sexta-feira, 11 de julho de 2014

Em Memória de Mim



Sermão nº 2
Rev. Charles Haddon Spurgeon
Pregado na noite do domingo de 7 de janeiro de 1855
na Capela da New Park Street, Southwark

“Fazei isto em memória de mim” — 1 Coríntios 11:24
PARECE, então, que os cristãos podem se esquecer de Cristo. O texto implica na possibilidade de esquecimento por parte daquele cuja gratidão e afeição deveria constrangê-lo a se lembrar. Não haveria necessidade dessa amorosa exortação se não houvesse a temível suposição de que a nossa memória pode ser traiçoeira, e a nossa lembrança, intrinsecamente superficial ou naturalmente inconstante. Tal suposição também não é infundada: é, infelizmente, bem confirmada pela nossa experiência, não como uma possibilidade, mas como um fato lamentável. À primeira vista, parece um crime demasiado vulgar para estar à porta dos convertidos. Parece quase impossível que alguém já redimido pelo sangue do Cordeiro morto se esqueça do seu Libertador; que alguém, amado com o infindável amor do Filho eterno de Deus, se esqueça desse Filho; no entanto, se isso soa alarmante para os ouvidos, infelizmente, é claro demais para os olhos para negarmos o fato. Esquecer-se de quem nunca Se esquece de nós! Esquecer-se de quem derramou o Seu sangue pelos nossos pecados! Esquecer-se de quem nos amou até a morte! Será possível? Sim, não só é possível, como também nossa consciência confessa ser esta uma terrível falha de todos nós, a de nos lembrarmos de qualquer coisa, exceto de Cristo. Aquele a quem deveríamos fazer soberano do nosso coração é exatamente de quem mais nos esquecemos. Onde se poderia pensar que a memória fosse permanecer e o esquecimento seria um intruso desconhecido, esse é o local profanado pelos nossos pés e o lugar onde a memória raramente se detém. Apelo para a consciência de cada cristão aqui presente: Você pode negar a verdade daquilo que eu disse? Você tem se esquecido de Jesus? Alguém rouba o seu coração e você deixa de lado Aquele em quem deveria colocar o seu amor. As coisas do mundo desviam sua atenção, quando seus olhos deveriam estar cravados na cruz. E são as voltas e reviravoltas deste mundo mundano; os constantes ruídos desta terra materialista, que afastam a sua alma de Cristo. Ah, meus amigos, não é uma triste realidade que nos recordemos de qualquer coisa, menos de Cristo, e não nos esquecemos de nada com tanta facilidade como dAquele de quem deveríamos nos lembrar? Enquanto a memória preserva a erva daninha, faz fenecer a Rosa de Sarom.
A causa do esquecimento é muito clara e repousa em um ou dois fatos. Nós nos esquecemos de Cristo porque a corrupção e a morte ainda permanecem em nós, mesmo sendo realmente regenerados. Nós nos esquecemos Dele porque carregamos conosco a morte e o pecado do velho Adão. Se fôssemos simplesmente criaturas nascidas de novo, jamais nos esqueceríamos dAquele a quem amamos. Se fôssemos seres totalmente regenerados, nos sentaríamos e meditaríamos em tudo o que o Salvador fez e sofreu; em tudo o que Ele é; em tudo o que Ele gloriosamente prometeu realizar; e nossos sentimentos errantes jamais se desviariam; se estivéssemos centrados, focados e eternamente fixados num único propósito, pensaríamos sempre na morte e nos sofrimentos de nosso Senhor. Mas, ai de nós! Temos um verme no coração, um lugar cheio de pestilência, um sepulcro de concupiscências, ideias terríveis e tremendas paixões maléficas, que, como fontes de água venenosa, jorram continuamente torrentes de impureza. Tenho um coração, Deus o sabe, que gostaria de poder arrancar do meu peito e lançar no infinito; uma alma como um viveiro de aves imundas, um covil de criaturas repugnantes, onde dragões se escondem e corujas se reúnem; onde habitam terríveis criaturas de mau agouro; um coração vil demais para ter paralelo — “Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto” (Jr. 17:9). Esta é a razão pela qual me esqueço de Cristo. Mas ela não é a única; acho que há algo mais em algum outro lugar. Nós nos esquecemos de Cristo porque há muitas coisas ao nosso redor para atrair nossa atenção. “Mas”, você dirá, “elas não fazem nada, pois, embora haja muitas coisas ao nosso redor, nada se compara a Jesus Cristo: apesar de muitas coisas estarem perigosamente perto do nosso coração, o que são elas comparadas a Cristo?” Contudo, meus amigos, sabiam que quanto mais perto um objeto maior o seu poder de atração? O sol é muito, muito maior que a lua, no entanto, a lua tem muito mais influência sobre as marés do oceano do que ele, simplesmente por estar mais perto e ter maior poder de atração. Por isso, vejo como um vermezinho terreno tem muito mais efeito sobre a minha alma do que o glorioso Cristo no céu; um punhado de ouro, um pouco de fama, um elogio, um negócio bem-sucedido, minha casa, meu lar, me afetarão muito mais que todas as glórias do mundo lá de cima; sim, mais que a própria visão bendita: simplesmente porque a terra está perto e o céu está longe. Como será feliz o dia quando eu subir nas asas dos anjos para morar para sempre junto do meu Senhor, para me aquecer nos raios de sol do Seu sorriso e me perder no inefável resplendor do Seu semblante. Vemos, então, a causa do esquecimento: que ela nos faça corar de vergonha; nos entristeça por negligenciar tanto nosso Senhor e, assim, atentemos ao que diz a Sua Palavra: “Fazei isto em memória de mim”, na esperança de que esse som solene leve para longe o demônio da ingratidão.
Em primeiro lugar, vamos falar sobre o objeto bendito da memória; em segundo, sobre as vantagens de se lembrar dessa Pessoa; em terceiro, do auxílio gracioso à nossa memória — “fazei isto em memória de mim”; e, em quarto, do bondoso mandamento, “fazei isto em memória de mim”. Que o Espírito Santo abra os meus lábios e o seu coração, para sermos abençoados.
1. Primeiramente, vamos falar do GLORIOSO E PRECIOSO OBJETO DA MEMÓRIA — “fazei isto em memória de MIM”. Os cristãos têm muitos tesouros para guardar no armário da memória. Eles precisam se lembrar da sua eleição — “escolhidos nele, antes da fundação do mundo”. Precisam ter consciência da sua origem, de terem sido tirados de um tremedal da lama, de um poço de perdição. Precisam se recordar do seu chamamento eficaz, pois foram chamados por Deus e resgatados pelo poder do Espírito Santo. Precisam se lembrar dos livramentos especiais — de todos os livramentos e de todas as misericórdias concedidas a eles. Contudo, há alguém a quem devem conservar na alma como a mais cara das especiarias — alguém que, acima de todas as outras dádivas de Deus, merece estar perpetuamente na lembrança. Alguém, eu disse, pois não quero dizer um ato ou uma obra, mas a Pessoa cujo retrato eu colocaria numa moldura de ouro e penduraria no saguão da minha alma. Ah, como eu gostaria que vocês fossem estudantes sérios de todos os feitos conquistados pelo Messias. Como gostaria que fossem versados na vida do nosso Amado. Que nunca se esquecessem da Sua pessoa; pois o texto diz: “fazei isto em memória de mim”. É a gloriosa pessoa de Cristo que deve ser o objeto da nossa lembrança. É a Sua pessoa que deve ser colocada no relicário de cada templo do Espírito Santo.
         No entanto, alguns dirão: “Como podemos nos lembrar da pessoa de Cristo, quando nunca O vimos? Não podemos dizer qual era a forma peculiar do Seu rosto; cremos que o Seu semblante era mais formoso do que o de qualquer outro homem — embora marcado pela dor e pelo sofrimento — mas, como nunca O vimos, não podemos nos lembrar dele. Não vimos os Seus pés enquanto Ele fazia Suas peregrinações; não vimos as Suas mãos enquanto Ele as estendia cheias de bondade; não podemos nos lembrar da impressionante entonação da Sua voz, quando, mais eloquente que os serafins, Ele impactava as multidões, prendendo sua atenção; não podemos descrever o sorriso meigo presente em Seus lábios, nem a expressão de desaprovação quando distribuía anátemas contra os fariseus; não podemos nos lembrar Dele em Seu sofrimento e agonia, pois nunca O vimos”. Bem, amados, suponho seja verdade que vocês não possam se lembrar da Sua aparência física, pois naquela época vocês ainda nem eram nascidos; no entanto, não sabem que até o apóstolo disse que, embora ele tenha conhecido Cristo segundo a carne, dali por diante, ele não mais O conheceria dessa forma? A aparência física, a raça, a linhagem, a pobreza, os trajes humildes, não eram nada na opinião do apóstolo sobre o seu Senhor glorificado. E, da mesma forma, embora vocês não O conheçam segundo a carne, podem conhecê-lO segundo o espírito; podem se lembrar de Jesus tal como Pedro, Paulo, João, Tiago, ou qualquer um daqueles favorecidos que um dia pisaram nas Suas pegadas, andaram com Ele lado a lado ou reclinaram a cabeça em Seu peito. A memória acaba com a distância e dá um salto no tempo, e podemos ver nosso Senhor, embora Ele esteja exaltado em glória.
         Bem, vamos gastar cinco minutos para lembrar-nos de Jesus. Lembremos do Seu batismo, quando, ao entrar nas águas do Jordão, ouviu-se uma voz, dizendo: “Este é o meu filho amado, em quem me comprazo”. Vejam-nO Se levantando, respingando água da correnteza! Com certeza, a própria água deve ter enrubescido ao receber o seu Deus. Ele parou nas ondas por alguns instantes, para consagrar o túmulo do batismo, no qual aqueles que estão mortos em Cristo são sepultados com Ele. Lembremos Dele no deserto, para onde Ele foi logo após Sua imersão. Ah, sempre penso na cena do deserto, quando Cristo, exausto e abatido, sentou-se, talvez sobre a raiz nodosa de alguma velha árvore. Tendo jejuado por quarenta dias, Ele estava faminto, quando, no auge da Sua fraqueza, chegou o espírito maligno. Talvez Satanás tenha disfarçado sua realeza demoníaca na forma de um idoso forasteiro e, pegando uma pedra, disse: Peregrino, “Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães”. Posso até vê-lo, com um sorriso ardiloso e olhar malicioso, segurando a pedra e dizendo: “Se” — o blasfemo “se” — “Se és Filho de Deus, manda que esta pedra se transforme em alimento para mim e para ti, pois nós dois estamos com fome, e isso será um ato de misericórdia; tu podes fazê-lo facilmente; fala e ela será como pão do céu; nós o comeremos e tu e eu seremos amigos para sempre”. Mas Jesus respondeu — e como foram doces as Suas palavras — “Não só de pão viverá o homem”. Ah, como Cristo combateu o tentador de forma maravilhosa! Nunca houve uma batalha como essa. Foi um duelo sem par — um combate de um só round — quando o campeão da cova dos leões e o poderoso leão da tribo de Judá lutaram um contra o outro. Que cena esplêndida! Os anjos ficaram ao redor para assistir o espetáculo, como os antigos, que se assentavam para ver os torneios dos grandes guerreiros. Ali Satanás reuniu toda a sua força; Apoliom concentrou todo o seu poder satânico, para poder derrotar o descendente da mulher nessa batalha grandiosa. Mas ele não era páreo para Jesus, o qual desferiu um golpe mortal e Se tornou mais que vencedor. Ó, Cordeiro de Deus! Eu me lembrarei das Tuas lutas no deserto, quando tiver de lutar com Satanás. Quando tiver de lutar com o leão que ruge, olharei para Aquele que o venceu de uma vez por todas e destruiu a cabeça do dragão com seus golpes poderosos.
         Além disso, peço que se lembrem Dele nas tentações diárias e nas horas de provação pelas quais Ele passou ao longo da Sua vida sofrida. Mas que tremenda tragédia foi a morte de Cristo! E a vida? Anunciada com uma canção e encerrada com um grito: “Está consumado”. Iniciada numa manjedoura e terminada numa cruz; e que triste intervalo entre elas! Ah, as horríveis cenas de perseguição, quando os amigos O desdenhavam; quando, ao passar pelas ruas, os inimigos O olhavam com desaprovação; quando ouvia o sibilar da calúnia e era mordido pelos dentes traiçoeiros da inveja; quando um caluniador disse que Ele tinha demônio e era louco; que estava embriagado e era bebedor de vinho; e quando Sua alma justa Se angustiava com o caminho dos perversos. Ah, Filho de Deus! Tenho de me lembrar de Ti; não posso me esquecer de Ti quando penso naqueles anos de labor e pesar que tiveste por minha causa. Contudo, vocês conhecem meu tema preferido — o lugar onde sempre me lembro melhor de Cristo. O tenebroso jardim cheio de olivas. Que lugar! Gostaria de ter eloquência para levá-los até lá. Ah, se o Espírito nos tomasse e nos colocasse perto dos montes de Jerusalém, eu diria: “olha, lá está o ribeiro do Cedrom, atravessado pelo próprio Rei, lá você pode ver as oliveiras”. Provavelmente, foi ao pé de uma delas que ficaram os três discípulos enquanto dormiam; e ali, ah, ali, vejo as gotas de sangue. Para um instante, minh’alma; aquelas gotas de sangue — não as viste? Observa, não é sangue de feridas, é sangue de um homem cujo corpo não foi ferido. Ó, minh’alma, pensa em quando Ele se ajoelhou em agonia e suor — suor, sim, pois Ele lutou com Deus — suor porque Ele pelejou com o Pai. “Meu Pai, se não é possível passar de mim este cálice sem que eu o beba, faça-se a tua vontade”. Ó, Getsêmani, tuas sombras são extremamente sagradas para a minha alma. Ah! e aquelas gotas de sangue! Com certeza, foi o auge do sofrimento; o último ato tremendo daquele extraordinário sacrifício. Pode o amor pode ir mais longe que isso? Pode se curvar a um ato maior de misericórdia? Ah, se eu fosse eloquente, falaria sobre cada uma daquelas gotas de sangue, para que o coração de vocês pudesse se amotinar contra a indolência e a frieza, e falar bem alto e com sincero fervor da lembrança de Cristo. E, agora, adeus Getsêmani.
         Mas vou levá-los ainda a outro lugar, onde vamos ver o “Homem de Dores”. Vou conduzi-los ao pretório de Pilatos e deixar que vejam as zombarias daqueles soldados brutais: os golpes com luvas de malha; os  murros; a vergonha, as cusparadas, os puxões de cabelo, as bofetadas cruéis. Ah, dá para imaginar o Rei dos mártires sem Suas vestes, exposto aos olhares daqueles homens vis? Não veem a coroa ao redor de Suas têmporas, cada espinho agindo como uma lanceta perfurando Sua cabeça? Não veem os ombros dilacerados, o branco dos ossos aparecendo no meio da carne ensanguentada? Ah, Filho do Homem! Eu te vejo açoitado e flagelado por varas e açoites; como posso, então, deixar de me lembrar de Ti? Minha memória seria mais traiçoeira que Pilatos, dizendo diante dos gritos, Ecce Homo, “Eis o homem!”
         Bem, vamos terminar a cena do sofrimento com a visão do Calvário. Pense nas mãos traspassadas e no lado ensanguentado; pense no sol abrasador e depois na total escuridão; lembre-se do calor escaldante e da sede pavorosa; pense no grito da morte: “está consumado!”, e nos gemidos que o precederam. Este é o alvo da memória. Que jamais nos esqueçamos de Cristo. Eu lhes suplico, pelo amor de Jesus, deixe-O ter o lugar de honra na sua memória. Não permita que a pérola preciosa caia de suas mãos descuidadas no negro mar do esquecimento.
Entretanto, preciso dizer mais uma coisa antes de deixar este assunto: é bem possível que alguns de vocês fiquem enlevados pelo que eu disse, pois já leram muitas vezes sobre isso, e também já ouviram; mesmo assim, ainda não conseguem se lembrar espiritualmente de Cristo, pois Ele nunca Se manifestou a vocês e, aquilo que não conhecemos, não podemos lembrar. Graças a Deus, no entanto, não falo de todos, pois neste lugar há um grande remanescente segundo a eleição da graça, e é a eles a quem me dirijo. Talvez eu possa lhes falar sobre o velho celeiro, a cerca ou a cabana, ou, se vivem em Londres, sobre o sótão, a viela escura ou a rua onde você conheceu Jesus; ou sobre a capela onde entrou por acaso, e você diga: “Graças a Deus, eu me lembro do lugar aonde Ele veio se encontrar comigo pela primeira vez, e contou à minha alma os segredos do amor e disse que tinha me comprado”.
“Lembras do lugar, do pedacinho de chão,
Onde Jesus te encontrou?”
Sim, eu gostaria muito de construir um templo naquele lugar e erigir um monumento aonde Javé-Jesus falou pela primeira vez à minha alma e Se manifestou a mim. Mas Ele já Se revelou a vocês mais de uma vez — não foi? E vocês podem se lembrar dos vários lugares onde o Senhor lhes apareceu anteriormente, dizendo “com amor eterno eu te amei”. Embora nem todos possam se lembrar destas coisas, há alguns que podem; e estou certo de que me entenderão quando eu disser para vir e fazer isto em memória de Cristo — em memória de todas as Suas ternas visitações, das Suas palavras doces e  persuasivas, do Seu sorriso cativante, de tudo o que Ele tem dito e transmitido à sua alma. Lembrem-se de todas estas coisas nesta noite, se for possível à memória reunir todos os poderosos feitos da graça. “Bendize, ó minha alma, ao SENHOR, e não te esqueças de nem um só de seus benefícios.”
         2. Tendo falado sobre o bendito objeto da nossa memória, vamos falar, em segundo lugar, um pouco sobre OS BENEFÍCIOS DECORRENTES DA TERNA LEMBRANÇA DE CRISTO.
       O amor nunca diz cui bono (qual é a vantagem?). O amor não pergunta quais são os benefícios decorrentes do amor. O amor, pela sua própria natureza, é abnegado. O amor ama; ele ama por amor à criatura, e nada mais. O cristão não precisa ser persuadido a amar a Cristo, assim como uma mãe não precisa de incentivo para amar seu filho. Ela o faz porque isso faz parte da sua natureza. A nova criatura tem de amar a Cristo, ela não pode evitá-lo. Ah, quem pode resistir ao encanto incomparável de Jesus Cristo? — O mais formoso entre milhares, o mais amável entre milhares. — Quem pode se recusar a adorar o príncipe da perfeição, o espelho da beleza, o majestoso Filho de Deus? No entanto, ainda assim, pode ser útil observarmos as vantagens de nos lembrarmos de Cristo, pois não são poucas nem pequenas.
Em primeiro lugar, a lembrança de Cristo nos dá esperança quando sentimos o peso dos nossos pecados. Observe alguns indivíduos nesta noite. Aí vem um pobre coitado. Olhe para ele! Ele não tem se cuidado muito ultimamente; sua aparência é a de quem nem tem comido direito. Qual é o seu problema? “Ah”, diz ele, “tenho sentido uma sensação de culpa; estou sempre me lamentando, pois receio jamais poder ser perdoado; eu achava que era uma boa pessoa, mas quando leio a Bíblia, vejo que meu coração ‘é enganoso, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto’; tenho tentado me corrigir, mas quanto mais eu tento, mais me afundo na lama; com certeza, não há esperança para mim. Não mereço compaixão; para mim, Deus tem de me destruir, pois Ele declarou que ‘a alma que pecar, essa morrerá’; eu tenho de morrer, tenho de ser condenado, pois sei que transgredi a lei de Deus”. Como podemos consolar uma pessoa assim? Quais palavras de amor podem ser ditar para lhe dar paz? Eu sei! Eu te direi que existe alguém, que por ti fez um sacrifício completo; se somente creres nEle, estarás seguro para sempre. Ó, pobre moribundo desesperado, lembra-te Dele e cantarás de alegria e felicidade. Veja, o homem crê e, em êxtase, exclama: “Ah, vinde todos vós que temeis a Deus e eu vos direi o que Ele fez pela minha alma”.
“Diga, diga aos pecadores que
Eu, não estou mais no inferno”.
Aleluia! Deus destruiu a nuvem negra dos meus pecados! Este é um dos benefícios decorrentes da lembrança de Cristo. Ela nos dá esperança quando pecamos e nos diz que ainda existe misericórdia.
         Bem, tenho mais um sujeito. E o que ele diz? “Não aguento mais, sou perseguido e maltratado por amar a Cristo; sou alvo de zombaria, escárnio e desprezo: já tentei, mas realmente não consigo suportar. Homem é homem, pise nele como em um verme e ele se voltará contra você; minha paciência se esgotou; estou de tal forma que nem adianta me dizer para ser paciente, pois não tenho mais paciência; meus inimigos lançam calúnias a meu respeito e não sei o que fazer”. O que diremos a esse pobre coitado? Como lhe daremos paciência? O que devemos pregar a ele? Já ouvimos o que ele tem a dizer sobre si mesmo. Como vamos consolá-lo em meio a tão grande provação? Se estivéssemos passando pela mesma coisa, o que gostaríamos de ouvir de um amigo? Diríamos que outras também passam por isso? Ele responderia: “todos vós sois consoladores molestos”. Não, eu lhe direi, “irmão, você está sendo perseguido, mas lembre-se das palavras de Jesus Cristo, como Ele nos falou e disse: “regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus; pois assim perseguiram aos profetas que viveram antes de vós”. Meu irmão, pense nAquele que, ao morrer, orou pelos seus assassinos, dizendo: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”. Todas as coisas pelas quais você tem passado nada são perto do Seu sofrimento. Tenha coragem; encare isso como homem; não desista. Não perca a paciência; tome a sua cruz e siga a Cristo. Deixe-O ser o seu moto; coloque-O diante dos seus olhos. E, então, depois de ouvir isso, veja o que o homem tem a dizer. Na mesma hora, ele dirá: “Olá, perseguição; seja bem-vinda, humilhação. A infâmia por amor a Jesus será uma honra, o escárnio, a minha maior glória”.
“Agora, por amor, Seu nome carrego,
O lucro já não é mais vitória,
Meu ultraje ao desprezo entrego,
E na Sua cruz cravo a minha glória.”

Vejam, há ainda um outro efeito da lembrança de Cristo. Ela nos leva a ter paciência na perseguição. É como um cinto para cingir os lombos, a fim de que a nossa fé resista até o fim.
         Queridos amigos, eu tomaria muito do seu tempo se fosse descrever todos os benefícios; por isso, só vou falar rapidamente de uma ou duas bênçãos que podemos receber. A lembrança de Cristo nos dará força na tentação. Creio que todo homem passe por terríveis horas de tentação. Nunca houve uma nau cruzando as profundezas do oceano que não tivesse de enfrentar, vez ou outra, alguma tormenta. Lá está ele, o pobre barquinho, para cima e para baixo ao furor das ondas. Veja como elas o jogam de um lado para o outro e o lançam para o céu. Os ventos escarnecem dele. O velho oceano pega o navio com seus dedos molhados e o chacoalha de lá para cá. Veja como os marinheiros gritam de medo! Você sabe como fazer para as águas se acalmarem? Sim. Só uma palavra enérgica o fará. Vem Jesus. Permita que o seu pobre coração se lembre Dele, e o barco imediatamente voltará a navegar, pois Cristo está no leme. Os ventos não mais soprarão, pois Cristo calará suas bocas imensas e nunca mais elas incomodarão seu filho. Não há nada como o nome de Jesus Cristo, o Filho encarnado de Deus, para dar força na tentação e ajudar a enfrentar o temporal. Por outro lado, que conforto haverá no leito de enfermidade? O nome de Cristo! Esse nome o ajudará a ser paciente com quem cuida de você — e a enfrentar o sofrimento que terá de suportar; sim, será assim com você, você terá mais esperança na doença que na saúde, e sentirá uma bendita doçura no amargor no sofrimento. Em vez de sentir o azedume da adversidade, você sentirá a doçura do mel em meio a todas as tribulações e provações com que Deus o afligir, pois Ele “inspira canções de louvor durante a noite”.
         Mas, só para concluir as vantagens da lembrança de Cristo, sabe onde podemos encontrar o maior de todos os benefícios? Você conhece o lugar mais importante onde quem crê em Cristo vai se regozijar? Vou levá-lo até lá. Psiu! Silêncio! Você está subindo as escadas para um quarto solitário. As cortinas estão cerradas. Alguém está chorando. Os filhos estão ao redor da cama e os amigos estão lá. Vê aquele moribundo? É você. Olhe para ele; os olhos dele são os seus; as mãos dele são as suas. É você mesmo. Logo você estará lá. Homem! Aquele é você! Não vê? Esse quadro é o seu. Aqueles olhos, que em breve estarão fechados para sempre, são os seus; aquelas mãos, que ficarão rijas e inertes, são as suas; aqueles lábios, que ficarão secos e crestados, e onde irão colocar um pouco d’água, são os seus. São suas as palavras que condensam no ar e saem lentamente dos lábios moribundos. Fico me perguntando se ali você será capaz de se lembrar de Cristo. Se não for, vou imaginá-lo. Olhe para o homem deitado na cama; seus olhos estão arregalados. Seus amigos ficam alarmados; eles lhe perguntam o que ele está vendo. Ele sufoca a emoção e responde que não vê nada. Mas eles sabem que há alguma coisa diante dos seus olhos. Ele os arregala de novo. Bom Deus! O que é isso que vejo — que me parece ver? O que é? Ah! um suspiro! A alma se foi. O corpo está lá. Mas o que ele viu? Ele viu o trono flamejante do julgamento; e viu Deus assentado nele com Seu cetro; ele viu livros abertos; viu o trono de Deus e viu um mensageiro brandindo a espada para golpeá-lo. Homem! Tu és aquele homem; logo estarás lá. Esse é o teu próprio retrato. A reprodução é fiel. Olha. Lá é onde estarás dentro de poucos anos — ou poucos dias. No entanto, se te lembrares de Cristo, devo te mostrar o que farás? Ah, tu sorrirás em meio às tribulações. Deixe-me retratar um homem assim. Alguém coloca travesseiros nas suas costas; ele se senta na cama, pega a mão de um ente querido e diz: “Adeus! não chore por mim; o bondoso Deus enxugará toda lágrima”. Ele se dirige àqueles que estão ao seu redor: “Preparem-se para se encontrar com Deus e sigam-me à terra de deleites”. Agora ele colocou a casa em ordem. Tudo está certo. Olhe para ele, apoiado em seu cajado, como o bom e velho Jacó, pronto para morrer. Veja seus olhos como brilham; ele bate as mãos; todos se juntam à sua volta para ouvir o que ele tem a dizer; ele sussurra: “Vitória!” e, reunindo um pouco mais de força, exclama, “Vitória!” e, finalmente, no último suspiro, “Vitória por meio dAquele que nos amou!”, e morre. Este é um dos grandes benefícios decorrentes da lembrança de Cristo — ser capaz de encontrar a morte com tanta serenidade.
         3. Chegamos agora à terceira parte da nossa meditação, que é o DOCE AUXÍLIO À MEMÓRIA.
         Na escola, costumávamos usar certos livros chamados de “Auxílio à Memória”. Tenho certeza de que eles mais me confundiam do que ajudavam. Sua utilidade era a mesma de um embrulho de bengalas debaixo do braço de um viajante: ele poderia usar uma de cada vez para andar, mas, enquanto isso, carregava todas as outras de que não precisava. Nosso Salvador, no entanto, é mais sábio que todos os nossos professores, e seus lembretes são auxílios reais e verdadeiros à memória. Seus símbolos de amor têm uma linguagem inconfundível e facilmente ganham a nossa atenção.
         Veja o mistério da Santa Ceia. O pão e o vinho são símbolos vivos do corpo e do sangue de Jesus. O poder para estimular a nossa lembrança está, então, no apelo aos nossos sentidos. Aqui o olho, a mão e a boca encontram uma função prazerosa. O pão é provado e ingerido, aguçando o paladar, um dos nossos sentidos mais fortes. O vinho é bebido — um ato palpável. Sabemos que estamos bebendo e, por isso, os nossos sentidos, os quais normalmente são empecilhos à nossa alma, tornam-se asas para elevar a mente em contemplação. Além disso, a maior influência dessa ordenança está na sua simplicidade. É uma cerimônia maravilhosamente simples — um pedaço de pão e um pouco de vinho. Não há nada chamado cálice, pátena ou hóstia. Nada para sobrecarregar a memória — eis aqui simplesmente o pão e o vinho. Quem não consegue se lembrar de ter comido do pão e bebido do vinho, de forma alguma deve ter memória. Observe ainda a poderosa vitalidade destes sinais — como eles são cheios de significado. O pão partido — assim como foi partido o nosso Salvador. O pão para ser comido — assim como Sua carne é o verdadeiro alimento. O vinho derramado, o suco de uva espremido — assim como nosso Salvador foi esmagado sob os pés da justiça divina: Seu sangue é o nosso vinho mais suave. O vinho alegra o coração — assim como o sangue de Jesus. O vinho fortalece e revigora — assim como o sangue do poderoso sacrifício. Ah, deixe que esse pão e esse vinho sejam um doce e bendito auxílio à sua alma nesta noite, para que ela se lembre do Amado que um dia morreu na cruz do Calvário. Como um cordeirinho, coma agora do pão do Senhor e beba do Seu cálice. Lembre-se da mão que o alimenta.
         Contudo, antes de nos lembrarmos de Cristo, precisamos pedir a assistência do Espírito Santo. Creio que devemos nos preparar antes da Ceia do Senhor. Não acredito no tipo de preparação da Sra. Toogood, a qual passou a semana toda se preparando e, depois, quando descobriu não ser dia de Santa Ceia no domingo, disse ter perdido a semana inteira. Não acredito nisso, mas sim numa preparação santa para a Ceia do Senhor: quando no sábado, se possível, passamos uma hora em meditação silenciosa sobre Cristo e a paixão de Jesus; quando, principalmente no domingo à tarde, nos sentamos com devoção, contemplando-O, e então aquelas cenas se tornam realidade, não fantasia, como acontece com algumas pessoas. Tenho muito receio de haver alguns dentre vocês que beberão o vinho sem pensar no sangue de Jesus: e, se o fizerem, serão hipócritas desprezíveis. Acautelai-vos, pois “quem come e bebe sem discernir o corpo, come e bebe” — o quê? — “juízo para si”. Em português bem claro: muito cuidado com o que fazem! Não sejam imprudentes; pois, de todas as coisas sagradas deste mundo, esta é a mais solene. Já ouvimos falar de pessoas que fazem pactos, tirando sangue do braço e chupando-o em grupo; isso é repugnante, mas, ao mesmo tempo, muito sério. Aqui vocês vão beber o sangue das veias de Cristo e saborear as gotas que fluem do Seu próprio coração amoroso. Isso não é sério? Alguém ousaria brincar com isso? Ir à igreja e tomar a Santa Ceia por alguns trocados? Vir e se juntar a nós para angariar fundos para instituições beneficentes? Fora com isso! Isso é uma terrível blasfêmia contra o Deus Todo-Poderoso; e, dentre os condenados do inferno, os mais malditos serão, portanto, aqueles que ousarem zombar da santa ordenança de Deus. A Ceia do Senhor é feita em memória de Cristo. “Fazei isto em memória de mim”. Se você não consegue fazê-lo em memória de Cristo, eu lhe peço, assim como você ama a sua alma, não o faça de forma alguma. Ah, homens e mulheres regenerados, não entrem no pátio dos sacerdotes para ofender o Deus de Israel com sua intrusão.
         4. E, agora, para encerrar, eis a graciosa ordenança, “fazei isto em memória de mim”. A quem se aplica? “Fazei isto.” É importante responder a esta questão — “fazei isto”. A quem se destina? A todos vós que credes em mim. “Fazei isto em memória de mim”. Bem, suponham, agora, que Cristo esteja lhes falando nesta noite; e Ele diz: “fazei isto em memória de mim”. Cristo os vê da porta. Alguns vão para casa, e Cristo diz: — “Pensei ter dito: ‘fazei isto em memória de mim’”. Alguns estão assentados como meros espectadores. Cristo senta-se ao seu lado e diz: — “Pensei ter dito: ‘fazei isto em memória de mim’”. — “Senhor, eu sei que disseste.” — “Então, você me ama?” — “Sim, Senhor, tu sabes que te amo.” — “Mas, estou dizendo, vá lá — coma do pão, beba do vinho”. — “Não quero, Senhor, terei de ser batizado se entrar para esta igreja, e tenho medo de me resfriar (batismo por imersão), ou de ser julgado. Tenho medo de ficar diante da igreja, pois acho que eles me fariam perguntas que eu não poderia responder”. — “Como” — diz Cristo — “esse é todo o seu amor por mim? Isso é tudo o que sente pelo seu Senhor? Ah, quanta indiferença para comigo, o seu Salvador. Se eu não o tivesse amado mais do que isso, você estaria no inferno; se esse fosse todo o meu amor, eu não teria morrido por você. Um grande amor suporta grandes aflições; e essa é toda a gratidão que sente por mim?” E, agora, alguém se sente envergonhado? Seu coração não está lhe dizendo: “Será errado mesmo?” Cristo diz, “fazei isto em memória de mim”, e você não se envergonha de não participar? Convido a todo aquele que amam a Jesus a participar desta mesa. Eu lhe suplico, não negue a si mesmo este privilégio, deixando de fazer parte da igreja. Se você ainda negligencia esta ordenança, deixe-me relembrá-lo do que Cristo disse: “Porque qualquer que, nesta geração adúltera e pecadora, se envergonhar de mim e das minhas palavras, também o Filho do Homem se envergonhará dele, quando vier na glória de seu Pai com os santos anjos”. Ah, soldado da cruz, não aja como o covarde!
         E, para não induzi-los a algum erro, preciso acrescentar mais uma coisa e, então, encerro. Quando lhes falo sobre participar da Ceia do Senhor, não suponham sequer por um momento que desejo que pensem haver nela algum tipo de salvação. Há quem diga que a ordenança do batismo não é essencial, assim como a ordenança da Santa Ceia, no que diz respeito à salvação. Ser salvo por comer um pedaço de pão! Besteira, pura besteira! Ser salvo por beber uma gota de vinho! Ora, isso é tão absurdo que não merece nem discussão. Sabemos que só o sangue de Jesus, o mérito das Suas aflições, a aquisição feita pelo Seu sofrimento, o que Ele fez, pode nos salvar. Deposite nEle a sua confiança; somente nEle, e você será salvo. Ouves, miserável pecador, o caminho da salvação? Se um dia eu te encontrasse no outro mundo, tu, talvez, pudesses me dizer: “Passei uma noite, senhor, ouvindo-o, e você não me contou o caminho para o céu”. Bem, tu ouvirás agora. Crê em Jesus Cristo, confia na Sua justiça e serás salvo da vingança da lei ou do poder do inferno. No entanto, se confiares nas tuas próprias obras, tão certo quanto vives, estarás perdido.
         Agora, ó eterno e glorioso Filho de Deus, quando nos achegamos à Tua mesa para nos banquetear com as iguarias da graça, permite a cada um de nós, na dependência do Teu Espírito, exclamar nas palavras de um dos Teus poetas:
Lembrar-me-ei de Ti, e de todas as tuas dores,
E de todo o Teu amor por mim —
Sim, enquanto um suspiro me restar,
Eu me lembrarei de Ti.
E quando estes lábios impuros emudecerem,
E o pensamento e a memória fugirem;
Quando vieres no Teu reino
Ó, Jesus, lembra-Te de mim!

Tradução: Mariza Regina de Souza

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