieira entre as árvores do bosque; e tu te fartarás de banha e de gordura (Salmo 63.5). Ó Jesus, visita-nos com a tua salvação!
Charles Spurgeon
Tradução e Revisão: Mariza Regina de Souza

terça-feira, 17 de outubro de 2017

17 de outubro - Devocional Matutina

Disse, porém, Davi consigo mesmo: Pode ser que algum dia venha eu a perecer nas mãos de Saul. (1 Samuel 27.1)

O pensamento de Davi naquele momento era um pensamento falso, pois, com certeza, ele não tinha motivos para achar que Deus o tinha ungido por meio de Samuel com a intenção de abandoná-lo sem mais nem menos. Em momento algum o Senhor desamparou Seu servo; é bem verdade que Ele o colocou diversas vezes em posição de perigo, mas em nenhuma delas a intervenção divina deixou de livrá-lo. As provações pelas quais ele passou foram bem variadas; elas não foram todas iguais, mas ocorreram de diversas formas — ainda assim, em todos os casos, Aquele que enviou a tribulação também ordenou graciosamente um meio de escape. Davi não podia apontar nenhuma entrada do seu diário e dizer: “Eis aqui uma prova de que o Senhor vai me desamparar”, pois todo o teor da sua vida passada provava exatamente o contrário. Ele deveria pensar no que Deus tinha feito por ele; que Deus ainda seria seu defensor. Mas não é exatamente assim que nós duvidamos do auxílio de Deus? Não é uma desconfiança sem sentido? Será que temos a mínima razão para duvidar da bondade do nosso Pai? Sua misericórdia não tem sido maravilhosa? Alguma vez Ele já deixou de ser digno da nossa confiança? Ah, não mesmo! Nosso Deus jamais nos deixou. É certo que temos noites tenebrosas, mas a estrela de amor brilha mais forte em meio à escuridão; passamos por lutas difíceis, mas Ele mantém Seu escudo sobre a nossa cabeça para nos defender. Passamos por muitas provações, mas nunca para nosso prejuízo; sempre para o nosso bem; e a conclusão de tudo pelo que passamos é: Aquele que nos livrou de seis angústias, na sétima não nos abandonará (Jó 5.19). Aquilo que conhecemos do nosso Deus fiel prova que Ele nos guardará até o final. Portanto, que nunca sejamos contrários à evidência. Como podemos ser tão miseráveis a ponto de duvidar do nosso Deus? Senhor, lança no chão a Jezabel da nossa desconfiança, e que os cães a devorem!

Charles Spurgeon

Tradução e Revisão: Mariza Regina de Souza

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Uma Palavra aos Perseguidos


Sermão nº 1188
Ministrado na manhã do Dia do Senhor, em 16 de agosto de 1874 pelo
Rev. CHARLES H. SPURGEON
No Tabernáculo Metropolitano, em Newington, Londres

“se, por acaso, teu pai te responder asperamente?” — 1 Samuel 20.10
NÃO ERA IMPROVÁVEL que o pai de Jônatas respondesse a ele asperamente. Saul tinha muito ressentimento contra Davi, ao contrário de seu filho mais velho, Jônatas, que o amava como a própria alma. Jônatas nem imaginava que seu pai realmente quisesse prejudicar alguém tão admirável quanto Davi, por isso, disse a Davi o que pensava; mas Davi, preparado para o pior, fez-lhe esta pergunta: e “se, por acaso, teu pai te responder asperamente?” E foi exatamente isso o que aconteceu. Saul respondeu ao filho com palavras amargas e, no desespero da sua ira, até mesmo tentou feri-lo, atirando contra ele a sua lança. Contudo, Jônatas não abandonou Davi, mas se ligou a ele com tanta fidelidade que, até a sua morte, a qual foi muito lamentada por Davi, continuou sendo seu melhor e mais leal amigo. Ora, a pergunta que Davi fez a Jônatas é a mesma que desejo fazer a todos os crentes em Cristo nesta manhã, especialmente aos mais novos na fé, que há pouco tempo fazem parte da aliança com o grande Filho de Davi, os quais, no fervor do seu coração sentem que podem viver e morrer por Cristo. Pensem na hipótese de terem de enfrentar a oposição de seus melhores amigos ou até de seu pai, irmão ou tio, os quais poderiam lhes responder asperamente; ou, ainda, na hipótese de poderem sofrer perseguição de sua mãe, esposa ou irmã. E aí? O que farão em tais circunstâncias? Será que continuarão a seguir o Mestre mesmo diante de uma acusação infame? E, “se, por acaso, teu pai te responder asperamente”?
     Lembrem-se de que essas coisas realmente podem acontecer. Pouquíssimos cristãos estão numa situação em que todos os seus amigos os acompanham na sua peregrinação para o céu. Que progresso eles devem fazer na santa jornada! Que cristãos excelentes devem ser! São como plantas cultivadas em estufa — devem crescer e produzir os mais belos jardins da graça divina. No entanto, não há muitos nessa posição. A grande maioria enfrenta oposição dentro das suas próprias famílias ou daqueles com quem trabalham ou fazem negócios. E, não é provável que seja assim? Não foi assim desde o princípio? Não há inimizade entre a descendência da serpente e o descendente da mulher? Caim não matou seu próprio irmão porque o Senhor aceitou a oferta de Abel e não a sua? Na família de Abraão não houve um Ismael, nascido da carne, que perseguiu Isaque, nascido do Espírito? José não foi odiado por seus irmãos? Davi não foi perseguido por Saul, Daniel pelos príncipes persas e Jeremias pelos reis de Israel? Não foi sempre assim? O próprio Senhor Jesus Cristo não teve de enfrentar calúnias, crueldade e morte, e nos disse para não buscar favor naquilo em que Ele mesmo foi rejeitado? Ele disse claramente: “Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada” (Mt 10.34), e também que a consequência imediata da pregação do evangelho seria pai contra filho e filho contra pai; pois os inimigos de um homem seriam aqueles da sua própria casa (Lc 12.53). Ele não teve o cuidado de perguntar a cada recruta desejoso de se alistar no Seu exército: “Já pensou no quanto isso vai lhe custar”? Não é admirável a honestidade e o notável cuidado com que Ele lidou com as pessoas, fazendo-as se lembrar de que o preço de segui-lO era negarem a si mesmas, tomando dia a dia a sua cruz e se alegrando quando fossem odiadas de todos os homens por amor a Ele? Ele nos adverte a não esperar que o discípulo esteja acima do seu Senhor, pois se as pessoas chamam ao dono da casa de Belzebu, com certeza não irão conferir títulos melhores a seus empregados. E, tendo o Senhor nos prevenido, é bom estarmos prontos para as tribulações que Ele diz que teremos, perguntando a nós mesmos se estamos preparados para suportar a opressão por amor do Seu nome. Insisto na pergunta àqueles que estão pensando em fazer sua pública profissão de fé, pois é provável que logo sejam reconhecidos como cristãos, e é quando começam a construir sua casa que precisam calcular se serão capazes de terminá-la ou não.
 
     Hoje, temos aqui muitos servos de Deus cujas vidas estão amarguradas pelos contínuos tormentos causados por seus familiares e amigos ímpios. Muitas vezes, eles desejam ter asas como de pomba para poder voar e achar pouso. E é com minha mais profunda solidariedade que lhes falo nesta manhã sobre este texto: “e se, por acaso, teu pai te responder asperamente?”, não só com a intenção de dar subsídios aos mais jovens, mas também na esperança de animar e consolar aqueles que há tempos estão na fornalha de fogo.
     1. Nosso primeiro ponto é: O QUE VOCÊ PODE FAZER; o que é possível fazer se um de seus amigos lhe responder asperamente. Quando passa a crer em Cristo, você conta a seu pai sobre sua conversão; bem, e se ele disser que tudo isso é bobagem? Você chega para sua mãe e diz a ela que seu coração mudou; e se ela debochar de você? Você abre o coração para um amigo; e se ele se voltar contra você e lhe disser uma porção de coisas ofensivas? Vou lhe dizer o que provavelmente vai acontecer, embora eu sinceramente ore para que não aconteça. Você vai se desgastar emocionalmente. Quero dizer, vai acabar deixando Cristo por não conseguir suportar Sua cruz e, embora queira ir para o céu com Ele se a jornada for mais suave, pode ser que, como o Senhor Flexível (personagem do livro “O Peregrino” de John Bunyan), descubra que há um pântano no caminho e acabe dando as costas para o bom país, voltando à Cidade da Destruição. Muitos têm feito isso. A parábola de nosso Senhor sobre a semente lançada em solo rochoso nos ensina que muitos brotos que prometem boa colheita perecem quando surge o sol escaldante, pois não têm raiz. Isso é facilmente observável. Se aqueles que professam a religião do bem-estar forem recebidos todos os dias com muitos aplausos, é possível que, de certa forma, ainda continuem firmes; no entanto, na medida em que têm de enfrentar rejeição e insensibilidade inesperadas, eles deixam de lado a religião e se juntam aos modismos do mundo. Para isso, o pai terreno é mais querido que o Pai celeste; o irmão segundo a carne é mais querido que o Irmão nascido na adversidade, e o marido ímpio é mais precioso que o noivo eterno; e, por todas essas coisas, eles abandonam o Senhor.
     Ou, pode ser ainda que, em vez de se desgastar emocionalmente, você continue firme durante algum tempo, mas pouco a pouco vai entregando os pontos e acabe desistindo de tudo. Muitos de nós poderiam aguentar perder a cabeça de um só golpe por Cristo, mas ser cozido em fogo brando — ah, isso realmente nos provaria! E se o fogo brando durasse não apenas um ou dois dias, mas semanas, meses ou anos? E aí? Se, depois de sofrer pacientemente por muito tempo, as zombarias cruéis continuassem, as palavras duras e amargas não parassem — e então? Com certeza, a menos que a graça nos sustente, a carne irá gritar para se livrar desse jugo incômodo e procurar um atalho por onde possa escapar do rigor da estrada e voltar ao mundo. A graça continuará e resistirá até o fim, mas a nossa índole, na melhor das hipóteses, mesmo com as mais firmes resoluções, tentará apenas até certo ponto e depois desistirá. Provavelmente é isso o que faremos; mas que Deus nos preserve de agir de forma tão deplorável, pois, se desistirmos por causa da oposição dos nossos amigos ímpios, iremos incorrer em tremenda culpa. Desistir de ser cristão por causa de perseguição é amar a nós mesmos, não a Cristo; é ser egoísta a ponto de considerar a nossa própria vontade, não aquela honra, é procurar a nossa própria tranquilidade, não a glória do Senhor, ainda que digamos que O amamos acima de tudo por nos ter redimido pelo Seu sangue. Isso provará que nós não O amamos de forma alguma, e que somos ingratos, falsos e hipócritas. Mesmo que nossa profissão de fé seja verdadeira, se cedermos à perseguição, isso só mostrará que queremos algo em troca e, como o traidor Judas, também venderemos o nosso Mestre, não por trinta moedas de prata, mas para fugir do escárnio e da maldade.
     Ficará claro também que preferimos o louvor dos homens à aprovação de Deus. Valorizamos mais o sorriso de alguém que em breve morrerá do que o alto preço do amor de Deus ou a aprovação do Redentor. Pedro, por alguns instantes, se preocupou mais com a pergunta de uma criada tola do que com sua lealdade ao Senhor; mas como é terrível cair em tal condição deliberadamente e levar mais em consideração um mortal, e o filho do homem que logo será apenas um verme, do que o Senhor, nosso Criador e Juiz, o único que deve ser temido! Não será isso loucura, traição e terrível iniquidade?
      Deixar o Senhor por causa de perseguição é estabelecer um tempo antes da eternidade, é trocar o céu pelos prazeres deste mundo, renunciar à vida eterna por alguns momentos de tranquilidade e causar em nós mesmos um sofrimento infinito por não poder suportar alguma brincadeira estúpida ou ser motivo de chacota. Esta é a verdade. O homem tem a vida e morte diante de si; a vida oculta pela cruz e a morte disfarçada de alegrias transitórias; e ele prefere a morte eterna com sua luz brilhante à vida eterna com suas provações momentâneas. Queira Deus que nunca façamos tal loucura, pois senão seremos contados com os “tímidos” de Apocalipse, que podem ser interpretados como os covardes que se juntam “aos incrédulos, aos abomináveis, aos assassinos, aos impuros, aos feiticeiros, aos idólatras e a todos os mentirosos” — pois esta é a classe de pessoas com quem eles se associam — aos quais “a parte que lhes cabe será no lago que arde com fogo e enxofre, a saber, a segunda morte” (Ap 21.8), da qual possa a infinita misericórdia de Deus nos livrar. Que possamos, como verdadeiros soldados, vestir nossa couraça e decidir que, seja qual for o furor da batalha, por meio da graça divina, não abandonaremos nosso posto. A própria morte é preferível à desgraça de abandonar uma causa tão verdadeira, uma doutrina tão pura, um Salvador tão gracioso, um Príncipe tão nobre e tão digno do nosso serviço mais leal.
     No entanto, se deixarmos a luta por nossa conta, poderemos incorrer num erro tão crasso quanto a apostasia. Quando pai, mãe ou esposa nos respondem com aspereza, podemos fazer um lastimável acordo entre Cristo e o mundo. Rogo que não façam isso de forma alguma. Mesmo se parecer sensato e correto. “Será que posso agradar a Deus e aos homens? Será que posso andar com Cristo e com o mundo”? Ah, minh’alma, se fizer isso você vai fracassar; além do mais, vai escolher a pior estrada de todas, pois se alguém serve a Deus, e O serve de fato, vai encontrar muitas consolações para amenizar suas tribulações; e se alguém serve realmente a Satanás, vai desfrutar de algum bem-estar qualquer produzido pelo pecado; no entanto, se ficar entre os dois mundos, vai sentir o tormento de ambos e nenhum prazer de qualquer um dos dois. Tentar ser amigo de Cristo e de Satanás ao mesmo tempo é pior do que passar por um corredor polonês no convés de um navio (castigo em que uma pessoa é obrigada a passar entre duas fileiras de homens munidos de açoites). Creio que uma mulher professa, que se entrega antes do casamento ao marido ímpio, quando deveria resistir, sofre amargura pelo resto da vida; e que um marido, filho, homem de negócio, que não toma uma decisão firme em questões de menor importância, para não ter dor de cabeça, a partir daquele momento cai em descrédito, pois depois de ter cedido um pouco, o mundo exige cada vez mais, e sua liberdade chega ao fim. Quando você abre mão de um único ponto da sua integridade ou do seu cristianismo, o não convertido deixa de acreditar em você como acreditava antes, quando você era firme em suas resoluções; as pessoas respeitam um cristão de verdade, mas ninguém gosta de uma pessoa de duas caras. Seja uma coisa ou outra, ou quente ou frio, senão Cristo vai rejeitá-lo, e o mundo também. Se uma coisa é certa, faça-a; se resolver servir ao Senhor, sirva-O, seja isso ofensivo aos outros ou não. Por outro lado, se preferir servir a Satanás, pelo menos seja honesto o suficiente para não fingir que está do lado do Senhor. Lembre-se do desafio de Elias: “Se Deus é Deus, servi-O; se Baal é deus, servi-o”, mas não tente um acordo, pois isso o levará a um tremendo fracasso. O imperador Marco Antonio andou pelas ruas de Roma com dois leões atrelados, mas nenhum Marco Antonio poderá levar o leão da tribo de Judá e o leão da cova juntos na mesma correia. Eles nunca se entenderão. Cuidado, pois, para não caírem na infâmia do comprometimento, pois isso nada mais é do que rebelião contra Deus, é debochar das Suas afirmações e insultar o Seu julgamento. Que a graça de Deus nos guarde, pois se formos deixados por nossa conta, vamos cair na armadilha.
     Vou lhes dizer o que podem fazer também, e oro para que o Espírito Santo os conduza a isso. Vocês podem, com humildade, mas com firmeza, assumir esta posição: — Se meu pai me responder asperamente, não importa, pois tenho outro Pai que está no céu e é a Ele que vou recorrer. Se o mundo me condenar, vou aceitar sua condenação como confirmação de que o grande Juiz de todas as coisas graciosamente me absolveu, pois me lembro do que está escrito: “Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro do que a vós outros, me odiou a mim” e “Se vós fôsseis do mundo, o mundo amaria o que era seu; como, todavia, não sois do mundo, pelo contrário, dele vos escolhi, por isso, o mundo vos odeia” (João 15.18-19). Que saibamos suportar a adversidade como bons soldados de Jesus Cristo. Que consideremos o opróbrio de Cristo mais rico do que todos os tesouros da terra. Que nunca um rubor de covardia manche o nosso rosto por termos vergonha de Jesus; longe de nós que, ao invés de nos dispormos a ser objeto de escárnio por alguns momentos, pensemos em deixar nosso Amado Senhor. Que nunca sejamos falsos ou medrosos; e, com calma e firmeza, com a confiança de um amor que jamais vacila, sejamos fiéis ao Senhor, ainda que todos O abandonem:
Oh, aprenda a desprezar o louvor dos homens
Oh, aprenda a continuar com Cristo
Pois, pela humilhação, Jesus venceu o mundo
E te chama a trilhar o Seu caminho.
     2. O segundo ponto é: O QUE A TRIBULAÇÃO FARÁ POR NÓS SE TIVERMOS AUXÍLIO PARA SUPORTÁ-LA. “E se, por acaso, teu pai te responder asperamente”? Em primeiro lugar, ela nos afligirá. Opor-se, por fazer a coisa certa, àqueles que deveriam nos ajudar, não é nada agradável. É muito doloroso para a nossa natureza ser contra aqueles a quem amamos. Além disso, aqueles que não gostam de cristãos têm um jeito de nos insultar que nos faz estremecer. Eles observam nossos pontos fracos e, com muita habilidade, tiram proveito deles; treinados pelo velho mestre da maldade, eles não demoram a usar o açoite onde somos mais vulneráveis. Se uma coisa é mais provocante do que outra, com certeza é isso o que irão dizer, e irão dizer quando estivermos mais sensíveis. Talvez sejam até muito educados e, neste caso, nossos gentis perseguidores têm um jeito muito sutil de cortar até o osso e ainda continuar sorrindo. Eles podem dizer uma maldade com tanta delicadeza que talvez você nem se dê conta ou fique ressentido. A arte da perseguição tem sido estudada há tanto tempo pelos descendentes da serpente que eles se tornaram especialistas nela e sabem exatamente como fazer o ferro penetrar na alma. Portanto, não se surpreenda se você for dolorosamente atormentado; nem se espante, como se alguma coisa estranha tivesse acontecido. O sofrimento dos mártires não foi fingido; as torturas que eles sofreram não foram um mar de rosas; nem suas celas de prisão foram confortáveis. Suas dores foram excruciantes; seu martírio foi um verdadeiro tormento. Se sua tristeza for fingida, você pode esperar falsas alegrias. Que a realidade da sua tribulação lhe assegure a realidade da glória do porvir.
     A oposição de seus amigos provará sua sinceridade. Se você é hipócrita, a oposição logo o fará desistir. “O risco não vale a pena”, diz você, e em breve estará fora e, pelo bem da igreja, talvez isso seja uma bênção, pois é melhor para o trigo se ver livre da palha; e se o vento da perseguição soprá-lo para longe é porque você é palha. As respostas ásperas de seus adversários provarão sua fé. Você diz que crê em Jesus: ora, veremos se realmente crê, pois se não pode suportar as pequenas tribulações vindas de homens e mulheres, com certeza não será capaz de suportar as horríveis tribulações que vêm do diabo e seus anjos. “Se te fatigas correndo com homens que vão a pé, como poderás competir com os que vão a cavalo? Se em terra de paz não te sentes seguro, que farás na floresta do Jordão?” (Jeremias 12:5). Se você não consegue suportar as provações da vida, como enfrentará o suplício da morte?
     A perseguição provará seu amor por Jesus. Se você realmente O ama, sofrerá alegremente com Ele no pelourinho da rejeição e, quando os inimigos lançarem suas injúrias, você dirá: “Lancem sobre mim, não sobre Ele: se há algo ruim a ser dito, digam contra mim, não contra meu Senhor”.
Se por Seu doce Nome
Vergonha e rejeição eu passar
Aclamarei tanto uma quanto a outra
Pois de mim Ele irá Se lembrar
A perseguição provará o seu amor, e também todas as suas virtudes, uma por vez; e isso será bom para você. Suas virtudes não serão fortalecidas a menos que você as coloque em ação; e se não forem provadas, quem saberá de que são feitas? O valente soldado, na quietude do quartel, sem dúvida poderia lutar; mas como saber se ele não tomar parte na campanha? Aquele que carrega a boca do canhão tem sua testa ferida por um soldado ornado com um sabre, e carrega muitos outros ferimentos adquiridos a serviço do seu rei; sem dúvida, ele é um bravo guerreiro. O ouro de boa qualidade deve ser depurado pelo fogo e as oposições são enviadas para que a nossa fé, o nosso amor e todas as nossas virtudes se mostrem genuínas ao passar pelo teste.
     As respostas ásperas daqueles que deveriam ser nossos amigos nos manterão vigilantes. Se não me engano, era Erskine que costumava dizer: “Senhor, livra-me do demônio do sono”, e essa é realmente uma oração digna de ser feita. Quando tudo vai bem e ninguém zomba de nós, ficamos tentados a baixar a guarda; no entanto, quando somos afligidos por críticas e insultos não merecidos, e quando, em troca do nosso amor recebemos apenas provocação e grosseria, é bem provável que percamos o sono. Essas aflições nos levam a dobrar nossos joelhos. Talvez vocês já tenham lido a história do Senhor Eraser, um dos pastores do Condado de Ross-shire (Escócia), o qual tinha uma esposa fria e insensível; ela era muito cruel e nunca permitia que ele tivesse uma luz ou chama no quarto para poder estudar, de forma que, de tanto tocar o reboco enquanto andava de lá para cá no escuro, ele acabou fazendo dois buracos na parede. Num encontro de ministros pouco sensíveis às coisas de Deus, um deles resolveu fazer uma brincadeira, propondo um brinde com o qual achava que ele não iria concordar: “à saúde de suas esposas”. Para espanto de todos, ele respondeu: “Minha esposa tem sido para mim muito melhor do que a maioria das esposas de vocês, pois ela me faz dobrar os joelhos sete vezes por dia, o que, de outra forma, eu não faria; e isso é muito mais do que qualquer um de vocês pode dizer a respeito de sua própria esposa”. Pessoalmente, preferiria não ter uma ferida purulenta como essa, mas se o bom Médico me tivesse designado uma coisa tão dura, sem dúvida, é porque tinha uma boa razão para isso. É daquilo que as pessoas chamam de erva daninha que os sábios extraem os remédios, e é das provações amargas que o Senhor produz o tônico sagrado que nos fortalece para uma vida mais sublime de comunhão Consigo mesmo.
     As tribulações provenientes dos inimigos de Jesus confirmam a nossa fé. Quem nunca foi provado geralmente possui uma fé fraca e vacilante; no entanto, a provação, e em especial a perseguição, é como um vento forte de março que passa uivando pela floresta e, embora num primeiro momento quase arranque pela raiz os carvalhos mais novos, afofa a terra para eles, e eles aprofundam suas raízes até ficarem tão firmes que podem resistir a um furacão. A mesma coisa que, a princípio, os faz balançar, mais tarde os fortalece. O crente provado é um crente firme e destemido; portanto, aceite alegremente a resposta áspera e busque nela bons resultados. Uma pequena perseguição à igreja na Inglaterra seria muito benéfica para ela. Estamos numa época muito tranquila, onde é raro encontrar zelo pelas coisas de Deus e quase ninguém defende a verdade. A igreja tem feito acordos com o mundo e vai dormir com Satanás embalando o berço. Muitos que professam ser cristãos nada mais são do que pessoas do mundo batizadas; e muitos que se preparam para o ministério de Cristo são meros leitores de sermões de outras pessoas, mercenários que não se importam com as ovelhas. Se o vento da perseguição limpasse a eira da igreja, faria muito bem a ela. 
     Palavras ásperas também fazem bem para os verdadeiros cristãos; elas os levarão a suplicar por aqueles que as dizem. Lembro-me do que um bom homem sempre dizia a respeito de um sujeito blasfemo que gostava de atormentá-lo com suas horríveis provocações e maldições: “Bom, eu bem que poderia me esquecer de orar por ele, mas ele vive me lembrando disso, pois toda vez que nos encontramos ele me roga uma praga”. Se nossos amigos só falassem coisas agradáveis e não deixassem transparecer sua inimizade por Cristo, poderíamos ter uma falsa esperança e deixar de orar por eles; todavia, quando sua velha natureza está presente, e totalmente desenfreada, somos levados a interceder por eles; e quem pode dizer que o Senhor não nos dará sua alma como recompensa?
     Com certeza, a oposição tem ainda outro efeito benéfico: ela conduz aqueles que se submetem a ela por um caminho totalmente separado. Eles são conhecidos por serem cristãos e são proclamados como tais por seus ofensores. Não creio que seja ruim para você, jovem, quando for ao armazém, alguém dizer: “Ei, aí vem um daqueles metodistas”. É bom para você ser conhecido. Se você é quem deveria ser, não se importará de ser rotulado ou provado. Isso o ajudará a andar na linha quando surgirem as tentações; e com frequência o livrará de muitos problemas. Suponha que seus amigos não queiram mais sua amizade porque você é cristão; será que isso não é bom? Quem o deixar por causa disso será uma perda benéfica. Uma senhora da sociedade, que agora está com Cristo, quando veio para esta igreja, me contou que, após seu batismo muitos de seus amigos aristocratas deixaram de falar com ela ou de convidá-la para ir às suas casas. Dei-lhe os parabéns, pois isso a ajudou a selecionar seus amigos. Seu caráter verdadeiro e sua bondade de espírito logo reconquistaram quem era digno da sua amizade, e os demais foram alegremente descartados. Da mesma maneira que as pessoas se afastam por você seguir o Senhor, você também pode se afastar delas. Não ganhamos nada pelo amor de quem não ama a Deus.
     Um efeito benéfico da perseguição dentro de casa é que você será mais humano lá fora. Se, meu amigo cristão, quem está dentro da sua casa o deixa infeliz, você será um sábio se conseguir ser mais paciente com quem é de fora. As pessoas se perguntavam por que Sócrates era tão paciente com seus alunos e tão bem humorado, mas ele atribuía isso ao fato de ter sido fortalecido pela oposição de outras pessoas e por ter sido treinado em casa por sua rabugenta esposa Xantipa. Talvez você tenha mais paciência com quem zomba de você e mais simpatia por quem é alvo de zombaria ao compartilhar algo em comum com uma porção de crentes. Assim, eis o enigma de Sansão: “Do comedor saiu comida, e do forte saiu doçura” (Jz 14.14). O leão está rugindo para você, mas haverá um dia em que você encontrará doçura nele e bendirá o nome do Senhor.
     3. Meu terceiro ponto é: COMO DEVEMOS NOS COMPORTAR QUANDO ESTAMOS PASSANDO PELA PROVAÇÃO? Que o Espírito Santo o capacite a agir tão discreta quanto decididamente. Nunca provoque contrariedade. Que Deus nos proíba de agir assim. Alguns fanáticos parecem ser mestres em usar a religião para criticar e condenar outras pessoas. O cálice que apresentamos ao mundo pecaminoso é, em si mesmo, repulsivo o suficiente para o ser humano caído; não pode haver sabedoria em torná-lo pior, apresentando-o de cara feia. Quando damos remédio a uma criança, em geral, oferecemos a ela também um pedaço de doce. O mesmo deve acontecer com a apresentação do evangelho: que a gentileza, o carinho e a bondade tornem mais doce aquilo que o mundo, provavelmente, não receberá, mas que ficará menos ressentido se você apresentá-lo com amor, demonstrando o desejo de viver em paz com as pessoas, levando em conta o bem dos outros ao invés do seu.
     E, depois, enfrente o que tiver de enfrentar com a maior mansidão possível. Havia um agricultor cuja esposa ficava muito irritada por ele frequentar os cultos de uma religião dissidente do catolicismo romano e unir-se aos crentes em Cristo. Com frequência, ela lhe dizia que não ia aguentar aquilo por muito tempo, mas ele era muito paciente e não lhe respondia com grosseria. Um dia, ela foi ao campo e o chamou, colocando-o contra a parede: “Ou você deixa aquelas pessoas ou me deixa”; e, mostrando uma trouxa de pano, disse: “Agora você pega a sua metade que eu pego a minha, pois estou indo embora”. Ele respondeu: “Não querida, pode ficar com tudo. Você sempre foi uma boa esposa, leve tudo”. Então, ela propôs pegar uma parte dos bens como acordo para uma separação final, e novamente ele disse: “Leve tudo. Se for embora, leve tudo o que quiser, pois não quero que sinta falta de alguma coisa; e volte quando desejar, sempre ficarei feliz em vê-la”. Vendo a maneira como ele falava, ela disse: “Isso quer dizer que você quer que eu vá embora”? “Não”, disse ele, “essa é a sua vontade, não a minha. Não posso abandonar minha fé, mas qualquer coisa que possa fazer para você ficar e ser feliz, eu farei”. Isso foi demais para ela, que decidiu parar de se opor a ele; pouco tempo depois, ela começou a ir aos cultos com o marido e tornou-se crente. Este é o caminho mais certo para a vitória. Ceda em tudo, menos naquilo que é errado. Nunca deixe sua raiva crescer. Mantenha-se calmo e deixe o ataque ser unilateral. Havia uma senhora crente, a qual costumava frequentar os cultos do Sr. Robinson, de Leicester. Um dia, seu marido, um minerador de carvão muito rude, disse a ela num acesso de raiva: “Se você for àquela igreja de novo, arranco suas pernas”. Ele era um homem terrível, e igualmente violento, mas, mesmo assim, no culto seguinte, ela foi como de costume. Ao voltar para casa, ela se colocou nas mãos de Deus, esperando ser atacada. Seu marido lhe perguntou: “Onde esteve?”, e ela respondeu: “Fui à igreja”. Com um tremendo soco no rosto, ele a derrubou no chão. Levantando-se, ela lhe disse com delicadeza: “Se você me bater na outra face, vou perdoá-lo, do mesmo modo como o perdoo agora”. Antes de se converter, ela era uma mulher muito impetuosa e devolvia ao marido na mesma moeda, por isso ele ficou espantado com sua docilidade e lhe disse: “Onde aprendeu a ser tão paciente?”. Ela respondeu: “Pela graça de Deus, aprendi naquela igreja”. “Então vá quantas vezes quiser”, disse ele. Pouco tempo depois, ele também começou a ir, e a guerra acabou. Não há nada como a mansidão. Ela conquista até os mais brutos.
     Depois de suportar com mansidão, retribua o mal com o bem. Retribua palavras cruéis com gestos de amor e bondade. A melhor arma para os cristãos lutarem contra seus adversários é retribuir o mal com o bem. Mal por mal é barbarismo, e nenhum cristão pode se satisfazer com isso; mas o bem pelo mal é cristianismo, e devemos praticá-lo. Creio que já contei a história do marido que era muito libertino, lascivo e depravado, um sujeito mundano, mas que há muitos anos era casado com uma mulher que suportava suas zombarias e grosserias, orando por ele dia e noite sem ver nenhuma mudança, exceto a de que cada vez mais ele se afundava em pecado. Certa noite, estando numa festa com seus companheiros de bebedeira, ele começou a se gabar de que sua esposa faria qualquer coisa que ele quisesse, e que ela era dócil como um cordeirinho. “Bem”, disse ele, “ela já deve estar na cama há horas, mas se eu levar todos vocês para casa agora, ela vai se levantar e servi-los sem reclamar”. “Não é possível”, disseram, e acabaram fazendo uma aposta e indo até lá. Já era muito tarde, mas em poucos minutos ela se arrumou e disse que tinha dois frangos prontos e que, se eles esperassem um pouco, ficaria satisfeita em lhes servir a ceia. Eles esperaram e, não muito tempo depois, àquela hora da noite, a mesa estava posta; e ela assumiu seu lugar como se fosse a coisa mais natural do mundo, agindo alegremente como sua anfitriã. Um dos homens, sensibilizado pela sua atitude, disse: “Senhora, precisamos nos desculpar por invadir sua casa a essa hora da noite, mas gostaria muito de entender porque nos recebeu com tanta alegria, apesar de não aprovar nossa conduta, por ser uma pessoa religiosa”. Ela respondeu: “Antes, eu e meu marido não éramos convertidos mas, pela graça de Deus, hoje sou crente em Jesus Cristo. Todos os dias oro pelo meu marido e faço tudo o que posso para que ele mude, mas como não vejo mudança alguma, tenho medo de que ele esteja perdido para sempre; por isso, tento fazê-lo o mais feliz possível aqui”. Eles foram embora e o marido lhe disse: “Você realmente acha que vou ser infeliz para sempre?” “Creio que sim”, disse ela, “quisera Deus que você se arrependesse e pedisse perdão”. Naquela noite, a paciência alcançou seu desejo. Logo ele estava a caminho do céu junto com ela. Não ceda nos pontos principais, mas, em todas as outras coisas, esteja disposto a suportar críticas, desprezo e zombaria por amor a Cristo. In hoc signo vinces (“com este sinal vencerás”) — pela cruz, suportada com paciência, vencerás. “Mas isso é muito difícil”, diz alguém. Eu sei, mas a graça pode tornar leve até o fardo mais pesado, e transformar o dever em deleite.
     Aqui, precisamos observar também que os cristãos perseguidos, além dessa doce persistência, precisam ter uma vida muito íntegra. Precisamos ser irrepreensíveis quando temos olhos de lince sobre nós, pois se nos encontrarem fazendo alguma bobagem, eles vão nos atacar na mesma hora. Se houver uma só coisinha errada, algo que eles nem notariam em outra pessoa, eles farão um alvoroço e um tremendo estardalhaço por causa disso. “Ah, então essa é a sua religião!”, dizem, como se tivéssemos a pretensão de ser absolutamente perfeitos. Portanto, fiquem atentos, andem com sobriedade e não se coloquem em suas mãos; que eles nada tenham a dizer contra você, a não ser sobre a sua fé. Nada incomoda mais os oponentes do que integridade, fidelidade e santidade: eles querem falar contra você, mas não encontram uma oportunidade adequada. Procure orar diariamente, pedindo graça para controlar seu temperamento, pois se você falhar nesse ponto, eles irão se gabar de tê-lo vencido e sempre voltarão ao ataque. Peça graça para ser paciente, e fale o menos possível, exceto sobre Deus. Ore por eles, pois a oração é ouvida; pois como sabes, ó mulher crente, que não salvarás teu marido incrédulo? Apenas vigie e ore, e a bênção virá.
     4. FAZENDO TUDO ISSO, QUE TIPO DE CONSOLO VOCÊ PODE ESPERAR? Uma coisa que pode consolá-lo é que o perseguidor está nas mãos de Deus. Ele não pode fazer nada além do que Deus permite e, se Deus permite que ele o atormente, você deve suportar com alegria. A seguir, lembre-se: se você mantém sua consciência limpa, isso é motivo de alegria. A consciência é um passarinho que tem o canto mais doce do que qualquer cotovia ou rouxinol. Respostas ásperas de fora não devem atormentá-lo enquanto, por dentro, você tiver a resposta de uma boa consciência diante de Deus. Prejudique sua consciência e perca o consolo; preserve-a do mal e você será feliz. Lembre-se de que, sofrendo pacientemente e perseverando, você terá a companhia dos espíritos mais nobres que já viveram. Você não pode ser mártir e usar a coroa de sangue em nossos dias, mas, pelo menos, pode sofrer até o ponto em que foi chamado a sofrer: a graça o capacitará e você terá parte na glória dos mártires. “Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus; pois assim perseguiram aos profetas que viveram antes de vós” (Mateus 5.12).
     Lembre-se também que, se tiver problemas muito difíceis, sem dúvida, Jesus estará com você. Este é o maior consolo de todos, pois em todas as nossas angústias Ele foi angustiado. Você descobrirá que Sua presença nas ordenanças pode ser um deleite. As águas roubadas que Ele lhe dá em íntima comunhão são as melhores, e como são doces os bocados obtidos às ocultas! Os antigos covenanters[1] diziam que nunca adoraram a Deus com tanta alegria como quando estavam entre vales e montes sendo perseguidos pelos dragões de Claverhouse[2]. Viver é revigorante para os cervos perseguidos do Senhor. Seu peito é terno e seguro para aqueles que são rejeitados pelos homens por Sua causa. Ele tem um jeito maravilhoso de desvelar Sua face para aqueles cujas faces estão cobertas de vergonha devido ao seu amor por Ele. Ah, tenha prazer, caro amigo, em vigiar com o Senhor.
     Pense também que você faz mais bem onde está do que se estivesse entre outros crentes. Lá longe está a luz do farol dos rochedos de Eddystone (costa da Inglaterra), bem no meio do oceano; observe como a tempestade ruge à sua volta e como as águas tentam encobri-la, ameaçando apagar sua chama. Será que ela se queixa? Estando onde está, batida pelas ondas do Atlântico e enfrentando a fúria da tormenta, ela faz mais bem do que se estivesse no Hyde Park (centro de Londres, Inglaterra) para ser vista pelas damas e cavalheiros. O crente perseguido ocupa um lugar onde adverte e ilumina e, por isso, sofre. Ele é como um guarda avançado, cujo posto perigoso é o lugar de honra: que ele peça apenas força para aguentar e não desistir, e receberá a glória no final. Lembre-se de que, quanto pior a estrada melhor o descanso, e quanto maior o sofrimento mais reluzente será a coroa no final. Aqueles que suportam mais, por amor a Jesus, serão aqueles a quem Ele dirá com maior doçura: “Muito bem, servo bom e fiel; foste fiel no pouco, sobre o muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor” (Mt 25.21).
     Ah, irmãos, se sua linguagem é rude para ser paciente, o que é isso em comparação ao que muitos aflitos do Senhor têm de enfrentar? Para defender este ponto, vou lhes contar um pequeno incidente, depois terminamos. Ontem, o carteiro me trouxe, entre outras correspondências, uma carta da Austrália, a qual prezo mais do que qualquer outra que já tenha tido em mãos; ela tocou meu coração e, quando vocês ouvirem o que está escrito, saberão por quê. Ela foi escrita a pedido de um homem, o qual foi descrito pelo cavalheiro que a escreveu para ele nos seguintes termos: “Conheço a pessoa para quem escrevo há quase oito anos, durante os quais ele tem estado totalmente indefeso, está paralítico, teve uma das pernas amputada, a visão se foi e ele não consegue mover nem as mãos nem os pés; do jeito que o colocam na cama, ele permanece, e ainda tem de aguentar a chateação das moscas ou de qualquer outra coisa que o incomode. Assim, tenho certeza de que o senhor gostará de saber que tem sido um instrumento de consolo para ele, pelo que ele tem se alegrado muito; e poucos são mais aptos do que o senhor para ensinar e exortar aqueles que veem vê-lo, explicando-lhes as pequenas porções da Palavra de Deus que são lidas”. Ora, esse pobre homem, deficiente há 16 longos anos, desde 1858, me escreve assim: “Sendo movido pelo Espírito Santo, envio-lhe estas poucas linhas para agradecer o bem que tenho recebido pela leitura de seus sermões. No ano de 1850 eu cheguei ao conhecimento da verdade e encontrei paz no Senhor Jesus. Em 1858, sofri um grave acidente, de forma que não consigo mais obter meu sustento, confiando apenas no Senhor que tem me conduzido pelo caminho certo. Em 1866, aprouve a Ele me confinar totalmente em minha cama. Bendigo o Seu Santo Nome por poder dizer que estou atado pelos laços do Seu amor, pois Ele tem me sustentado e consolado durante todo o meu confinamento, e tem permitido que eu me alegre na esperança da Sua glória; e que privilégio tem sido nos últimos anos ler seus excelentes sermões, os quais são fonte de grande consolo e deleite à minha alma, fazendo-me subir às alturas e gozar de doce comunhão. Por isso, sou constrangido pelo amor a lhe enviar este reconhecimento, esperando que com isso o senhor possa se alegrar um pouco em suas horas de labor; e, se nosso Pai celestial achar adequado, este meu testemunho à Sua fidelidade talvez possa ser abençoado por Ele para o conforto e encorajamento de alguns aflitos do seu rebanho, pois sei que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus”. Quanta consideração desse abnegado sofredor em escrever uma carta me consolar. Até poderíamos pensar que ele precisava consolar a si mesmo, mas o Senhor o tem alegrado tanto que, em vez procurar consolo, ele sequer menciona em sua carta a perda da perna, sua paralisia ou a perda da visão. A única coisa que ele me conta é sobre sua alegria e paz. Ora, se os filhos de Deus em tais condições extremas ainda podem dar testemunho da Sua fidelidade, será que você vai fugir por causa da zombaria de alguns tolos? Será que vai abandonar covardemente seus padrões por causa de alguns loucos que lhe apontam o dedo acusador? Se é assim, será que você é feito da mesma essência dos crentes de verdade? Você tem certeza da graça divina da mesma forma que eles têm? Com certeza, não. Que o Senhor, na Sua infinita misericórdia, lhe dê uma conversão tão palpável que, seja qual for sua tribulação, você possa cantar: “todavia, eu me alegro no SENHOR, exulto no Deus da minha salvação” (Habacuque 3.18).
     Se hoje me dirijo àqueles que, de alguma forma, têm perseguido os santos de Deus, permitam que eu lhes diga uma coisa: “Pensem no que estão fazendo; há muitas coisas que um homem pode suportar, mas se vocês se metem com seus filhos, isso mexe com ele, pois este é o ponto fraco de todos os pais”. Nada provoca mais o Senhor do que mexer com Seus filhos. Pensem no que estão fazendo. E, rogo ao Senhor que, se vocês têm feito isso por ignorância, achando realmente que eles estão errados, e zombam deles porque os consideram hipócritas, que o Senhor lhes fale do céu como fez com Saulo, dizendo: “Por que me persegues?”, para que vejam que, na realidade, vocês estão ferindo o próprio Senhor Jesus. Que Ele os faça ver que as lágrimas arrancadas àquela senhora fiel e as noites insones causadas àquele homem sincero são um mal muito maior para Cristo, pois, no final, Ele ajustará as contas com vocês. Venham para o Senhor Jesus, e que o Espírito Santo os faça se arrepender da sua maldade, pois Jesus está disposto a recebê-los e abençoá-los, como fez com o apóstolo Paulo. Creiam no Senhor Jesus e também serão salvos. Que Deus abençoe a todos, por amor de Cristo. Amém.

Tradução e Revisão: Mariza Regina de Souza




[1] Covenanters: Os membros da Igreja da Escócia que assinaram o Pacto (Covenant) Nacional Escocês de 1638, que os obrigava a manter a Igreja da Escócia como foi organizada durante a Reforma, isto é, presbiteriana. Eles participaram em combate armado em obediência ao pacto assinado.


[2] John Graham de Claverhouse, I Visconde de Dundee (Escócia)